terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Papai Noel não existe (por Diego T. Hahn)



Aproveitando a sincronia da temática com a época do ano, o nosso Setor de Marketing tem o prazer e a honra e o regozijo e o júbilo, entre outros sinônimos e mesmo pleonasmos de "alegria", de publicar aqui este texto, premiado no Prêmio Sesc de Crônicas "Rubem Braga" (Brasília/DF) no final de 2013 - na verdade, não lembro se já não havia sido publicado anteriormente aqui no blog, mas, como creio que não - pois só recentemente foram distribuídos pelo Sesc os exemplares impressos da coletânea com as crônicas vencedoras (o que garante a tranquilidade, para os autores que têm o intuito de divulgá-los na rede, a respeito de alguma eventual tentativa de furto virtual de propriedade intelectual :) - , e como de qualquer maneira estou com preguiça de verificar no histórico do blog, lá vai! (Ah, sim; aproveitando: Boas Festas e Bom 2016 a todos!):



Não lembro bem do exato momento em que esse fato se deu - o que me parece estranho, já que é de certa forma um divisor de águas: agora você é um mocinho, não é mais tão ingênuo, não acredita mais em tudo que te dizem, sabe que há muito mais coisas por trás das coisas por trás de todas as coisas, e às vezes as pessoas só querem te iludir e...

Bem, enfim, você entendeu: é um divisor de águas. Pois, como dizia, não lembro bem do exato momento em que descobri – ou me contaram – que o bom velhinho não existe, ao menos não aquele bom velhinho, que bom velhinho de verdade mesmo é o vovô e ele não dirige um trenó voador e ele tem como animal de estimação um protocolar cãozinho e não um bando de renas. Não lembro, aliás, se descobri por conta própria ou se alguém me contou, mas não creio que tenha restado algum trauma da revelação; ao menos não tenho registrado na memória algum choque decorrente de tal descoberta...

Penso nisso, no entanto, agora, ao sentir essa melancolia, essa nostalgia, essa tristeza misturada com alegria inundar meu peito, ao flagrar o palhaço, ainda todo maquiado, fora do picadeiro, fumando um cigarro e esbravejando algum palavrão em protesto contra alguma coisa que o incomoda ou contra as agruras da vida em geral, com um tom de voz e uma carranca totalmente diversos daqueles impostados naqueles mágicos momentos de alguns instantes atrás no decorrer do show.

Esse palhaço fora do picadeiro é a vida crua e real. Ele é a revelação que Papai Noel não existe mais uma vez sendo jogada na minha cara, depois de tantos anos.

Não só ele, na verdade, como qualquer artista em geral, quando o vemos “do lado de fora”, falando de qualquer futilidade do cotidiano, como a gente, nos dá uma certa sensação de “pertencimento” ao mundo, uma sensação de que a nossa vida não tem nada de excepcionalmente banal – ela é banal como todas as outras, mesmo aquelas das estrelas – e ao mesmo tempo de desilusão.

Pois sim. No fim das contas, é isso: vivemos de ilusão.

É como ver o ídolo do nosso time indo embora depois de anos de clube e jogando no rival, beijando a camisa adversária como um dia beijou a nossa; é como ver os erros de gravação de um filme; é como perceber que talvez não haja nada além dos erros de gravação.

Mas ainda assim vivemos e continuamos nos alimentando de ilusão. Por mais racionais e duros que sejamos, invocamos vez em quando nos nossos íntimos aquele resquício de magia que tem um quê de infantilidade – ou vice-versa – lá no fundo do peito. Apesar de termos certeza de que tudo isso aqui se resume tão somente a células, carne e barro vagando a esmo pelo espaço, olhamos da janela para o céu estrelado na calada da noite e nos permitimos viajar longe por alguns instantes, solitariamente, em segredo, sem que ninguém mais saiba, naquela nossa nave particular, buscando por um algo mais lá nos confins do universo – ou mesmo em alguma outra dimensão só nossa.

E assim, quando voltamos, por mais desgastados, ranzinzas e céticos que sigamos, continuamos rindo do palhaço – e, de vez em quando, nos flagramos até mesmo dando uma olhada meio de relance, como quem não quer nada, para a chaminé em meio à ceia de Natal.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Nossa Casa (por Juliano Lanius)


(E, voltando das cinzas do litoral catarinense, ei-lo: Mr. Lanius!)

A história de uma casa, dos habitantes que nela vivem e viveram e da relação entre estes moradores – que, mesmo residindo em épocas distintas, ainda assim, influenciam uns aos outros –, podem ser lidas nas marcas do tempo e na ação do homem sobre este lar. O canto da parede, quebrado por uma estante velha, na mudança de volta a casa da sua mãe. A mancha no tapete, deixada pelo cachorro Bob que já se foi. O armário da cozinha que não mantém mais a porta fechada, ou mesmo o bidê do banheiro que agora só serve de enfeite.

Tudo o que se encontra no interior de uma casa guarda um pouco da memória dos integrantes da família. A atual, que reside na contemporaneidade, e a póstuma, que habitou aquele lar em tempos já idos. Na casa da minha vó paterna, por exemplo, as estantes e prateleiras eram o suprassumo das recordações de como viveram meus antepassados. Ao abrir a porta inferior da estante, viam-se patas de animais silvestres empalhadas – lembranças das caçadas do vovô. Também era possível encontrar um abridor de garrafas gigante, trazido de Itu (SP), também pelo meu avô. Dizem que lá tudo é grande. Ao descerrar outra porta da tal estante, era possível olhar fotografias dos tempos de criança dos meus avós, em uma daquelas mini lunetas, sabem? Aquelas em que só era possível visualizar nitidamente a imagem quando direcionávamos o artefato para a luz. Lembram-se disso?

Contudo, o mais interessante, na época em que frequentava diariamente a casa da vovó, era sua máquina de costura. Eu ficava horas “pedalando”, assistindo a agulha subir e descer tão rápido quanto eu pudesse fazer girar aquela roda. Certa vez, quase perdi uma unha na máquina de costura da vovó. Concentrado em meus pensamentos, coloquei o dedo debaixo da ponta da tal agulha e baixei seu nível, com um toque sutil no pedal, até tocar a superfície da minha unha. Mergulhado no desafio de não furar meu dedo e, ainda assim, correndo o risco de fazê-lo, assustei-me com o barulho da vovó entrando no quarto e pedalei com força a máquina, o que fez com que a agulha penetrasse no meu indicador direito. Num reflexo impensado, puxei meu dedo para fora da máquina, deixando metade da unha na agulha. Pelo menos, restaram os outros 50%. Não contei a ninguém, pois sabia que vovó não gostava que mexessem em sua máquina. Afinal de contas, aquela geringonça foi o sustento da família por anos. Mas, no fundo, sei que ela adorava que falassem e tocassem nas coisas que pertenceram a sua família. Era a história passada adiante.

Todas as casas possuem detalhes que só aqueles que conhecem os 
cantos mais remotos da residência podem dizer o porquê de serem assim ou estarem ali. As casas e seus moradores possuem segredos entre si, os quais não revelam a ninguém. São confidentes, nas horas boas e nas ruins. As casas entendem seus moradores, e vice-versa. Só nós sabemos o cantinho mais fofo do sofá, ou qual almofada não faz doer as costas. Só nós sabemos qual panela não vai queimar o arroz e em quanto tempo o congelador leva para deixar aquela cerveja no ponto que gostamos. “Abre bem o chuveiro se não cai a luz!”, dizemos aos que nos visitam. Os moradores e suas casas sabem bem um do outro.

Contudo, há aqueles que não têm casa. Talvez o céu seja o destino fadado aos seus olhos cansados. Ainda assim, a rua não deixa de ser uma casa. Uma casa iluminada, durante o dia, por uma imensa luz chamada Sol. E mantida sob vigilância, na calada da noite, por uma guardiã chamada Lua. O Sol, nos dias frios, aquece a alma perambulante daqueles que não têm paradeiro. A Lua, junto com suas companheiras menores, as estrelas, ilumina o caminho incerto dos errantes. As ruas são os corredores da imensa casa onde habitam os desabrigados. As marquises, as praças e as vielas são os leitos destes corpos sujos e exaustos. Mesmo assim, tenho certeza de que ainda guardam nos farrapos as lembranças daquela esquina ou daquela rua, que lhes serviu de parada em certo momento da vida.

Enquanto isso, no abrigo de nossos lares, nossa cama ainda faz aquele rangido quando viramos de lado. Se estiver pensando em trocar a sua, lembre-se de que a velha, aquela que já tem seu corpo desenhado no colchão, já te fez bem. Deixe, então, que outro ainda faça proveito de suas derradeiras qualidades. Não a jogue ao vento simplesmente, ofereça a alguém. Proporcione um momento de felicidade e de pertencimento ao outro. Faça alguém sentir-se dono de sua própria cama, nem que seja por uma noite. Afinal de contas, quando não estivermos mais neste mundo, sem nossa casa, sem nosso lar, ou o que consideramos como um, restarão somente as lembranças. E que estas sejam felizes.


sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Pelos sebos da vida: "Reparação", de Ian McEwan (por Diego T. Hahn)


Bom, depois de quase dois meses de ausência aqui do espaço (não vamos dar desculpas do tipo "muito trabalho", etc; foi por vagabundagem mesmo - ao menos da parte de um, que tá morando de frente pro mar...), que ocasionaram furibundos protestos da parte dos incontáveis fãs do De Letra ao redor do mundo, resolvemos dar cabo das traças virtuais  aqui e voltar à ativa com esta resenha, que, na realidade, já estava engatilhada há um bom tempo - e só ainda não havia sido publicada devido ao excesso de trabalho. He. Eis aqui então a nossa reparação - obviamente não podia deixar passar o tradicional  e infame trocadilho deletrista - :


Cara, enquanto remava lá pela primeira parte da leitura, e por mais esperança que lá no fundo pudesse nutrir, jamais imaginaria proferir na sequência esta sentença... Que pusta livro!! 
 
 
Mas Reparação, do inglês Ian Mc Ewan (não confundir com o Magneto, Ian McKellen), ao meu ver, é mesmo um teste de paciência; você precisa se armar dela para enfrentar as primeiras cerca de 80 páginas, que passam num determinado ritmo, um tanto quanto lento, com altas doses de ensebação num aparentemente dia qualquer (que, porém, ao cabo do primeiro ato não se mostraria um dia qualquer e cujo ápice deixa claro que tudo vinha sendo minuciosamente preparado desde a primeira página) de uma família aristocrata britânica. 

O McEwan...
 
De repente, saímos daquela pasmaceira anterior, num salto de uma página, para o meio da guerra - a Segunda Guerra Mundial. 

E o McKellen.
 
Além do "ganho literário" por si, a empreitada valeu também pelo aprendizado histórico, digamos assim, tendo ficado instigado a googlear na sequência e captar mais sobre a Linha Marginot, da qual já tinha ouvido falar vagamente - mas não sabia ao certo do que se tratava, confesso minha ignorância... e confesso também minha ignorância antes dessa leitura a respeito do espetacular episódio da evacuação de Dunquerque, retratado no livro (os aliados já haviam se aventurado pelo continente antes do dia D, porém haviam sido dramática, humilhante e literalmente corridos à bala, tendo que voltar numa enorme procissão humana esfarrapada para a costa francesa onde se aglomeraram ao longo da praia esperando pelos navios de socorro e sendo acossados constantemente pela impiedosa força aérea alemã), também conhecida como Operação Dínamo.

   Foto histórica de gigantesca "fila de espera" dos soldados aliados pelos navios de socorro em praia do oeste francês.
 
A história começa, como dito antes, com um dia aparentemente comum, na propriedade de uma tradicional família inglesa, quando Briony, uma garota de 13 anos e que gosta de escrever (peças, histórias, etc), vê a um certo momento da tarde da janela do seu quarto uma cena que a deixa intrigada e desconcertada: sua irmã alguns anos mais velha, Cecilia, sob o olhar do velho amigo de infância (e filho de uma empregada da família), Robbie, tira saia e blusa e mergulha, de calcinha e sutiã, na fonte do quintal. A partir daí e de uma sequência de suposições por parte da garota e de novos fatos que vão surgindo no decorrer daquela tarde/noite, acontece algo que marcará o futuro de todos os presentes naquela ocasião.

                            Como já dizia Raulzito: "Keira... basta ser sincero e desejar profundo..."
 
Por incrível que pareça, embora com a eterna e clichê ressalva a respeito da relação livro/filme, a obra cinematográfica (abrasileirada como Desejo e reparação - no original de filme e livro, em inglês: Atonement) conseguiu ser suficientemente fiel ao original literário e ao mesmo tempo dar uma arriscada (especialmente no final - devo confessar, até mesmo, que, como sou meio burro, o final do filme me ajudou a compreender melhor o final do livro), ao meu ver com relativo sucesso.
 
Bem, devo dizer que, apesar do clima um tanto quanto soturno do livro, algumas partes me fizeram até mesmo dar umas boas risadas - evidenciando a catega do autor britânico também no fino trato com a arte da ironia em certas passagens -, como esta, na qual Briony, então crescida, caminha pelas ruas da capital inglesa trajada como enfermeira e com um mapa nas mãos numa folga do hospital onde trabalha:
 
"Cada vez que o desdobrava, o mapa corria o risco de se despedaçar. E Briony temia a impressão que poderia causar. Os jornais falavam de paraquedistas alemãs, disfarçadas de enfermeiras e freiras, se espalhando pelas cidades e se infiltrando na população. O que as caracterizava era estarem sempre consultando mapas; ao falar com elas, podia-se identificá-las atentando para seu inglês excessivamente bem falado e pelo fato de que desconheciam as tradicionais cantigas infantis inglesas."
 
Outras, bastante reflexivas (especialmente o trecho em negrito mais abaixo, que poderia servir, inclusive, para uma avaliação mais ampla do nosso atribulado cotidiano, com todas as suas complicações no relacionamento com o outro):
 
"Parada no quarto, aguardando a volta dos primos, Briony deu-se conta de que poderia escrever uma cena como aquela ocorrida junto à fonte e que poderia incluir um observador oculto, como ela própria. Imaginava-se agora correndo para seu quarto, pegando um bloco de papel pautado e sua caneta-tinteiro de braquelita marmorizada. Já via as frases simples, os símbolos telepáticos se acumulando, fluindo da ponta da pena. Poderia escrever a cena três vezes, de três pontos de vista; sua excitação era proporcionada pela possibilidade de liberdade, de livrar-se daquela luta desgraciosa entre bons e maus, heróis e vilões. Nenhum desses três era mau, nenhum era particularmente bom. Ela não precisava julgar. Não precisava haver uma moral. Bastava que mostrasse mentes separadas, tão vivas quanto a dela, debatendo-se com a ideia de que as outras mentes eram igualmente vivas. Não eram só o mal e as tramoias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de aprender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisava ter."
 
Além de questões como culpa e perdão, estão em jogo ao longo de toda a obra, como resumido na análise contida na contracapa, "uma reflexão sofisticada sobre a natureza da literatura, seus poderes e limitações".

Enfim, o cara pode até não ser o outro Ian - o McKellen - mas sua leitura também é magnética (eu sei, eu sei, perdão!) e, como particularmente foi o meu primeiro do autor britânico lido até aqui, ao cabo desta missão literária ficou a curiosidade atiçada a respeito de outras obras de sua autoria; assim sendo, se alguém aí tiver uma sugestão de alguma outra coisa quentucha de Mr McEwan - que me parece mesmo ser um autor não tão "explorado" em  terras tupiniquins, pelo que andei conversando na sequência desta leitura até com alguns supostos intelectuais e/ou pseudo-intelectuais locais, que igualmente não conheciam nada ou quase nada do cara - , trate de nos dar esse toque* (ou mande mesmo sua própria resenha pra gente postar aqui). Gratos.
 
 
*Só, por favor, não venham indicar os filmes dos X-Men - que os trocadilhos e piadinhas sem graça fiquem restritos às postagens no blog... Obrigado pela compreensão!

 

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Um Mundo Noutro Mundo (por Danilo Gudolle)


Seguindo nos nossos intercâmbios "interdimensionais", temos o prazer de publicar agora aqui no De Letra este singelo poema enviado diretamente da capital do país pelo camarada Danilo Gudolle, antigo parceiro de zoeiras turismólogas, também conhecido como o "Man". O poema é dedicado - contando com o perdão pelo "spoiler", Man e galera - à sua "manzinha" recentemente chegada neste mundo lá pras bandas do Planalto CentralEi-lo, pois:

Dei uma pausa no mundo
Para viver um mundo noutro mundo
Um mundo doce
Alegre;
Repleto;
De tudo mais suave
De tudo mais devagar
De tudo que vale a pena ser vivido
Num mundo amigo
Que vale esperar
Para viver cada segundo
Intenso, no meu mais novo mundo


sexta-feira, 31 de julho de 2015

Pelos sebos da vida: "Constantine - Pandemônio", de Jamie Delano (por Diego T. Hahn)


E ei-nos de volta aos quadrinhos.




Após algumas resenhas reminiscentes dos tempos de infância - Sombra, Wolverine, Hulk - abordaremos agora algo mais atual - na verdade, o mago inglês nem é tão "novinho", ele surgiu em 1985, numa história do Monstro do Pântano (ôpa, outro carinha que tá merecendo umas linhas aqui uma hora dessas!...), criado por Alan Moore (esta semana, por sinal, concluí uma baita história do Constantine, Sangue Real, na qual ele enfrenta um espírito maligno incorporado num membro da família real inglesa, e o mesmo espírito que supostamente havia sido o que teria incorporado um século antes no Jack, o Estripador, e, por - dupla - coincidência, ganhei de presente - atrasado - de aniversário nesses mesmos dias uma baita HQ também do Alan Moore, chamada Do Inferno - e que trata da história de quem?, de quem? - sim, dele, do velho Jack...) mas digo atual por eu particularmente só ter tido mais contato com o personagem há pouco tempo.

Há algum tempo atrás, por sinal, escrevi - em algum lugar - que o Sombra era meu personagem das HQs favorito. Pois tenho que me auto-corrigir a mim mesmo por conta própria (o superultrapleonasmo é proposital, camarada) e dizer que John Constantine está hoje, ao menos, no mesmo patamar do alter ego de Lamont Cranston.




São personagens muito interessantes, mas, não querendo compará-los também, pois são bem diferentes, mas já comparando-os, o Sombra é um cara mais "refinado", digamos, adepto de um linguajar mais elaborado e um modo de agir mais discreto, enquanto o mago inglês é mais sacana e sagaz nas suas observações e um cara mais povão: frequenta pubs, mija e vomita pela rua, etc.
Varzeano mesmo.

Por isso, hoje, me identifico mais até com o Consta.


E, entre tantas, uma história muito do caralho mesmo dele que possuo nas minhas fileiras é Pandemônio, escrita por Jamie Delano e desenhada por Jock (é, este é o pseudônimo do artista de nome Mark Simpson). 




É uma edição de 2010, comemorativa dos 25 anos da primeira aparição do personagem. 

E saca só o texto da contracapa: 

"Ardiloso, cheio de lábia, mago operário, punk zombeteiro... Um verdadeiro filho da mãe!

Em 1985, John Constantine surgiu nas páginas de Monstro do Pântano pelas mãos de Alan Moore. Desde então, o mago tornou-se um dos maiores anti-heróis das HQs, atraindo uma legião de fãs.

Agora, para comemorar o 25º aniversário de sua primeira aparição nos EUA, o roteirista original da série Hellblazer volta ao personagem. E levará John Constantine, o homem que conhece quase todos os infernos possíveis, a um dos poucos inferno que ainda não conhece:
a linha de frente da guerra."


A treta, no caso, é a seguinte (e eventuais spoilers - desde que não tão abusivos, tipo contando o final da trama - neste caso até que são bem-vindos, pois a história é bastante complexa - eu, por exemplo, como sou burro, precisei ler 2 vezes pra captar bem todos os detalhes e tals - e o amigo que resolver se aventurar nela talvez até me agradeça por esta introdução preliminar):


Constantine é atraído por um rabo de saia para uma cilada armada por uma dessas organizações terroristas internacionais (no caso, uma chamada "Serviço Secreto Inglês"), que o chantageia e acaba forçando-o a ir parar no... Iraque! Isso mesmo, entre os velhos e bons Tigres e Eufrates, na época pós-invasão da coalisão americana-inglesa-e-o-diabo-a-quatro - e o mais legal de tudo dessa história - que até poderia ser considerada um "libelo anti-bélico-expansionista-etc" - talvez seja exatamente que Constantine, encarnando o típico exército de um homem só, mas num contexto totalmente caótico que nem mesmo ele conhecia, chuta para todos os lados e não perdoa ninguém nessa trama sórdida.



Bem, mais do que isso não vou dizer - quem quiser, que compre a parada - são só 20 pratas (mas, como não, não ganho comissão nem nada da Vertigo, você pode ler online, baixar, etc, ou posso emprestar também o produto... desde que me devolva o mesmo e não faça como o calhorda do Diogão, que perdeu o meu 1984!... %#)¨&¨@!!).


Ah, só dando mais uma pincelada a respeito do histórico do personagem em geral, Constantine teve em 2005 uma adaptação para o cinema, que até achei divertida, mas que teve muitas críticas por parte dos fãs do personagem - como quase sempre acontece com alguma adaptação do mundo dos quadrinhos - , e uma das principais, veja você, é de que o Keanu Reeves, que interpretou o mago fanfarrão, tem cabelo preto, enquanto o Consta é loiro - para quem não sabe, o anti-herói foi criado por Alan Moore com inspiração na figura do cantor Sting.


                       É, então é mais ou menos esse o lance, no fim das contas:
                       "Every little thing he does is magic..." (não, não podia perder essa...)

sexta-feira, 3 de julho de 2015

"O sumiço das crianças-pardais" (por Antonio Neto)


Em mais uma parceria literária inter-regional, temos o prazer e a honra agora de publicar aqui no "De Letra" esta crônica do novo amigo e "irmão de ofício" das letras Antonio da Silva Pereira Neto, professor de Língua Portuguesa da rede pública de ensino do Espírito Santo (por coincidência, o cara vive numa cidade "xará", Santa Maria do Jetibá). Essa parceria nasceu após termos entrado em contato um com o trabalho do outro (e uma subsequente rasgação de seda - "cara, muito bom o teu texto!", "não, o teu que é, velho!!") através da recentemente publicada e distribuída coletânea dos premiados no Prêmio SESC de Literatura - Crônicas Rubem Braga - edição 2013, da qual tivemos ambos o prazer de constar - o Antonio com nada mais nada menos que o 3º lugar (exatamente com a crônica apresentada aqui) nesse certame nacional organizado pelo SESC de Brasília.
(Parabéns mais uma vez aí, Antonio! - e que nos dê a honra qualquer hora dessas de outros textos de sua autoria pintando aqui pelo blog!...)


Nasci e cresci numa vila periférica, proletária. Suas ruas sem calçamento liberavam poeira nos dias calorentos e muita lama nos chuvosos. Vira-latas misérrimos perambulavam de um lado para o outro, à procura de algum resto de comida.  As casas eram separadas por cercas precárias, feitas de taquaras, ripas e arame farpado. Pobres e pequenas casas sem reboco, sempre por acabar, sempre esperando por uma reforma ou ampliação que nunca chegavam...

   Os terrenos baldios proliferavam e emprestavam-se para abrigar provisórios depósitos de lixo e entulho. Outros tinham mais sorte e, cuidados por mãos laboriosas, tornavam-se hortas e plantações de milho ou mandioca. Esses terrenos baldios eram a poupança de famílias mais abastadas que os compravam e os deixavam lá, esperando valorização. Alguns desses terrenos, os mais privilegiados, serviam de playground para a criançada da vila. Viravam improvisados campos de pelada, território das lendárias partidas de taco, das batalhas antológicas com sementes de mamona, épicas partidas de queimada, brincadeiras de roda, campeonatos interplanetários de bolinha de gude, enfim, eram um universo paralelo de diversão naquela vida sofrida do subúrbio!

   Ao longe, do alto do morro, avistávamos a linha do trem: R.F.F.S.A. (Rede Ferroviária Federal S.A), que levava os exércitos de trabalhadores em vagões superlotados para trabalhar na capital; pais e mães que saíam de madrugada e só voltavam ao anoitecer, deixando aquela criançada aos cuidados de vizinhos samaritanos, tias, avós ou à própria sorte!

   Aquelas crianças encardidas, malvestidas, despenteadas eram os pardais da periferia: as crianças-pardais. Eu fui uma delas. Sem a beleza das crianças das propagandas da televisão, nossa única beleza residia nos sonhos que materializávamos em nossas brincadeiras. Tão pobres e esquecidos no mundo, tão cheios de imaginação!

   As crianças-pardais guardavam, em recantos secretos, uma gama enorme de tesouros: bolinhas de gude, figurinhas, tampinhas de garrafas de refrigerante, moedas fora de circulação, insetos exóticos e já mortos, e muitas outras preciosidades infantis.

   A felicidade era o nosso tesouro mais precioso, mas ainda não sabíamos... Ah, de quanta felicidade é feita a trama da infância! A nossa infância de crianças-pardais foi tecida por fios de ouro, saídos de corações maternos e paternos que nos zelavam e enfrentavam toda sorte de vicissitudes para nos sustentar, material e espiritualmente, e para nos garantir saúde e educação em tempos de angustiantes incertezas no Brasil.

   Fomos livres, fomos sonhadores: piratas, caçadores, astronautas, atletas, guerreiros medievais!  Tivemos ilhas de Mata Atlântica que resistiam no Alto Tietê! Conhecemos o rio Guaió ainda virgem! As raras bicicletas daquele tempo nos levavam para aventuras que ficavam além do tempo e do espaço! Descalços, desprovidos de beleza, de refinamentos, mas felizes!

   Hoje, quando volto para a minha terra, encontro ruas pavimentadas, congestionadas por automóveis e motocicletas nervosos, que me amedrontam! 

   Aquelas antigas e pequenas casas estão diferentes, ampliadas e melhoradas, são cercadas por altos muros, enfeitados com pregos, cacos de vidro e lanças pontiagudas. Câmeras vigiam a entrada das residências e dos comércios. O medo passeia pelas vias sem ter medo de nada!!!

   Os quintais quase que desapareceram. Nos portões, sempre trancados, aparecem cães enormes, donos de bocarras assustadoras. Tão diferentes dos frágeis vira-latas que conheci nos meus tempos de criança!

   Modestos condomínios de prédios suburbanos enfileiram-se, como florestas de aço e concreto, acinzentando o horizonte. Em suas janelas aparecem estranhas crianças, desprovidas da alegria natural e da feiura graciosa das crianças-pardais. Pobres crianças do século XXI, prisioneiras de apartamentos e quintais cimentados e gradeados, reféns da tecnologia e do medo. Têm uma vida cheia de tudo o que nunca tivemos nem ousávamos querer, mas não se parecem nem um pouquinho com as encantadoras crianças-pardais, das quais eu fui uma.

   Por onde voarão as crianças-pardais? Foram extintas ou ainda vivem no coração dos adultos que sobreviveram ao século XX?

   Na aquarela da memória, eu as vejo todas. Belas, eternas, pobrezinhas! Sofredoras, encantadoras, agrestes e destemidas crianças-pardais!

 

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Pelos sebos da vida: "O amor nos tempos do cólera", de Gabriel Garcia Marquez (por Diego T. Hahn)


Em ocasião do Dia dos Namorados, republicamos aqui, com as devidas edições, este texto (originalmente postado no blog em julho de 2013) sobre um dos maiores clássicos de Gabriel Garcia Marquez.

Bem... cara, não é que eu seja um sujeito insensível nem nada assim, mas, ultimamente quando vejo a palavra “amor” no meio do título de um filme ou livro, costumo fingir que nem vi e passar reto (abri uma exceção mais recentemente para aquele filme francês dos velhinhos, que, putz!, vai bem na contramão do que mencionarei abaixo a respeito da impressão que me passam, a princípio, obras com títulos contendo aquela palavra, e, esse sim, mereceu respeito!)... 
Sei lá, isso provavelmente por me remeter à profusão de comédias românticas “mela-cueca”/“água com açúcar”, esses enlatados (geralmente hollywoodianos) todos meio parecidos – e às vezes muito forçados – dos últimos tempos (lembro sempre de ter ido certa vez ao cinema assistir o tal “Cidade dos anjos”, aquele com o Nicholas Cage, e acompanhar atônito  aquela choradeira de boa parte da plateia no final do filme... Eca! – esse já não é tão novo, é verdade, mas é um bom exemplo de filme romântico que fez sucesso e eu achei um grude melequento dos infernos e deve ter ajudado mesmo a me “traumatizar"... me vem até de dizer que Cidade dos anjos, O CARALHO, filmaço romântico de fazer chorar mesmo é Cidade de Deus, POOOORRAA!!)...
Pois, bom, para provar que não tenho um coração de gelo e sou, sim, também um cara romântico, deixo registrado aqui que gosto bastante, só para exemplificar alguns, dos filmes “Em algum lugar do passado” (com seu paradoxo do relógio, que faz o pessoal da geração mela-cueca virar mela-cuca por quase fundir a mesma ao se indagar, “mas, como é possível...?”, mostrando que são românticos de meia tigela, afinal o ponto-chave da história, o verdadeiro romance dela – e, por que não?, da vida em geral – está exatamente aí, no paradoxo, no impossível... ahá! Essa ficou boa), “Antes do amanhecer” (com seus diálogos originais e bacanas e não aquele costumeiro festival indiscriminado de “eu te amo!” e “você me completa!” Puta que pariu!! Às vezes parece que o cara tá vendo alguma música do Só para contrariar na tela!), “Brilho eterno de uma mente sem lembranças” (não se deixe levar pelo preconceito contra o Jim Carrey; embora ele esteja bem e não comprometa neste, de qualquer forma a Kate “Titanic” Winslet não deixa a peteca do filme cair – o que seria difícil de qualquer maneira, devido à ótima trama, ganhadora inclusive de Oscar de roteiro original), e “Cinema Paradiso”, o clássico italiano do Bertolucci, que já vi e revi e provavelmente vou rever ainda, por estar mesmo no meu top 10 cinematográfico (e isso numa classificação “geral”, veja bem, e não só entre os famigerados filmes românticos!)...
Bom, mas, enfim, feita aqui a minha defesa, não era sobre isso que queria falar exatamente. Ao menos não sobre filmes (embora vá mencionar ainda mais um na sequência). Mas sim sobre um livro, que tem o tal “amor” no título também, mas, felizmente, está longe de ser um mela cueca ou um água com açúcar... não, esse sim é que é um romance romântico de verdade, meus amigos!

A partir de agora, cuidado, há a possibilidade/ probabilidade de spoiler no lance (spoiler, sempre dando o toque pra quem não sabe, é o ato fdp de “entregar o ouro”, contando partes importantes e/ou até mesmo o final de uma determinada obra).
 

Neste romance do mestre colombiano, no qual não há, diga-se de passagem, nenhum Buendía perdido pelo caminho, o protagonista é Florentino Ariza, que desde garoto é apaixonado pela bela Fermina Daza e com a qual se corresponde através de cartas na juventude. O pai desta, porém, ao descobrir aquele flerte, manda Florentino procurar outros ares, pois não o considera um pretendente à altura para sua filha... eles acabam por afastar-se um do outro e em seguida ela casa com um dotô rico que chega na cidade.
A partir daí, Florentino Ariza decide esperar pela amada, nem que leve a vida toda para ficarem juntos – e (SPOILER! SPOILER!) é quase o tempo que leva mesmo para isso finalmente acontecer... vale salientar que, embora sempre com a amada no pensamento, Florentino não se abstém das outras mulheres do mundo: não, pelo contrário; o sujeito passa o rodo em simplesmente TODO rabo-de-saia que cruza seu caminho... porém, romanticamente, sempre pensando na amada (digamos assim que numa espécie de treinamento para quando, um dia, eventualmente viessem a ficar juntos)...
 

Foi feita uma versão hoolywoodiana do livro para o cinema (com o Javier Barden no papel do Florentino Ariza e Fernanda Montenegro como mãe do protagonista), que, digamos, até que não é tão má (vale essencialmente pela presença da belíssima Giovana Mezzogiorno no papel da Fermina Daza)... mas... hummm... sinceramente, achei meia boca e não recomendaria com muita ênfase (pra não dizer que definitivamente não recomendo, ou, ao menos, recomendo que se leia primeiro o livro – e depois, ok, se assista o filme e se decepcione com ele! Mas não se faça o caminho inverso, para não estragar o ótimo romance... e, bem... na verdade, para essa dica fazer sentido, o leitor não deveria nem estar lendo esta resenha, certo?... assim sendo, se leu até aqui, fazer o quê, né? Obrigado pela preferência! Já não precisa mais ler o livro, pois contei-o todo aí em cima e não precisa mais assistir ao filme, já que o que vale nele é a Giovana e é ela está aí embaixo pra você...).
Enfim, isso é que é romantismo de verdade, sem aquela pieguice grudenta da maioria dos últimos filmes e livros de “amor” da vida... fica a dica para a geração mela-cueca, de um grande romance romântico, que pode dar inclusive aos sonhadores de plantão algum alento ao se fazer vislumbrar aquele romance perdido no passado que você tanto fantasia ressurgindo um dia – e, ao menos no caso do livro, concluindo-se num futuro (beeeem) distante com um, literalmente, final feliz.

Ps: Ah, sim, o cólera (ou “a” cólera) do título se refere não à ira, fúria, e sim à doença transmitida pelo vibrião colérico (ver livros de biologia do segundo grau)...

A trama do livro se passa na Colômbia de Garcia Marquez numa época de epidemia da mesma que dizimou boa parte da população e que, aparentemente sendo mais uma dificuldade imposta pelo destino aos amantes, dando um tchan a mais no romance, no fim das contas acaba mesmo por ajudar a uni-los.

Moral da história: sem dúvida, pode haver vida inteligente em romances com o amor no título - às vezes, contudo, talvez seja necessário tão somente um leve contraponto a ele para se atingir o devido equilíbrio.

  

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Messias Colorado (por Diego T. Hahn)


(Em virtude do 1 ano da morte do nosso grande Capitão, registrado ontem, 7 de junho, publicamos aqui em primeira mão - com a deduzida anuência do colega tricolor Juliano : ) - esta singela homenagem, que faz parte da coletânea de crônicas "Minha Camisa Vermelha"...
Obs: A crônica foi escrita alguns meses antes da morte do eterno ídolo colorado
)



Os humildes serão exaltados. Até a essa nos agarrávamos nos famigerados anos 90. Qualquer coisa, qualquer ínfima esperança, servia para manter o resquício do que ainda tínhamos de orgulho pulsando... Autoajuda, religião, sapos enterrados, só faltava futebol.

O mundo realmente quase acabou na virada de 1999 para 2000, mas sobrevivemos, e, como o que não te mata te torna mais forte, apesar de mais um susto ali pelo início da nova década, a luz começou a aparecer no horizonte (e felizmente não era aquela luz).

Logo começaram a aparecer os caras certos na hora certa, o que lhes dava àquelas alturas tons messiânicos.

Um líder supremo – do qual eu ouvira falar pela primeira vez da boca de um amigo, em meio à desgraceira dos anos 90, devia ser 93 ou 94, logo após levarmos uma sova do Parmera/Parmalat em pleno Beira-Rio, no qual eu havia presenciado in loco o massacre, 0x2, com direito a Edmundo escorando na trave antes de botar a bola pra dentro e tudo, ouvi desse cara, como um último recurso de esperança, abandonando o então presente e agarrando-se desesperadamente a uma remota possibilidade no futuro, sorrindo um sorriso meio agoniado, "tem um cara, um tal Fernando Carvalho, que dizem que tá ajeitando as categorias de base do Inter".

Um general estrategista e resmungão com jeito de vencedor – o momento da virada, literalmente, foi quando em 2003 Muricy colocou uma gurizada, Diego, Diogo, Vinicius, Daniel Carvalho, toda oriunda das tais categorias de base que seriam ajeitadas alguns anos antes por aquele tal Fernando Carvalho, pra cima do rival em pleno Olímpico e reverteu um 0x1 em 2x1 pra gente, fazendo-nos ganhar um Gre-Nal depois de 2 ou 3 anos sem aquele gostinho, quando já estava parecendo a coisa mais natural do mundo perdermos clássicos, e perdermos em geral.
O rival parecia atônito com aquela vitória daqueles garotos colorados na casa deles, mas depois devem ter pensado “ah, enfim... só um Gre-Nal...”. Mas não, não foi só um Gre-Nal. Foi o começo da revolução.

O exército estava se remobilizando. As barricadas haviam contido com a devida bravura os aríetes do – até então cruel para nossa gente – inimigo chamado destino, que logo trairia o outro inimigo, até então seu aliado, e faria um novo pacto de não agressão conosco. As tropas começavam a deixar as trincheiras e avançar pouco a pouco pelos campos de batalha, enquanto estandartes vermelhos voltavam a despontar em cantos dos mais diversos do Rio Grande. Era a resistência sentindo que seu momento finalmente chegara.

Mas ainda faltava o capitão para coordenar esse batalhão no campo de batalha. E ele não podia ser qualquer um. Os heróis épicos geralmente são altos, traços rústicos e imponentes, longas melenas revoando ao vento e voz de trovão.

Pois foi ele quem veio de longe, cruzando o oceano, e, surgindo das águas enlameadas do Guaíba, tal qual um Messias Colorado, mal havia se limpado e descansado da viagem, colocaram-no na principal batalha da província, jogaram-no aos leões, e ele, indiferente ao perigo e talvez ainda inconsciente do seu épico destino, cravou sua espada no coração da fera e começou a escrever seu nome na História ali, já na chegada.¹

Mas não era nada ainda. Vencer o rival naqueles anos viraria rotina. Ele ajudaria, por exemplo, a derrubá-lo, selando o destino do inimigo, no mesmo ano de 2004 ao golpeá-lo uma vez nos 3x1 em plena fortaleza alheia e mandando-o para o fosso (junto com os carrinhos de pipoca) com o qual aquele já tinha certa intimidade e onde ficaria enclausurado por mais um longo ano.²

Mas isso não nos interessava. Amar e mudar as coisas me interessa mais, já dizia Belchior, e devia pensar aquele cara.


 E assim o exército cercava a América. Não havia escapatória. Logo viria a libertação.


E aí o cara e seus asseclas devem ter pensado "se chegamos até aqui, por que parar agora?".

E as hordas vermelhas avançaram. Avançaram até a dita terra do sol nascente. E, embora jurássemos ter fé, a verdade é que já estávamos contentes e no nosso íntimo não acreditávamos que, tal qual um império romano da vida, pudéssemos mesmo tudo dominar. Mas no fim das contas lá estava aquele cara, o tal Messias Colorado indiferente ao impossível, erguendo mais um troféu, e mostrando quem mandava nesta Terra, e então compreendíamos no nosso âmago o significado daquele epíteto do país nipônico, pois enfim o sol realmente nascia para nós.

E seguiu derrubando barreiras, erguendo novos troféus e nos brindando com os espólios. Dizem, inclusive, que se foi por não aguentar mais: estava desenvolvendo uma bursite no ombro, tal o esforço de ter que ficar erguendo taça a toda hora.

Sua repentina partida foi um choque. À época quisemos acreditar que, mais cedo ou mais tarde, um dia ele voltaria, mas isso não aconteceu. Ao menos não no campo, e talvez tenha sido melhor assim, pois o que resta é a sua imagem imortalizada com a nossa bandeira cravada no topo do mundo.
Foram longos e breves quatro anos. Anos de felicidade. Os anos da virada. E, quando um símbolo assim se vai, fica a princípio melancólica sensação que o fim está próximo...

À época, o rival tricolor deve ter vibrado enfurecidamente no seu íntimo com a notícia da sua partida.

Mas, para desgraça deles e mostrando que não, o fim ainda não havia chegado, para substituir Fernandão no comando do exército naquele mesmo ano desembarcaria em Porto Alegre um tal Andres D´Alessandro...


¹ Internacional 2x0 GFBPA – no dia 10/07/2004, no estádio Beira-Rio, pelo Campeonato Brasileiro, a estreia de Fernandão pelo Inter, na qual marcou o gol 1000 da história dos Grenais.

² GFBPA 1X3 Internacional – no dia 23/10/2004, pelo Campeonato Brasileiro, o Inter sacramenta matematicamente em pleno estádio Olímpico o rebaixamento do rival, cuja torcida, enfurecida, passa a jogar carrinhos de fazer pipoca no fosso.


sexta-feira, 29 de maio de 2015

Qualé, Seu Carlos??? (A despedida do Sebo Café)


E, como se não bastasse, não é que temos mais uma vultuosa perda literária para a cidade?

Insensíveis aos apelos e lamentos de boa parte da comunidade santa-mariense - inclusive de alguns frequentadores mais desesperados - , o Seu Carlos e a Dona Simone estão de partida, com seu Sebo Café, gatos, e tudo mais, para o litoral paulista...

Esta sexta-feira, 29 de maio, marcou o último dia de funcionamento do local (estive lá e, embora o Sebo tivesse costumeiramente um bom público, impressionei-me com a quantidade de gente presente na simpática casa colorida da Floriano, o que me fez pensar que se você quiser vender bem na cidade uma boa tática talvez seja dizer que você vai embora... será que é jogada de marketing do Seu Carlos - pra não dizer uma pegadinha - e segunda-feira ainda os encontraremos por lá??).

Vão fazer falta, certamente.

Fazer o quê?
Segue o baile (ainda temos, do meu conhecimento, pensando assim de relance, o Sebo Fulô, perto das Dores, e aquele outro da Riachuelo - perdão, mas não lembro o nome agora; procurei no oráculo googliano e não achei essa informação... e quem tiver notícia de outros, por favor, coloque-nos a par!).

Boa sorte, Seu Carlos!, e, como homenagem de despedida, reproduzimos aqui abaixo então este post que havíamos publicado há uns dois anos no De Letra...


Bom, pra tentar amenizar a saudade que a Feira do Livro, com todo seu vuco-vuco e seus interessantes saldos e descontos, vai deixar aí a partir da próxima segunda, vamos aproveitar este espaço para destacar alguns locais nos quais podemos encontrar uma boa leitura e um ambiente aconchegante na nossa Santa Maria, começando hoje com o Sebo Café (não, infelizmente o seu Carlos não está nos pagando “jabá” nem nada assim), localizado na Floriano Peixoto, um pouco abaixo do Bar do Pingo (mais fácil de situar eventuais leitores pinguços).


Você, chegando pela calçada, vê aquela portinha com aquela escadariazinha estreita e a princípio pode acontecer de não dar nada pelo lugar (analisando - e viajando - um pouco agora, poder-se-ia dizer que há um quê de Alice de Carrol, com suas portinholas e por trás delas todo um universo fantástico, aí).  


Pois é a velha história: não julgar um livro pela capa (ainda mais em se tratando de um sebo!)... ao adentrar o recinto, você se perde em um incrivelmente longo corredor, em meio a um oceano de livros – e também CDs, vinis, VHS (para quem não sabe ou não lembra o que é, trata-se da “fita” com a qual se assistia filmes no videocassete, antes de essa ser substituída pelo cd... você não sabe o que é cd?? Bom, deixa pra lá)...
No local, funciona também o Clube dos Enxadristas de Santa Maria.

Quando lá me perdi uma tarde dessas, levei cerca de duas horas para me achar outra vez, e foi quando flagrei-me então diante do caixa com quatro livros em mãos (Os Duelistas, de Joseph Conrad; Armas no Cyrano´s, de Raymond Chandler; Nosso homem em Havana, de Graham Greene; e Teje preso, do Chico Anisio, alguns dos quais já “resenhados” aqui no blog e outros na fila), pelos quais acabei pagando razoáveis 40 barões...

Seu Carlos, que é o proprietário e não pode dar-se ao luxo de perder-se também por ali, adotou o sistema de organizar as obras por gênero e alfabeticamente, facilitando assim também a vida de quem busca títulos ou autores específicos.

Além do mais, o Sebo Café está também vinculado ao Estante Virtual, site através do qual se pode comprar usados por encomenda via internet.


Enfim, devidamente recomendado: um lugar agradável, despojado, onde se tem a possibilidade, em meio àquele infinito de livros, de se deparar com grandes clássicos ou alguma rara obra cult perdida ali pelo meio e por preços bastante interessantes – e, claro, se tomar um bom cafezinho, para, digamos, justificar o nome do local. Vale a visita (atualização: bem, para quem visitar Praia Grande, em SP, certamente continuará valendo!).


quarta-feira, 29 de abril de 2015

25ª Feira do Livro de Caçapava do Sul (com mesa redonda e sessão de autógrafos do "Minha Camisa Vermelha")

E por falar em Feira do Livro, a 25ª edição da de Caçapava do Sul também está começando, no próximo dia 1º de maio.

Para quem estiver passando por aquelas bandas, no domingo, dia 3, temos (estamos) na programação: mesa redonda com os escritores Athos Miralha da Cunha, Diego Hahn, José Luiz dos Santos, José Mauro Batista, Luiz Hugo Burin e Tânia Lopes debatendo “A essência da crônica e o conto coletivo”, às 19 horas.

E na sequencia, às 20 horas, mais uma sessão de autógrafos do "Minha Camisa Vermelha".

sábado, 25 de abril de 2015

42ª Feira do Livro de Santa Maria (com sessão de autógrafos do "Minha camisa vermelha")


Está começando hoje, com o tema "Vire a página para virar realidade", a 42ª edição da Feira do Livro de Santa Maria (RS), cuja patronesse este ano é fundadora da Casa do Poeta de Santa Maria (CAPOSM) e integrante da Academia Santa-Mariense de Letras, Haydée Hostin Lima.
 
O homenageado desta edição é José Newton Cardoso Marchiori, autor de 20 livros e professor do curso de Engenharia Florestal da UFSM. O homenageado póstumo é o escritor, poeta e compositor Vinicius Pitágoras Gomes (1933-2013).

Entre os bate-papos da programação do projeto Livro Livre, destaque para as presenças dos cartunistas Alexandre Beck, criador do Armandinho, e Iotti, do Radicci; do músico e escritor Thedy Corrêa; dos autores de literatura fantástica Eneias Tavares, André Cordenonsi e Nikelen Witter; do jornalista da Globo News André Trigueiro; além do secretário de Cultura do Rio Grande do Sul, Victor Hugo.

Também fazem parte da programação apresentações da Orquestra Sinfônica de Santa Maria e da Orquestra de Brinquedos, que trará um espetáculo com músicas tocadas por instrumentos de brinquedo.


E, entre as tantas e boas sessões de autógrafo, destaque, claro, para o "Minha camisa vermelha", amanhã, domingo, às 17:00 horas.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

"Clareiras" e "Assim como" (por - e em memória de - Ruth Larré)

 
Ainda que passados alguns dias já do repentino e triste acontecido - e após procurar aproveitar o período exatamente para processá-lo da melhor maneira possível - , não poderia deixar de registrar em algumas palavras aqui esta pequena homenagem à Professora Ruth.

Ao escrever o último texto do ano passado aqui no blog, fantasiava de certa forma estar expurgando futuros acontecimentos do gênero, mas a verdade é que custamos a entender que o calendário, como costumeiramente o concebemos, não passa de uma mera ilusão (quando não se torna, como nesses casos, uma desilusão, ao vir um dia de repente nos cobrar as folhinhas arrancadas...) e a vida, com todo seu conjunto de fenômenos naturais e metafísicos, alguns sempre difíceis de se entender, seguirá em frente, inexorável, independente das promessas e encantos aos quais nos apegarmos de tempos em tempos.
 
E ok, não vou citar desta vez aquele poema de John Donne, do qual tanto gosto, embora pense nele novamente neste instante, devido ao nosso mundo ter ficado um pouco menor e por ouvir os sinos dobrando mais uma vez por todos nós aqui neste cantinho do interior do sul do país...
 
O caso é que na parede da casa de nossa família há quase duas dezenas de anos paira um quadro ilustrado por minha mãe no qual consta, entre algumas colagens (fotos de jornais, mostrando flagras do cotidiano de comunidades miseráveis de nossa sociedade, estilizadas com tinta sobre elas), a seguinte frase:

"Ruim é lembrar o gélido abandono dos que se aquecem em raiva e revolta na promiscuidade da miséria".
 
O quadro é resultado de um desafio de um curso de pintura, no qual cada artista deveria criar uma obra baseada em um trecho de um livro. Pois esse trecho que serviu de tema para o quadro, minha mãe o pegou emprestado à época de um texto de autoria exatamente da Professora Ruth.
 
Mas, embora cruzasse com aquela sua frase diariamente por um bom pedaço da minha vida, eu ainda não conhecia a Professora pessoalmente até cerca de 4 ou 5 anos atrás, quando tivemos nosso primeiro contato num curso de Arte Declamatória, ministrado por ela e pela Professora Aristilda Rechia, e que teve lugar na Biblioteca Municipal de SM.
 
E  a última vez que vi a Professora Ruth foi no início da tarde de um sábado de sol, há uns meses atrás. Conversamos por alguns bons minutos na esquina da Floriano com a Venâncio (detalhe engraçado: um amigo - o Juba - passava de carro por ali e, ao nos ver conversando, gritou da janela algo do tipo "Aí! Agora talvez tu aprenda a escrever, hein!??...").
 
Sempre ouvira falar na tal Professora Ruth Larré, que era praticamente uma lenda viva do português e da literatura santamariense, mas fui surpreendido após o concurso de arte declamatória que aconteceu após a conclusão daquele curso na biblioteca com uma performance sua para o público presente, com uma declamação ao mesmo tempo divertidíssima e emocionante, que deixou a todos extasiados - e que mereceu, obviamente, uma pequena standing ovation. Ali percebi que não estava diante tão somente de uma ótima professora de língua portuguesa e literatura, mas de uma verdadeira artista (nem sabia então - e na verdade só soube mesmo recentemente - que ela tinha mesmo também no seu vasto currículo incursões de atriz no teatro e no cinema).
 
Só não precisávamos dessa última arte, claro...
 
Lamento, portanto, além de pela óbvia perda gigantesca da pessoa e da profissional, egoisticamente também, por não poder mais trocar impressões literárias com a Professora Ruth, não poder mais ter o prazer de ler novos textos seus ou saber que ela leu alguns dos meus, num intercâmbio literário intergeracional que muito me honrava...
 
                      A Professora prestigiando o lançamento do meu primeiro livro, na Feira do Livro de Santa Maria de 2012
 
Mas, como sempre acontece nesses casos, ainda nos restará sempre um consolo "mágico": o de poder "reencontrá-la" na estante de casa, onde seguirá, com seu jeito amável e carismático, dando uns toques pra gente.

 
Clareiras
 
Se, depois de tanto tempo,
depois dos desgastes da rotina,
depois do rosto vincado,
do corpo transformado,
das penosas asperezas do caminho,
ainda se abrem clareiras
de ternura
e sopram doces aragens
de paixão,
ah!
é assim que
Deus me mostra
uma certa visão
do paraíso.
 

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Assim como

 

Assim como assinalo
no livro do poeta
os poemas que mais me encantam,
os versos que mais me arrebatam,
 
quisera marcar
no livro da vida
cada momento de êxtase,
cada fulgor de grandeza,
cada minuto de comunhão e amor.
 
E ler de novo.
E ler de novo.
E ler de novo.