sexta-feira, 22 de junho de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 8" (Por Diego T. Hahn)



A questão era que, a um certo ponto, eu realmente não tinha mais estímulo ali. Eu dizia que, com um mínimo de treino, um macaco poderia fazer perfeitamente aquele trabalho que eu fazia... E às vezes – lá vinha outra daquelas minhas viagens – me pegava rindo enquanto imprimia algum relatório ou carimbava algum papel e ficava imaginando mesmo um simpático símio – de terno e gravata, claro, o que dava mais graça ainda à cena – realmente pulando ali de um lado para o outro sobre o balcão da recepção, e no fim do mês feliz da vida ao receber seu cacho de bananas-salário.

Mas não eu, eu queria mais - se fosse para fazer o trabalho de um macaco, eu queria ser era como a Chita; melhor, claro, se fosse o Tarzan!, mas, enfim, eu queria ser um astro de cinema, ou algo assim, caramba: viver a vida sobre as ondas, você sabe; o meu destino é ser star!...

E, como o tempo ia passando e o meu destino parecia mesmo era não de star e sim estar ali, e aquele tal “sucesso” não chegava nunca, eu começava a me deprimir.
E, deprimido, claro, protagonizava o clássico: buscava ajuda no álcool...

Brincadeira! Quer dizer, o trago rolava solto na recepção, é verdade, especialmente de madrugada, mas era por pura zoação mesmo... uísque, vinho, cerveja... eu tinha um colega, Jaime por exemplo, que era mesmo um alcoólatra – nunca o vi trabalhar sóbrio naqueles tempos lá... 

Antes de queimar o filme do Jaime, porém, devo mencionar que teve uma certa época, na qual estava de férias da faculdade, que estabilizei por um tempo no turno da noite e deixei um outro colega de turnante. Pois nesse período trabalhávamos sempre eu e outro recepcionista e dois mensageiros. Trabalhávamos bem, talvez fôssemos os melhores que o hotel tinha naquela época nas nossas funções, mas o caso é que éramos também os mais fanfarrões e quando não havia movimento na área começávamos a zoação descerebrada, papo vai papo vem naquelas noites, fomos criando um vínculo de patifaria, e logo estávamos saindo os quatro juntos todas as noites também após o serviço. 

Éramos todos solteiros na época – um deles era o Jorge, o especialista em manobrar carros na garagem e bisturis em cirurgias cardíacas – e as noites iam longas e chegávamos trôpegos nas respectivas casas quando o sol já raiava no horizonte. Obviamente, com aquela rotina cada vez mais frequente, começamos a trabalhar com as caras amassadas, olheiras profundas, voz cavernosa... estávamos mais lentos também – brincávamos que aquilo podia ser um problema especialmente para os pacientes do Jorge – ... às vezes demorávamos a entender o que os hóspedes falavam, os mensageiros iam buscar o veículo do Seu Megane e voltavam com um para o Seu Sandero, que não estava ali (bem, ao menos eles ainda acertavam a "família", não é mesmo?)...

O que aconteceu então foi que o gerente da época, Alex, percebeu isso e logo tratou de desmanchar aquele nosso grupo: mudou os turnos de um, depois os de outro, e assim por diante, até cortar quase totalmente nossa comunicação mais direta e nossas aventuras noturnas começarem a escassear. 

Grande filho da puta aquele Alex por estragar aquele nosso animado bando!, mas, devo admitir, um filho da puta profissionalmente preciso, pois certamente salvou o bom funcionamento da recepção do hotel – e, bem, talvez também um filho da puta bom amigo, pode ter salvado igualmente nossas vidas, que, naquele ritmo de até então, pareciam destrambelhadamente começar a ir ladeira abaixo (embora nossa euforia pela diversão intensa e as gorjas, que por algum estranho motivo haviam se tornado mais frequentes naqueles tempos de vida loca, não nos deixassem perceber isso)...

Mas, fecha parêntese (para não nos queimarmos mais ainda aqui neste trecho - embora ainda haverá tempo e espaço para isso na sequência da nossa história...), e voltando ao Jaime (que pelo seu "profissionalismo" com o copo acabava fazendo a gente parecer criancinha da pré-escola do trago): Jaime costumava fazer a madrugada, mas às vezes quebrava um galho também em algum turno diurno. Era, porém, um daqueles caras que disfarçam bem a embriaguez; você a princípio não diria que ele está bebaço se não analisasse mais a fundo ou o conhecesse um pouco melhor.

Pois eu já o conhecia, após algumas noites trabalhadas junto. E quando começava a digitar algo no computador no turno da noite, logo percebia um copo repousando no balcão da recepção, bem ao meu lado; era Jaime me oferecendo – para não dizer me impondo - silenciosamente um drinque, o qual, para não fazer a desfeita, eu costumava acabar aceitando. E assim transcorríamos aquelas jornadas, fazendo pouco, quase nada, bebendo e trocando ideias sobre as coisas mais estapafúrdias possíveis. Aquilo era engraçado: com os hóspedes eu debatia política, com algum mensageiro eu falava de negócios, com outro de mulheres, todos davam pitacos sobre futebol, mas o Jaime, cara, o Jaime era difícil descrevê-lo.

 Porque ele não falava literalmente nada com nada – tanto é verdade que, daqueles tempos que convivemos por ali, não consigo lembrar de uma única frase sua com um mínimo de coerência com a realidade e a língua portuguesa, ou qualquer língua do mundo (por mais que essa quase total desconexão com o universo pudesse vir a ser engraçada para o leitor) que pudesse usar como exemplo aqui (e, você sabe, se é pra mentir/inventar coisas, paremo por aqui!...). De alguma forma, ele parecia indiferente a tudo, indiferente mesmo à vida... ele era daqueles caras que falam somente o mínimo indispensável, de uma maneira lenta e blasé, com uma voz rouca quase nunca olhando para o interlocutor e sim para algum horizonte perdido, por mais que simpatizasse com a outra pessoa – o que tornava, por algum motivo, inacreditavelmente, também ele um tanto quanto simpático e mesmo carismático (de um carisma, digamos, quase folclórico).

Pois Jaime acabou sendo mandado embora após abalroar a caminhonete de um hóspede na parede da garagem. Tenho a impressão, porém, de que aquilo não se deveu à bebida e sim ao fato de ele simplesmente não ir com a cara do dono do veículo. E nunca mais vi Jaime depois que ele foi embora do hotel.

Isso também não deixava de ser curioso: figuras como essa apareciam do nada e de repente estavam ali ao teu lado, bem fardados, passando 8 horas ali, conversando contigo, sobre de tudo um pouco, o que acabava induzindo quase inevitavelmente a uma amizade ou algo próximo disso, e de repente um belo dia eles faziam alguma cagada – ou não faziam nada, o que em alguns casos dava na mesma – e simplesmente iam embora, e você nunca mais os vê, como se eles não existissem “lá fora”, como se eles tivessem existido somente por algum tempo ali dentro do hotel, personagens criados especificamente para aquela trama.

Mas onde, afinal, se enfia esse pessoal de hotel no dia-a-dia? Até hoje procuro por alguns ex-colegas, boas pessoas, grandes amigos, mas nunca mais os encontrei, assim como Jaime... estarão enfurnados em um outro hotel? Não, não creio; depois de conquistarem a liberdade, eles não se submeteriam de novo àquilo... o europeu, por exemplo, havia acabado numa oficina mecânica – e, dizem, feliz, conversando em alemão e francês com suas repimbocas da parafuseta – , embora eu nunca mais o tenha visto.

Fosse como fosse, eu ia ficando lá, e, diabos, acreditando por vezes que eu é que fosse o personagem criado especificamente para aquela trama...

(Continua)


terça-feira, 5 de junho de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 7" (por Diego T. Hahn)



Faltando quinze minutos para terminar o turno, o relógio inevitavelmente parava: estacava abruptamente no quinze para as seis da tarde e ali ficávamos para todo o sempre - forever and ever!... ou, bem, ao menos assim parecia.

Tinha um colega mensageiro que olhava para aquele enorme relógio quadrado da recepção e dizia que ali atrás dele devia haver um buraco, onde se escondia um anão, e esse anão filho da puta era quem parava o relógio, só de sacanagem. 

Eu retrucava que não, que devia ser um duende, pois isso é típico dos duendes, você sabe. Eles gostam de sacanear mesmo... 
Gnomo certamente não era; os gnomos, a princípio, são camaradas e tal (embora a Xuxa alegasse ver gnomos, o que talvez também não deponha a favor dessa suposta bondade deles, não é mesmo? Mas enfim)... 
O colega respondeu então que na verdade eles deviam se revezar, deviam ter também eles seus turnos ali, como a gente: quando o tempo passava mais rápido então, devia ser o gnomo ali atrás do relógio; quando mofávamos na recepção, devia ser o duende o encarregado daquela tarde - o anão era o turnante, quebrava o galho quando os outros dois estavam de folga. 

Enfim, essa descrição acima foi só para o amigo leitor ter noção do nível de idiotice que a um certo ponto atingíamos por vezes ali naquele recinto...

Certa vez, em meio a um desses nossos vácuos mentais que infelizmente transformávamos em diálogos, um hóspede, com a cara fechada, chegou em frente ao mensageiro ao lado da recepção e balbuciou, com os dentes cerrados:

- Megane – pedia seu veículo, carrancudo, visivelmente com pressa.

O colega, mais um novato, ainda não era além de tudo muito ligado em marcas de carros e respondeu sorrindo todo simpático, estendendo a mão para o sujeito:

- Prazer, seu Megane. Reinaldo. Posso ajudá-lo?

Pois, noves fora a ignorância automobilística do mensageiro em questão, quanto aos seus Meganes da vida, eu os ficava ouvindo naqueles outros papos vazios (ao menos os nossos eram engraçados...), orgulhosos das vendas que haviam feito no dia, ou trocando ideias do dia a dia das empresas, sobre novos produtos no mercado, ou algo assim, e ria melancolicamente comigo mesmo da pomposidade que muitas vezes alguns deles empregavam àqueles assuntos - práticos e importantes para alguns, sim, sem dúvida, mas, diabos, extremamente maçantes para a humanidade como um todo, caramba!...

E sentia então uma tremenda vontade de indagar-lhes o que achavam que havia após "tudo isso", e o que achavam a respeito de de onde viemos e para onde vamos, e ainda se acreditavam em vida após a morte, e em Deus – ou nos duendes e gnomos, que fosse – e se acreditam em algo – em algo além da empresa, que lhes pagava aquelas diárias ali...

Provavelmente perguntariam também se eu acreditava em algo além da empresa que me pagava para estar ali. 
E eu responderia, categoricamente, que acredito em tudo, MENOS na empresa que me pagava para estar ali – até porque, na verdade, não acreditava naquilo que me pagavam para estar ali... 


Mas, enquanto isso, lá vinha outro desfilando imponente pelo hall do nosso caro Hotel Santa Maria City:

- Como é o Hotel Imembuy? - perguntava-me o velho rabugento, após dizer que estava descontente com a estrutura do nosso hotel, e o atendimento, e...

- Não sei, senhor.

- Como não sabe? Que raios de atendimento é esse?

- Bem... senhor... o caso é que, como o senhor pode supor, eu moro aqui em Santa Maria, certo? Assim sendo, nunca me hospedei no hotel Imembuy... afinal, não preciso; tenho uma casa aqui em Santa Maria... não faria sentido me hospedar no hotel tendo uma casa aqui, correto? E também nunca trabalhei lá, trabalho aqui no Hotel Santa Maria City... portanto, não faço ideia de como é o hotel Imembuy... senhor.

- E por um acaso isso te impede de ter ouvido o que dizem de lá? Trabalhando num hotel, não sabe o que dizem do outro hotel? É isso?

- Ah, sim... já ouvi falar de lá... uma pessoa me disse que é uma porcaria total... outra, me disse que é maravilhoso... lhe ajudei agora??

- Vou falar com o gerente sobre o seu atendimento – vociferou o velhote por fim, dando-me às costas.

Bem, repassando mentalmente o diálogo e toda a racionalidade e lógica extremas empregadas no mesmo, supus que aquilo só podia ser um elogio.

Um outro desses sujeitos, após fazer o check-in, subiu ao andar do seu quarto e logo telefonou lá de cima e começou a resmungar, dizendo que ia embora, pois não era nada do que “tinham lhe prometido” - veja bem, apesar dos chororôs desses malas reclamões, o hotel era considerado o melhor da cidade, um bem ajeitado 4 estrelas...

Respondi simplesmente “ok” e desliguei.

Ele desceu, veio até a recepção e repetiu toda aquela sua ladainha chorosa, por fim ameaçando novamente que ia embora.

Repeti, educadamente, mas sem maiores delongas: “Ok”.

Ele ficou me olhando. Esperava certamente, eu via em seu olhar, que eu replicasse dizendo que o acomodaríamos em um outro quarto, faríamos o nosso melhor, ou ao menos que eu perguntasse QUAL era o problema mesmo; devia estar acostumado com hotéis, e suporia que essas deviam ser as instruções dadas no treinamento (lembrando que o meu "treinamento" fora na madruga, com o mensageiro-cozinheiro-violeiro-meu-filho-no-videogame Zeca) e... ficou me olhando. E eu, para ele. 

Atônito, depois de alguns segundos então, foi-se embora devagarzinho arrastando sua bagabem, de vez em quando ainda dando uma olhadela entre surpresa e incomodada para trás antes de passar pela porta automática da saída, certamente desolado por inesperadamente ter que recomeçar mesmo sua busca por um quarto de hotel (talvez fosse acabar parando no muquifo do Hotel Imembuy, que era uma verdadeira bosta, embora eu eticamente me recusasse a mencionar isso para o desgraçado anterior) como não imaginava que pudesse acontecer quando lá de cima ameaçou partir e, especialmente, por não ter sido paparicado por aquele maldito recepcionista sem coração.

Certa vez me ocorreu, no entanto, o terrível pensamento que fora dali também eu talvez agisse como alguns daqueles hóspedes em certas ocasiões. Quando no papel do cliente, em um restaurante, uma lancheria, ou algo assim... 

Vi-me entrando no lugar, todo cheio de banca, fazendo pose para a garota ao meu lado, analisando o cardápio, enquanto o garçom ali ao lado, já cansado de esperar pelos idiotas que não se decidem nunca o que querem comer, começa a tecer teorias a meu respeito, imaginando-me um completo imbecil que se acha superior a ele por estar ali sentado... e aí fico em dúvida se tomo um refri normal ou um refri zero... decido por fim que não, quero uma água... ou melhor; uma cerveja. Isso, uma cerveja. Duas. Três. Quatro. E logo estou bêbado e bravateando, fazendo piadinhas sem graça, para as quais ele tem que retribuir com um sorriso amarelo, e fico lá sentado quando todo mundo já foi embora e os funcionários só aguardam por mim para irem embora, completamente destruídos pela infinita jornada diária...

Sim, tenho auto-crítica, porra: sei que também sou uma espécie de hóspede pedante em certas ocasiões (de acordo com a teoria sociológica de um ex-colega, esse é um problema crônico do brasileiro como um todo: por mais pobretão que seja, se estiver pagando, ele acredita que pode tudo...). Mas isso não me fez ser mais condescendente; não, isso me fez ser ainda mais crítico com eles (os malditos hóspedes) – e também comigo mesmo; passei a procurar tratar os garçons como o Seu João de Almeida me tratava (um dia desses, por sinal, depois de uns tragos solitários num boteco, convidei mesmo um deles para acompanhar numa expedição até as queridas... não estou evoluindo?).

Um cara que trabalhou ali na recepção por breve período, cerca de três meses, havia trabalhado anteriormente por algum tempo em cruzeiros turísticos e em hotéis pela Europa. Disse que lá essa questão do atendimento era mais tranquila: os hóspedes não ficavam pedindo mil coisas, não achavam que tinham direito a tudo (ele é o cara daquela teoria que eu mencionara antes); simplesmente entravam no hotel, dormiam, tomavam café, no máximo pediam alguma informação da cidade, e caíam fora... e se pedissem muito, na realidade, o pessoal do hotel já dizia que não, não tinha, não, não era possível, e já fechava a cara, no que, devo dizer, identifiquei-me com esse tipo de tratamento.

O problema era exatamente, continuava ele, quando surgiam brasileiros... era um inferno. A princípio, ele ficava contente de ver patrícios chegando lá e poder trocar uma ideia com pessoal da sua terra natal, mas com o tempo foi percebendo essa faceta pedante dos turistas brazucas... havia muitas situações que o pessoal do hotel até quebrava um galho, mas no caso era mesmo um favor, não coisas que estariam incluídas no serviço, embora esses hóspedes acreditassem que sim, que tinham direito a absolutamente tudo que solicitassem. “Novos ricos”, dizia ele. Querem exercer esse seu novo poder – e precisam, por conseguinte, de alguém para sofrê-lo – completava ele sua análise sociológica.

E agora aquele sujeito estava ali, trabalhando num hotel no Brasil. Cercado, pois, de hóspedes brasileiros por toda parte! Gente pedindo adaptador pro carregador de bateria do celular ou do computador, pedindo mais coberta, pedindo mais travesseiros, pedindo para ir ver o ar que parece não estar funcionando direito – está muito quente; ou muito frio; ou ambos - , pedindo para dar uma olhada na televisão, a imagem está meio ruim, e o controle remoto também parece não estar funcionando direito, e como me colocaram num quarto de frente para a rua?? Vocês estão loucos?? Ah, não, nos fundos também não, né!?... a vista lá é péssima... e no meio, no meio nem pensar: aquele barulho enlouquecedor do elevador a toda hora!!...

E tudo aquilo por menos de um mísero salário (várias vezes, quando conversávamos e pedia que eles chutassem o valor do nosso ganho mensal, ouvi de hóspedes o palpite que aqueles carinhas dentro daquele hotel chiquezão, fardados de terno e gravata, tiravam, no mínimo, uns 2 paus limpos por mês. ) - de nada valendo também ali toda sua experiência lá fora e as 3 ou 4 línguas estrangeiras que falava...

Alguns meses depois, após ficarmos um tempo sem notícias suas após ele (obviamente) deixar o hotel, soubemos que o colega europeu estava trabalhando numa oficina mecânica a algumas quadras dali – e Jorge, o mensageiro, afirmava quase não tê-lo reconhecido ao vê-lo de relance, devido ao rosto todo sujo, mas que debaixo de toda aquela graxa havia um sereno semblante de quem, apesar de não ter mais o prazer de correr mundo servindo drinques em navios bacanas para formosas e simpáticas suequinhas, por outro lado, entre uma repimboca da parafuseta e outra que aparafusava e com as quais dialogava sussurrando em francês ou alemão, encontrara um pouco de paz de espírito nos últimos tempos, por simplesmente também não precisar mais aturar os famigerados hóspedes tupiniquins...

(Continua)


terça-feira, 15 de maio de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 6" (por Diego T. Hahn)


O telefone.

O telefone era um capítulo à parte.

Se por um lado na madrugada ele permanecia quase invariavelmente mudo, à tarde ele tocava freneticamente, incessantemente – era um negócio realmente enlouquecedor!

E o pior: na verdade, eram dois telefones!, separados por uns três ou quatro metros na parte interna do balcão da recepção...

A coisa costumava se desenrolar assim: eu atendia um, falava com o interlocutor, desligava, e ia pegar o outro que já estava tocando, enquanto o anterior já começava a berrar novamente, e o gerente gritava perguntando por que ninguém atendia o maldito telefone, e eu não podia responder pois estava exatamente atendendo ao telefone, seu *#%#@¨*!... E por aí íamos, ao longo da tarde, naquela infinita sequência digna de um filme de comédia pastelão – eu podia me imaginar mesmo como um Didi Mocó da vida real, quase conseguindo, por um milésimo de segundo, rir da idéia em meio à raivosa corrida de um telefone para o outro (nos piores cenários, ainda havia algum hóspede maldito por ali me perguntando coisas simultaneamente, quando não uma pequena fila deles se formando e me olhando feio por eu dar atenção aos telefones e não atendê-los direito, ou novamente o maldito gerente, enquanto eu decidia ignorar os telefones e atender razoavelmente os clientes – o que me parecia o mais lógico -, também ele resolvia usar o telefone na linha interna e me telefonar para perguntar por que eu não estava atendendo os malditos telefones!!)...

Foi então uma bela tarde que comecei a colocar em prática uma técnica anti-stress-telefônico

Primeiramente, óbvio, começara a acontecer de eu simplesmente esquecer com relativa frequência os aparelhos fora do gancho...

Eu sei, você pode pensar que isso era proposital, que essa então era a tal técnica, que - além de canalha - não tinha nada de original, e eu lhe responderia que, fosse como fosse, se fosse verdade que esta era a técnica empregada voluntariamente, ela era simples, realmente, mas também eficaz, pois os aparelhos ficavam ali relaxados por uns cinco ou dez minutos antes de eu me dar conta do lapso, o suficiente para voltar a ouvir meus pensamentos e descansar a mandíbula, cansada de se abrir e fechar em meio ao “Bom dia, Hotel Santa Maria, em que posso ajudá-lo?” que repetia 896 vezes por tarde. 
Mas não, como dito antes, aquilo era puro esquecimento, cara.

Agora, a técnica em si, sim, consistia em efetivamente atender a uma chamada – e  eis o toque de gênio: ficar esticando ao máximo a conversa com o interlocutor, explicando-lhe, com minúcias, ainda que não tivesse sido perguntado, características do hotel, a localização deste, o que estava incluído na diária, as “atrações turísticas” da cidade, como chegar, etc. Fazendo isso, obviamente eu não deixava de ter que abrir a boca e falar (dessa, não adiantava, não havia técnica ou milagre que me fizesse escapar), mas, além de não correr o risco de ser flagrado no esquecimento do telefone fora do gancho (cena que poderia ser estarrecedora tal qual a do chuveiro de "Psicose" para o gerente ou, pior, para o dono da budega, com direito à musiquinha de suspense - TÃ TÃ TÃ TÃ TÃ!! - e um close no fone fora do gancho como se fosse uma faca ensanguentada, chegava a visualizar eu num daqueles meus momentos de paz telefônica), ao menos eu não precisava correr de um aparelho para o outro, e podia falar com toda calma do mundo sobre algumas questões um pouco mais diversas do que aquela enlouquecedora introdução, com suas repetitivas saudação e as duas ou três informações mais básicas, que devem ter me feito perder uns oitocentos e setenta e sete milhões de neurônios por suicídio (ou, neuronicídio) por tarde de telefonemas.

Em alguns casos, então, flagrei-me mesmo conversando sobre política, futebol e religião com as pessoas do outro lado da linha que haviam telefonado para simplesmente saber se havia vagas e o preço dos quartos.

 Mas, calma, como obviamente nem todos do outro lado da linha tinham paciência, a técnica foi refinada, e a deixei ainda mais artística: pois mesmo depois de a pessoa com quem falava ter desligado eu continuava muitas vezes conversando, calmamente, passando várias informações que esse hipotético futuro cliente estaria pedindo – e ele queria saber, claro, além da localização do hotel e se ficava perto do centro, quando havia sido construído, que atrativos havia no entorno, como era a vida noturna da cidade, que bar eu recomendaria para uma festinha legal, que tipo de som tocava lá, que tipo de som eu curtia, qual era o meu time, o que eu havia achado da rodada do fim de semana, o que estava passando no cinema da cidade, se eu havia visto o filme tal, o que havia achado (aproveitava para me fantasiar famoso, estirado num sofazão, num daqueles ping-pongs com Marílias Gabrielas e Jô Soares da vida) etc – e em outros momentos, para realmente descansar, simplesmente concordando com o velho e bom “hum-rum” a indagações feitas por seres imaginários do outro lado da linha, no melhor estilo poltergeist.

O outro telefone, obviamente, berrava insanamente durante aqueles dez minutos que eu ficava ali naquela conversa com o além, e o gerente, embora ainda consternado com o aparelho que tocava, me observava e devia pensar “caramba, não levava muita fé, mas o cara até que é mesmo um funcionário prestativo; não se furtando a dar diversas informações, algumas, aliás, que não têm nada a ver com o trabalho dele, na maior paciência, para algum filho da puta cheio de nove horas!...”.

É, é verdade: eu merecia mesmo era um aumento por aquela paciência, meu amigo, não é mesmo!?...

Mas, falando em gerente e paciência, curiosa também era a organização dos nossos turnos na recepção por parte do tal: às vezes não havia realmente porra nenhuma para se fazer e estávamos lá eu e outro recepcionista batendo cabeça na “jaula”; em outros momentos, como no supracitado, eu, solitário, me desabalava de um lado para o outro para atender aos telefones e ao mesmo tempo fazer check-ins e lançamentos de produtos consumidos nas contas e responder a perguntas idiotas de hóspedes desagradáveis e, como se sabe, nessas horas sempre surgem mais coisas para fazer... por vezes ficava então tentando imaginar o sujeito organizando os tais turnos (e aqui novamente entrava numa daquelas minhas viagens, visualizando mesmo o cara enfurnado em sua salinha privada - ou talvez realizasse aquele afazer realmente nesta última, isto é, no vaso - rindo maquiavelicamente em frente ao excel com nossos nomes sendo jogados, por puro prazer sádico, de lá pra cá naqueles retangulozinhos, sem um mínimo de lógica aparente...). 
Enfim, o fato é que o indivíduo, um cara relativamente jovem, um pouco mais velho que a gente, e até bem "ligado", estava lá há longos meses, logo anos, sabia a rotina do hotel, dos horários, fluxos de movimento; como, ainda assim, conseguia organizar os turnos de maneira tão estúpida, meu Deus?...

Nesses casos, vez em quando - digamos que "em protesto" - quando estávamos em dois recepcionistas e dois mensageiros ao lado, teoricamente em serviço, mas todos coçando violentamente, fazíamos um revezamento recreativo: um dos recepcionistas e um dos mensageiros ficavam de “plantão”, justificando o contracheque recebido - afinal, fazer o quê, né - , enquanto os outros dois pegavam o carrão de algum hóspede na garagem, tipo um Camaro ou uma BMW, e iam dar uma banda pela cidade, aproveitando, óbvio, para dar uma flertada com algumas gatinhas pela rua... 

Certa vez, por exemplo, o mensageiro Jorge, aquele que dizia que eu parecia um espião, parou o carro pelo centro e começou a papear com uma garota que andava por ali. Ela sorriu. 
Pois papo vai, papo vem, ele contou que era médico, pápápá, e trocaram telefones... alguns dias depois, chegaram a sair juntos para uma cervejinha e ele contando das cirurgias de transplante de coração que costumava fazer, não era fácil, mas era recompensador, sabe... e os olhos da menina brilhavam...

Nos dias seguintes, entre um carro manobrado e outro, o camarada se demonstrava empolgado quando pela recepção, contando sem parar da sua nova conquista, sem se importar de ser sacaneado pelos colegas, que diziam que ele estava ficando apaixonadinho.

Difícil para ela, no entanto, deve ter sido compreender a cena que viu quando certa vez passava por acaso em frente ao hotel: lá estava o “doutor” na rampa da garagem, de uniforme do hotel todo suado e carregando as malas de algum hóspede recém chegado e que lhe dava um tremendo esporro por um motivo qualquer e ele só balbuciava “sim, senhor, sim, senhor...”.

Depois disso, apesar do óbvio fim do romance e da nossa apreensão pela provável queda no astral do colega, surpreendentemente, entre suas missões pela garagem, ele continuaria vindo à recepção com frequência empolgadamente redobrada para conferir no computador detalhes sobre operações de ponte de safena, procedimentos como cateterismo e coisas do gênero, mostrando que, por mais platônico que talvez fosse, parecia realmente ter encontrado um novo amor nessa vida.


(Continua)

quinta-feira, 3 de maio de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 5" (Por Diego T. Hahn)



- Mas eu disse para não tocarem no meu carro!

- Sim, senhor; mas o senhor quis estacionar por conta própria e acabou ocupando a vaga de dois veículos... e, como o hotel está lotado, nós tivemos que remanejá-lo e...

- Não me interessa. Eu disse para NÃO MEXER no meu carro!

- Certo, então o senhor terá que deixar seu automóvel na rua...

- Como é???

Eu falava ponderadamente, sem alterar a voz, com o sujeito, que, por sua vez, bradava e gesticulava tal qual um chimpanzé envenenado, aparentemente cada vez mais irritado com a minha argumentação, mas eu não podia deixar pra lá, ainda que a treta a princípio não fosse minha – ele havia começado aquele esporro para cima do mensageiro, que era quem havia manobrado o carro dele e que agora ali na recepção baixara a cabeça, encabulado, após até tentar explicar que “é que... senhor... eu... hã... o carro... tinha que...”, mas diante da pressão do cara não conseguira articular nada.

Cara, a questão é que, em situações assim, eu sentia-me na obrigação de contra-atacar.

Se a bronca era diretamente comigo, eventualmente eu até deixava passar, mas algumas vezes os hóspedes abusavam moralmente de alguns dos meus colegas que não tinham as “ferramentas”, ou mesmo disposição, para defender-se e confrontá-los adequadamente (ou o que eu julgava ser adequadamente), como eu aparentemente tinha (ou acreditava ter)... mas a verdade é que, de certa forma, poder-se-ia dizer que no fundo, numa conotação social e/ou intelectual, eu talvez pertencesse mesmo também à “tribo” dos hóspedes, embora estivesse apartado deles por um balcão - era como um membro deslocado do bando - , e, embora me entendesse bem com eles, era um "estranho no ninho" entre meus colegas, os “bárbaros”, como o próprio mensageiro Jorge costumava brincar, dizendo que eu parecia uma espécie de espião, fingindo-me inocente ali na recepção em meio àqueles check-ins e check-outs, enquanto preparava algum grande plano maquiavélico para conquistar o mundo ou algo assim...

Bem, não, não havia plano algum – não além daquele de simplesmente conquistar era o meu troquinho – mas devido àquela “pilha” toda – e a maior carga dela, confesso, vinha de mim mesmo – eu realmente acreditava ter aquela obrigação de ao menos lhes infligir, aos malditos hóspedes, derrotas supostamente (ao menos nas minhas utópicas suposições, quando criava um filme na minha cabeça) épicas, tal qual o fizeram – ou ao menos tentaram – os personagens do De Niro em “A missão”, do Tom Cruise em “O último samurai”, ou o do Kevin Costner em “Dança com lobos”... 
Quase todos eles se deram mal, é verdade, provavelmente eu também me daria, mas, que diabos, como bom camarada não podia fugir àquela luta!...

Fosse como fosse, e por mais que o confrontasse, o tal palhaço continuou estacionando o carro sozinho e ocupando espaço que poderia ser usado por outros carros e causando confusão na garagem, mas ao menos, como consolo, o dono do hotel, que acompanhava de longe a discussão, veio até mim na recepção depois que o cara se foi e, ao que eu esperava um esporro complementar (ou mesmo um golpe de misericórdia), me surpreendeu dizendo apenas: “Nem dá trela; o cara é um babaca mesmo...”, mostrando que o sujeito devia ser realmente um tremendo babaca.

Voltando às origens, quando pelo contrário raramente tinha contatos do gênero – na verdade, quase nenhum contato em geral – e tudo era mais tranquilo, logo no meu primeiro mês no hotel já me tinham colocado para trabalhar na madruga e foi na calada da noite que conheci o sorrateiro Zeca. Ele era então o mensageiro mais antigo lá depois do Severo e sabia tudo do hotel. Sabia, por exemplo – mostrando que conhecimento também enche mesmo barriga – , onde ficava guardada na noite a chave da cozinha do restaurante – local sagrado e de acesso supostamente proibido para nós. E lá pelas tantas, balançando-a entre os dedos, vinha até mim e perguntava:

- E aí, o que vai querer para hoje, véio?...

Eu, então meio constrangido – novato, ainda em fase de teste, não querendo entrar de cúmplice naquele ataque à despensa, mas também não querendo descartar completamente uma oportunidade de preencher o vazio do buraco negro que costumava assolar meu estômago naquelas ocasiões – , dizia que não sabia, até tentava desconversar, dizendo que "estava tranquilo" (numa tímida e duvidosa recusa), enquanto seguia teclando algo no computador sem sequer olhar pro cara... ele, porém, não se fazia de rogado e dava então as sugestões do dia – ou melhor, da noite:

- Batata frita, lasanha ou omelete? – e lá se ia preparar nossa janta das três horas, sem esperar eu responder. Voltava com uma latinha de refri pra cada um. 

O sujeito era mesmo um grande fanfarrão. Volta e meia levava consigo também uma viola, com a qual alegrava parte das nossas madrugas, e por vezes também um videogame. Nessas noites, o tempo voava. Ficávamos jogando futebol, estirados no sofá, na sala em frente ao bar, onde havia uma telona, e eu pensava “bem, daqui a pouco faço as duas ou três coisas que tenho para fazer”, que me tomavam menos de meia hora naquelas madrugadas, e aí quando nos dávamos conta, caramba, eram já cinco e meia! – o turno trocava às seis – e saltávamos do sofá e eu ia correndo imprimir os arquivos que tinha para imprimir e carimbar os arquivos que tinha para carimbar e tal, e ele zarpava para garagem ajeitar os carros... é, aquelas partidas eram duras e acirradas! Concentrados, perdíamos totalmente a noção do tempo. 
Mas o que importa é que, apesar de Zeca ser o dono do campinho – o videogame era dele – eu ganhava a maioria das partidas, para seu desespero – eu ria sarcasticamente ao ouvir com frequência o mensageiro que estava assumindo o turno no início da manhã perguntando para o meu rival “Por que essa cara de bunda hoje, mano?”...

Zeca não durou muito lá, depois que eu entrei. Não por revolta por aquelas derrotas, mas logo arranjou um emprego melhor e eu perdi meu cozinheiro noturno – e o companheiro de viola, e as partidas de futebol no videogame... O mensageiro que o substituiu não tinha a mesma audácia, e na verdade nenhum outro depois dele, ao passo que a partir dali tive que procurar outros entretenimentos para aquelas longas noites nas quais, posso jurar, ainda chegava a farejar por vezes feito um cão faminto ao longo dos meses seguintes o cheiro de lasanha ou omelete se aprochegando nas imediações da recepção ali pelas três da madruga - logo no entanto tornando à realidade e melancolicamente voltando a mastigar minha pastelina e sugar meu toddyinho então levados de casa.

(Continua)


quinta-feira, 12 de abril de 2018

"Diário de um recepcionista de hotel canastrão - Parte 4" (Por Diego T. Hahn)


O proprietário do hotel era um coroa, na casa dos sessenta e alguma coisa, mas meio judiado, representando mais (embora talvez tivesse até menos), gordo, e não de muitas palavras, que aparecia lá de vez em quando na recepção, perguntava a respeito da taxa de ocupação ou algo assim e desaparecia, provavelmente voltando para seu escritório para contar o vil metal que entrava abundantemente em caixa (e obviamente não respingando nada desse excedente para a gente...).

Soa como um clichê, sei, da imagem que o revoltado proletário costuma ter do "capitalista", mas, diabos, ele parecia realmente só se importar com aquilo: encher os bolsos com sua infinita bufunfa, pois passava os dias enclausurado naquele hotel, da manhã à noite; acredito que não tinha grandes diversões na vida, não praticava um esporte, não costumava sair para jantar – comia quase sempre no restaurante do hotel mesmo – ou beber com amigos... enfim... aquilo me incomodava – por ele, veja bem, mais do que pela minha invejosa revolta; pelo "desperdício" que eu via naquele quadro – mas, que fosse, o que me importava mesmo, no fim das contas, é que ao menos ele não me enchia o saco ali. 
Por mim, então, podia seguir com sua vida sedentária e antissocial, enchendo o rabo de grana, desde que não atrapalhasse minhas sessões de pornô ali no pc da recepção...

Ele só parecia não gostar muito realmente, não sei bem por quê, quando eu começava a conversar demais com os hóspedes.
Sei que não apreciava nem um pouco quando eu enveredava, por exemplo, pelo terreno da política, mas aí eu até entendo, já que, como bom canhoto, sempre pendi para a esquerda, ao passo que, como já dito e creio que bem ilustrado, obviamente ele era um tradicional burguesão.

 Mas, diretamente, ao menos, ele não vinha nunca me dizer nada, só olhava meio enviesado de longe; quem chegava junto era o gerente (ou, "o capachão", como o chamávamos pelas costas), dizendo coisas como “tu é pago pra fazer check-in e check-out e não pra resolver os problemas do mundo, seu Marco...”.

Ok, por vezes eu travava mesmo ferozes duelos verbais com os clientes ali na recepção – discutíamos sempre educadamente, mas por vezes num tom um pouco mais alto e enfático, enquanto a fila do check-in crescia e os clientes que aguardavam para serem atendidos faziam cara feia, como ficava também a do capo, que mandava então o capa (sim, nos referíamos aos dois assim: o capo ("chefe", em italiano, segundo um colega nosso que sacava das línguas estrangeiras) e o capa (de capacho mesmo)) vir falar comigo, fazendo todos os olhares do arredor voltarem-se para a gente, mesmo os daqueles hóspedes que estavam alheios à conversa, que só estavam coçando ali pelo hall de entrada, lendo um jornal, esperando seu carro ou algo assim, alguns se mostravam então até meio espantados, provavelmente com a ousadia daquele carinha atrás do balcão ali, um ignorante qualquer, querendo saber mais que gente culta e estudada como aqueles caras que ali se hospedavam; quem ele pensava que era?... 

Não raras vezes, porém, foram aqueles com quem respeitosamente bati (de frente) e debati (questões um tanto quanto polêmicas) que se despediram efusivamente de mim ao partirem, deixando-me além de tudo, como bons burgueses, uma boa gorja (ao passo que eu, como bom socialista, aceitava de bom grado essa contribuição para meu, digamos, “fundo revolucionário”)...

Certa vez, por exemplo, apareceu um militar americano no hotel e começamos a conversar, a princípio, sobre assuntos amenos na recepção. 
Lá pelas tantas, no entanto, estávamos a altos brados, eu batendo nos states por sua política externa, seu militarismo, seu imperialismo, blá blá blá, e o cara, que estava lá para um intercâmbio com o Exército Brasileiro, republicano, rebatia com o clássico discurso protocolar de que eles só queriam exportar sua democracia e tal...

Caramba, acho que nunca vi o dono do hotel me olhar tão feio como aquela vez!

No seu check-out alguns dias depois, porém, o americano me deu um longo aperto de mão e me deixou nada menos que vinte dólares de tip (Oh, yeah: God bless America, man!)...

Ah, sim, os jornais: a propósito de "acesso à informação", a princípio os jornais do dia eram deixados em um canto discreto sobre o balcão da recepção. Pois quando não havia muito o que fazer eu dedicava-me a me informar sobre os acontecimentos do mundo, lendo-os um por um. 

A direção, contudo, por algum motivo parecia não gostar daquilo...

Assim, eu procurava ler quando eles não estavam por ali, mas, ainda que largasse os diários e voltasse ao meu computador como se estivesse fazendo algo muito importante quando era flagrado no ato, logo decidiram tirar os jornais daquele local e passaram a jogá-los sobre uma mesinha do hall de entrada.

Decisão acertada, ao meu ver, por ser um lugar realmente mais propício para os hóspedes terem acesso a eles, ainda que não fosse por esse motivo que os tivessem tirado do balcão da recepção; não, tiraram-nos dali simplesmente para que nós, recepcionistas, não pudéssemos lê-los mais. 
Não ficava bem, você entende: o recepcionista, ainda que não tivesse porra nenhuma para fazer, ficar lendo jornais... onde já se viu? O desgraçado devia era ficar ali, parado, imóvel - e sempre de pé, feito um elegante puro sangue, pois não tínhamos também sequer uma cadeira, um banquinho, nada, para escorarmos por alguns instantes que fosse naquelas seis (por vezes aparentemente infinitas) horas ali, independente dos eventuais ócio e solidão momentâneos no saguão de entrada - , bem vestido, bem alinhado, sem fazer nada, sem ler nada, sem conversar também – sim, parado e calado, pois, a não ser sobre o estritamente necessário para o trabalho, não devíamos conversar com os mensageiros, mesmo que estivéssemos só nós dois ali, devíamos ficar em silêncio, militarmente olhando para o horizonte... seeeeeennn-TIDO!!

Porra! É sério, cara... Mas, que diabos, sinto muito, mas não, eles não conseguiriam conter minha sanha de informação...
Pois nessa nossa nova era tecnológica - embora àquela época ainda não tivéssemos os famigerados smartphones e o diabo a quatro - obviamente bastava eu entrar no computador e ler as mesmas notícias em versão on-line. 
Ha ha!... Assim, por mais que não quisessem, eu me mantinha razoavelmente informado.

É isso aí, meus amigos: querendo ou não, pois, eles teriam um maldito recepcionista que lia (sim, livros também!), relativamente bem inteirado dos assuntos do mundo, e pronto para dialogar sobre quase qualquer coisa com os preciosos hóspedes deles.

(Continua)

quarta-feira, 14 de março de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 3" (por Diego T. Hahn)


Carlos Silva é representante de alguma empresazinha aí e se acha uma grande peça do tabuleiro! 
O pior é que vejo dezenas assim todos os dias. Há também os empresários de meia tigela que se acham os novos Eikes Batistas ou Abilios Dinizes, mas não passam de uns presunçosos pés rapados de espírito (talvez só tenham mesmo do primeiro o instinto de subir a qualquer custo e só não estejam também enrolados com alguma lava-jato da vida porque não têm sequer a “competência” de chegar a um nível tão alto de malandragem)... 
É uma alegria quando aparece, por exemplo, um seu Antônio da vida, ou um João de Almeida.

João de Almeida é representante também de uma empresa de sei lá eu o quê – porque na verdade nunca dou muita bola para com o que ou para quem trabalham, só fico às vezes sabendo pelos meus colegas que se atêm muito a esses detalhes e costumam referir-se a eles por “o Carlos Silva da Petrobras” ou algo assim – , mas é um sujeito gente boa, de bem com a vida, que tá sempre batendo um papo informal e interessante ali pela recepção.

- E aí, seu Marco? Tudo beleza? E a mulherada?

- Ah, seu João, o senhor sabe como é... sempre prestigiando as beldades, né!? Porque não dá pra parar...

- Mas sai daí, guri; tu tem cara é de matador de dragão! Mas, bueno, um dia desses temos que ir juntos numa casa de diversão aí... tu que sabe das coisas vai me mostrar onde é o lugar bom aí da cidade...

- Claro, com o maior prazer.

Grande pessoa o seu João de Almeida. Não tá nem aí pra nada. Só quer saber de cumprir o horário dele e depois sair para algum bar para espairecer. Costuma voltar no meio da madruga meio torto. Como sou turnante – como explicado no capítulo anterior, dependendo do dia posso trabalhar de manhã, de tarde, de noite, ou na madrugada – acompanho bem os hábitos e horários de alguns hóspedes e cruzo com eles em diferentes momentos do dia, ao que sempre me largam aquela:

- Mas tu por aqui ainda? Tu dorme aqui, é??...

E a verdade era que sim, eu dormia mesmo lá. Isto é, eu morava no apê dos coroas, que ficava perto dali, mas dormia de vez em quando ali no hotel também – e não, não me refiro aos horários nos quais estava de folga; mas durante o maldito expediente mesmo: na madrugada, quando estava deveras cansado, costumava desligar as portas automáticas da entrada e me jogar em algum sofá do hall de entrada e dormir feito um anjo, deixando o mensageiro encarregado de me avisar se algo acontecesse.

No entanto, não foi uma nem duas vezes que, depois de um tempo de sono, acordei com um barulho de pancadas em vidro e notei o colega também apagado roncando em um outro sofá, enquanto lá fora, visivelmente irritado, algum hóspede batia incessantemente na porta, querendo entrar. E lá ia eu rastejando enquanto calçava os sapatos, gravata torta e cara toda amassada com listras de sofá na bochecha e na testa, forjando o mais próximo de um sorriso que eu conseguia naquela madrugada e, enquanto na passada dava um soco no mensageiro ainda em coma, abrindo a porta para o sujeito, saudando-o e fazendo algum comentário amigável tipo “Ué, voltando cedo hoje!... Não rendeu a noite?”. E percebia então aqueles grandiosos homens de negócios, emburrados, indo se recolher, com a visível sensação de fracasso, às suas celas, o que deixava aquele reles proletário da calada da noite um pouco menos chateado de ter seu precioso sono repentinamente interrompido.

Já nos turnos da manhã, quando não havia a possibilidade da soneca, eu procurava me encher do cafezinho preto que havia à disposição – teoricamente dos hóspedes – na recepção para sobreviver ao batente, e preencher os imensos vazios de movimento trocando uma ideia com Severo, aquele meu colega jurássico, que costumava vir frequentemente até a recepção conversar comigo, tendo como assunto favorito a proposta de alguma “sociedade” entre nós, para cairmos fora do hotel e montarmos juntos um negócio. Às vezes ele sugeria uma lanchonete ou um bar, às vezes uma quadra de futebol, e ia alternando as ideias, repetindo algumas ao longo dos dias, e sempre nos empolgávamos quando começávamos a ir mais fundo naqueles devaneios, imaginando os detalhes desse nosso futuro business, e eu percebia os olhos do velho Seva brilharem como os de uma criança diante da promessa da bicicleta que seria trazida pelo Bom Velhinho no próximo dezembro.

No fundo, eu duvidava que ele fosse realmente sair dali um dia, o que me fazia às vezes pensar que talvez eu não devesse dar tanta corda, para evitar alguma possível desilusão para o sujeito mais adiante, mas, enfim, não seria eu a destruir aqueles seus sonhos, não é mesmo?, e a verdade é que eu também acabava por vezes me empolgando com aquelas ideias, embora não as visualizasse efetivamente se consolidando no horizonte. E, de qualquer forma, também percebia que aquilo parecia bastar para Severo, aquele nosso papo ali, eu lhe dando trela, considerando-o realmente um potencial grande homem de negócios...

- Fechado! – enquanto os representantes e empresários de verdade faziam o check-out após pagarem sua “fiança” e iam-se embora, apertávamos as mãos de maneira efusiva quase semanalmente, sacramentando então o “contrato” de nosso novo futuro business, que por sua vez provavelmente nunca deixaria mesmo as fronteiras daquela recepção de hotel.

(Continua)

quinta-feira, 1 de março de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 2" (por Diego T. Hahn)



Eu trabalhava há alguns bons anos na recepção daquele hotel. Era um dos mais antigos lá – o que não era muito difícil, já que a rotatividade de funcionários era grande; o pessoal ficava por ali uns seis meses, um ano no máximo, e caía fora... só havia um cara mais antigo do que eu lá, era um mensageiro, encarregado de colocar e tirar os carros dos hóspedes da garagem, o Severo. O Severo devia estar lá há uns trinta anos - sendo que o hotel só existia há uns vinte... brincávamos que realmente o Severo já zanzava por lá desde antes do hotel ser construído e provavelmente lá estaria depois que o hotel deixasse de existir – alguns colegas apelidaram inclusive uma certa época o Severo de “O fantasma da garagem”... sacanagem.

O trabalho não era pesado, mas a grana era pouca e assim, como dito antes, na primeira oportunidade o pessoal pedia as contas. Mas eu, assim como o Severo, não podia me dar ao luxo de fazer como os outros e simplesmente pular do barco assim no mais; não, eu precisava daquele emprego, afinal, embora não tivesse que bancar ninguém além de mim mesmo (ao contrário do próprio Seva, que era como eu chamava o veterano, que sustentava dois filhos), também não tinha ninguém que me bancasse nem nada assim – as finanças dos velhos andavam mal das pernas – e tinha que pagar minha faculdade... além do que era um emprego no qual eu podia “jogar” com os horários, já que trabalhava de turnante, que era o cara que cobria as folgas dos outros, independentemente do turno – manhã, tarde, noite ou madruga – e assim podia adaptar minha rotina ali com a das aulas, trabalhando de tarde ou de noite quando tinha aula de manhã, e vice-versa, flexibilidade que seria muito difícil de encontrar em algum outro serviço.

- Bom dia, rapaz.

Mas também não me submetia a qualquer coisa simplesmente por isso: como talvez já tenha sido possível observar, não costumava baixar a crista pra ninguém assim no mais. Tentava tratar a maioria legal, mas, você sabe, às vezes (na verdade mesmo, fazia tempo que não tinha mais saco para aquilo, para a rotina quase robótica do trabalho em si, apertando dois ou três botões, repetindo as mesmas frases mecanicamente todo dia... por outro lado, me sentia já meio em casa por lá. E, de certa forma, gostava do “clima” do lugar. Sim, gostava. Só não gostava dos tais dos hóspedes. Mas, fazer o quê?)

- Bom dia, seu Antônio.

Mas também não era radical; havia algumas raras exceções e uma meia dúzia eu costumava tratar bem, já que a recíproca era verdadeira – ou seja, era uma retribuição da gentileza. Um exemplo era o seu Antônio.

- Como vão as coisas, rapaz? E o futebol?

- Ah, jogando de vez em quando, dando uma aulinha pros caras por aí... o senhor sabe como é; só na catega, pifando os bruxos na cara do gol e tal...

- Sim, sim... claro... e as leituras?... Chegou a ver aquele que te indiquei da outra vez?

- Ah, o de sempre também, né... naquelas... batalhando contra uma meia dúzia aí... tudo ao mesmo tempo agora – aquela minha velha mania, né, de ler três ou quatro ao mesmo tempo... e sempre dando uma saramagueadazinha... algum Heminga, e um outro produto do nosso velho e bom amigo Buk aqui e ali... não, ainda não consegui parar para procurar aquele que o senhor me indicou; como era mesmo? “Zen e as motocicletas”?...

- “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”. Isso. Mas legal, legal...

- É, umas biografias também... uma, inclusive, dum mito da hotelaria mundial, “Seu” Sabadoz...o senhor talvez conheça!?... trabalhou aqui um tempo...

- Hummm... não lembro agora...

Também conseguia entabular uma conversa com alguns hóspedes e creio que ganhar uns pontos extra por isso: eu leio - bastante... inclusive ali no trabalho mesmo, quando a coisa tava meio parada e eu meio à toa...

- Bom dia. – saudava-me o hóspede – eu tenho uma reserva e... – ele me olhava e eu seguia de cabeça baixa, concentrado.

- Psiu... – depois de alguns instantes me olhando atentamente, ele tentava ainda chamar minha atenção - ...Oi!? - Eu fazia o sinal de “só um pouco” com a mão. A leitura estava tensa, não podia simplesmente encerrá-la assim no mais, no meio do parágrafo, como se nada fosse! E...

- Ok. Pronto; terminei – levantava a cabeça enquanto fechava o livro, sorrindo para ele, que não parecia, porém, tão simpático à literatura naquele momento. Eu tinha então vontade de elaborar imediatamente um questionamento a respeito de uma suposta implicância dele com Mr. Orwell, talvez pelo passado socialista do autor, ou talvez por ser ele, o hóspede, um socialista, contrariado com a crítica feita pelo inglês quando já desgostoso com o caminho tomado pelo comunismo – ao menos aquele russo – , mas, especialmente por pensar na complexidade (para ele, o hóspede) de toda a questão esquerda/direita/comunismo/socialismo/liberalismo/e outros ismos, me contenho.

- É assim que vocês recebem os clientes aqui? – parece irritado o sujeito. 

Isso não é modo de começar uma conversa, penso eu.

- Vocês quem, senhor? – respondo, olhando ao redor. Será que esse cara vê fantasmas? Será outro esquizofrênico paranoico? Será que vou ter que dizer que não temos quartos disponíveis? Ah, mas ele disse que tem reserva... droga – qual o seu nome?

- Silva. Carlos Silva.

- Pode soletrar, por favor?

- Soletrar? Soletrar o quê? Silva?? Ou Carlos? É Silva, normal... e Carlos também... não tem nenhuma letra dobrada, nada... - a irritação dele parecia aumentar. Não devia gostar do próprio nome. Talvez lamentasse não ter exatamente um nome mais exótico, tipo Maycol...

- Sei, sei, mas é que, às vezes, a reserva... o senhor sabe...

- S-I-L-V-A.

- Ahá. Silva. Tá aqui. Quarto 402.

Sim, sou mesmo quase maldoso com alguns. Mas justo: avalio-os nesse primeiro momento, já na apresentação, com o intuito exatamente de decidir como será o tratamento destinado a eles no decorrer de sua estada no hotel. Faço uma espécie de teste de aptidão: se correspondem às minhas expectativas, terão meu melhor atendimento possível; caso contrário, experimentarão o lado negro da força da recepção.

Ele sobe com o cartão magnético que abre a porta na mão. Alguns minutos depois, porém, desce, com a mesma cara emburrada.

- O cartão não funcionou. – resmunga.

- Humm... o senhor sabe como funciona?

- É claro que eu sei como funciona! Já parei mil vezes em outros hotéis que utilizam esse sistema e...

- Sim, eu sei, mas é que às vezes os hóspedes não sabem... o senhor tem que inserir o cartão no...

- Olha aqui, rapaz, eu sei como funciona esse troço! Mas esse troço NÃO está funcionando, entendeu?...

Sim, eu sei que não está funcionando, pois eu propositalmente não o magnetizei na maquininha aqui da recepção e assim ele realmente nunca abriria porta alguma do hotel, e provavelmente porta alguma de qualquer hotel do Universo, e por um instante fiquei imaginando-o,  tremendo de frio e entre cães vadios e bêbados errantes, dormindo na praça aquela noite, pensamento que me proporcionou um efêmero mas simplesmente indescritível prazer, provavelmente fazendo-me soerguer ligeiramente o cantinho de uma das sobrancelhas e dos lábios em um sorrisinho involuntário, antes de lhe dizer:

- Ok, ok. Empreste-me aqui, por favor, que vou magnetizar o cartão novamente para o senhor...

(Continua)


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão" (por Diego T. Hahn)



- Olha lá... lá vem chegando mais um... – avisa-me o colega.

Sem levantar a cabeça e seguindo olhando para o que quer que fosse  – e que quase certamente não tinha relação alguma com o trabalho em si - que eu mirava distraidamente na tela do computador naquela tardezinha modorrenta, respondo para ele:

-  Sim... já senti o odor...

Ele, que antes olhava para fora, vira-se para mim, curioso:

- Odor?

Ainda sem tirar os olhos do computador explico.

- Sim. O cheiro. Chega milhas antes.

 – Mas... que cheiro? – indaga-me ele mais uma vez, enquanto fareja o ar, como procurando antecipar-se a mim e achar a resposta por conta própria.

-  Ora, meu velho... aquele característico fedor pútrido – detalho didaticamente – ... de hóspede! – e cuspo na lixeira ao pronunciar aquela palavra – Sabe?... percebo-o quando eles ainda estão lá dobrando a esquina... é inconfundível.

- Ah, sim, sim!... Compreendo... – diz ele, que é o mensageiro, como é chamado o cara que carrega as malas e manobra os carros no hotel – emendando em seguida – E cara de hóspede: olha a cara de paspalho...

- Sim. E jeito mangolão típico de hóspede. Carregando todo garboso sua malinha de grife... esperando ser recebido como se fosse o rei da Suécia...

- Boa tarde.

- Boa tarde, senhor. Como posso ajudá-lo?

- Vocês têm quartos disponíveis?

- Bem... de quantos quartos o senhor precisaria?

- De um só.

- Humm... Ah, sim... é que o senhor perguntou por “quartos disponíveis”... entendi que... bem, mas então é somente UM quarto que lhe interessa?...

- Sim, sim.

- Bem, infelizmente, não, não temos nenhum.

- Nenhum?

- Nenhum. Zero. Zírou.

- Todos ocupados?

- Todos.

- Putz... mas não tem como me conseguir um mesmo?

- Olha, só se eu construísse um quarto para o senhor... mas aí, veja bem, eu precisaria antes de mais nada de uma autorização do proprietário do hotel... ele provavelmente teria que entrar em contato com a prefeitura e bombeiros, acredito eu, para questões relacionadas a alvará e mudanças na estrutura do empreendimento... e teria também que falar com o pessoal do estoque, para comprar o material de construção, o senhor sabe, tijolos, cimento, argamassa, e...

- Hein?

-Não, nenhum. Todos ocupados.

- Humm... bom... Ok... fazer o quê?

- Pois é... fazer o quê, né?

- Obrigado.

- De nada. Tchau, tchau.

- Meeeeeuuu, que mangolão mesmo!... – sussurra o mensageiro – mas... cara... como “não tem nenhum quarto disponível”? O hotel tá praticamente vazio, velho!...

- Aaaaaaah, meu amigo... tu é ingênuo mesmo, né? Claro que o hotel tá vazio, claro que tenho quartos disponíveis... mas não viu a cara de maluco do sujeito?

- Hummm... não, cara, não reparei mesmo...

- Pois é... mas eu manjei já de cara: psicopata, velho... clássico. A gente pega o jeito depois de um tempo aqui na recepção, sabe?...

- Hummm... mas não viu no carro dele, cara? Tem mulher e um filhinho...

- Ué. E daí, mermão? Por acaso psicopatas não podem ter família?? Que preconceito é esse?

- Bom, eu... não sei... fora o tal Dexter aquele – que, por sinal, tu tem razão, até tinha mulher e filho – não entendo muito de psicopatas, cara...

- Pois é. Mas eu entendo: psicopatas, paranoicos, megalomaníacos, etc... trabalho aqui há anos: vejo, portanto, espécimes assim o tempo todo, amigão!

(Continua)