Carlos Silva
é representante de alguma empresazinha aí e se acha uma grande peça do
tabuleiro!
O pior é que vejo dezenas assim todos os dias. Há também os
empresários de meia tigela que se acham os novos Eikes Batistas ou Abilios
Dinizes, mas não passam de uns presunçosos pés rapados de espírito (talvez só
tenham mesmo do primeiro o instinto de subir a qualquer custo e só não estejam também
enrolados com alguma lava-jato da vida porque não têm sequer a “competência” de chegar a um nível tão
alto de malandragem)...
É uma alegria quando aparece, por exemplo, um seu Antônio
da vida, ou um João de Almeida.
João de
Almeida é representante também de uma empresa de sei lá eu o quê – porque na
verdade nunca dou muita bola para com o que ou para quem trabalham, só fico às
vezes sabendo pelos meus colegas que se atêm muito a esses detalhes e costumam
referir-se a eles por “o Carlos Silva da Petrobras” ou algo assim – , mas é um
sujeito gente boa, de bem com a vida, que tá sempre batendo um papo informal e
interessante ali pela recepção.
- E aí, seu
Marco? Tudo beleza? E a mulherada?
- Ah, seu
João, o senhor sabe como é... sempre prestigiando as beldades, né!? Porque não
dá pra parar...
- Mas sai
daí, guri; tu tem cara é de matador de dragão! Mas, bueno, um dia desses temos
que ir juntos numa casa de diversão aí... tu que sabe das coisas vai me mostrar
onde é o lugar bom aí da cidade...
- Claro, com
o maior prazer.
Grande
pessoa o seu João de Almeida. Não tá nem aí pra nada. Só quer saber de cumprir
o horário dele e depois sair para algum bar para espairecer. Costuma voltar no
meio da madruga meio torto. Como sou
turnante – como explicado no capítulo anterior, dependendo do dia posso
trabalhar de manhã, de tarde, de noite, ou na madrugada – acompanho bem os
hábitos e horários de alguns hóspedes e cruzo com eles em diferentes momentos
do dia, ao que sempre me largam aquela:
- Mas tu por
aqui ainda? Tu dorme aqui, é??...
E a verdade
era que sim, eu dormia mesmo lá. Isto é, eu morava no apê dos coroas, que
ficava perto dali, mas dormia de vez em quando ali no hotel também – e não, não
me refiro aos horários nos quais estava de folga; mas durante o maldito expediente
mesmo: na madrugada, quando estava deveras cansado, costumava desligar as
portas automáticas da entrada e me jogar em algum sofá do hall de entrada e
dormir feito um anjo, deixando o mensageiro encarregado de me avisar se algo
acontecesse.
No entanto, não
foi uma nem duas vezes que, depois de um tempo de sono, acordei com um barulho de pancadas
em vidro e notei o colega também apagado roncando em um outro sofá, enquanto
lá fora, visivelmente irritado, algum hóspede batia incessantemente na porta,
querendo entrar. E lá ia eu rastejando enquanto calçava os sapatos, gravata
torta e cara toda amassada com listras de sofá na bochecha e na testa, forjando
o mais próximo de um sorriso que eu conseguia naquela madrugada e, enquanto na
passada dava um soco no mensageiro ainda em coma, abrindo a porta para o
sujeito, saudando-o e fazendo algum comentário amigável tipo “Ué, voltando cedo
hoje!... Não rendeu a noite?”. E percebia então aqueles grandiosos homens de
negócios, emburrados, indo se recolher, com a visível sensação de fracasso, às
suas celas, o que deixava aquele
reles proletário da calada da noite um pouco menos chateado de ter seu precioso
sono repentinamente interrompido.
Já nos
turnos da manhã, quando não havia a possibilidade da soneca, eu procurava me
encher do cafezinho preto que havia à disposição – teoricamente dos hóspedes –
na recepção para sobreviver ao batente, e preencher os imensos vazios de
movimento trocando uma ideia com Severo, aquele meu colega jurássico, que costumava
vir frequentemente até a recepção conversar comigo, tendo como assunto favorito
a proposta de alguma “sociedade” entre nós, para cairmos fora do hotel e
montarmos juntos um negócio. Às vezes ele sugeria uma lanchonete ou um bar, às
vezes uma quadra de futebol, e ia alternando as ideias, repetindo algumas ao
longo dos dias, e sempre nos empolgávamos quando começávamos a ir mais fundo
naqueles devaneios, imaginando os detalhes desse nosso futuro business, e eu percebia os olhos do
velho Seva brilharem como os de uma criança diante da promessa da bicicleta que
seria trazida pelo Bom Velhinho no próximo dezembro.
No fundo, eu
duvidava que ele fosse realmente sair dali um dia, o que me fazia às vezes
pensar que talvez eu não devesse dar tanta corda, para evitar alguma possível
desilusão para o sujeito mais adiante, mas, enfim, não seria eu a destruir
aqueles seus sonhos, não é mesmo?, e a verdade é que eu também acabava por
vezes me empolgando com aquelas ideias, embora não as visualizasse efetivamente
se consolidando no horizonte. E, de qualquer forma, também percebia que aquilo parecia
bastar para Severo, aquele nosso papo ali, eu lhe dando trela, considerando-o realmente
um potencial grande homem de negócios...
- Fechado! –
enquanto os representantes e empresários de verdade faziam o check-out após pagarem sua
“fiança” e iam-se embora, apertávamos as mãos de maneira efusiva quase
semanalmente, sacramentando então o “contrato” de nosso novo futuro business,
que por sua vez provavelmente nunca deixaria mesmo as fronteiras daquela recepção de
hotel.
(Continua)