quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Pelos sebos da vida: "Antes de Adão", de Jack London (por Diego T. Hahn)



Achei este pequeno (no sentido de tamanho mesmo, já que é um pocket) e inacreditavelmente não tão propalado tesouro na Feira do Livro de SM do ano passado (ou retrasado?) e confesso que não esperava lá grandes coisas do mesmo, foi mais um impulso (pelo precinho camarada, é verdade, mas também) de pela primeira vez ler algo do “outro Jack”, o London (não, nunca li nem assisti “Caninos brancos”).


          Talvez o único ponto negativo da obra: capinha cafonaça da edição que adquiri.


O narrador começa a história contando sobre o “poder”, supostamente contido no seu DNA, de, em sonhos, lembrar de fatos acontecidos com um pré-histórico parente seu, memórias transmitidas através das gerações de descendente para descendente na teoria do narrador. E assim, ao pegar no sono, ele revive as aventuras e desventuras desse tatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatataravô naqueles tempos inóspitos.
Essa sim é paulada! - com o perdão de algum possível e costumeiro - mas desta vez involuntário - trocadilho infame...


O tal antecessor pertencia à Tribo, que, embora mais evoluída que o Povo das Árvores (quase macacos ainda), estava abaixo do Povo do Fogo (cujo principal carta na manga era exatamente ter o domínio do mesmo, além de uma comunicação mais sofisticada) nessa escala, e vivia nas cavernas.


E, segundo ele, eram tempos realmente difíceis: as tribos quebravam o pau – literalmente – entre si.


Segue contando as recordações que tem em sonhos de perrengues e diversões divididas com aliados, como Orelha-de-Abano, seu grande amigo de fé, irmão, camarada, e outros nem tanto, como Olho-Vermelho, o “atavismo”, que, embora vivesse com a Tribo, reunia características que o remetiam mais ao Povo das Árvores (que, como dito antes, seria uma espécie de tribo menos desenvolvida, evolutivamente falando), características não só físicas (era muito maior que os outros integrantes da Tribo, mais peludo, muito mais forte), como comportamentais, e assim sendo – especialmente pelo costume de matar esposas e eventuais desafetos do grupo sem fazer muito esforço e com uma grande frequência – era temido pelo resto da Tribo. Entre os personagens mais marcantes nessas memórias do narrador há também Ligeira, por quem o Dentuço (como denomina seu antecedente primitivo o narrador) viria a se apaixonar. E o temor às feras da época, especialmente o velho Dente-de-Sabre (obviamente todos esses apelidos são dados pelo narrador com a sua consciência contemporânea, a partir da análise dessas imagens de seus sonhos, pois, à época dos acontecidos, a comunicação era muito rudimentar, à base de grunhidos, e eles evidentemente ainda não conseguiam elaborar nomes).


Coincidentemente, há poucos dias reencontrei (no ótimo acervo da CESMA - Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria) um outro pequeno tesouro, dessa vez cinematográfico, que é “A guerra do fogo”, do francês Jean-Jacques Annaud. Havia visto esse filme há uns duzentos e oitenta e quatro anos, provavelmente numa sessão corujão de alguma das nossas emissoras abertas e desde então o procurava incessantemente por tudo que era lugar sem jamais encontrá-lo (nem na internet para, criminosamente, baixar).



Pois o filme gira mais ou menos na mesma época do livro e a história é até bastante parecida (fez-me inclusive suspeitar de uma “inspiração” na obra de London...). 
Embora não se trate de uma comédia (tratar-se-ia de uma aventura épica!?), não poderia deixar de destacar aqui um dos meus trechos favoritos, diante do qual dei até mesmo boas risadas e que, além disso, considero bastante significativo na obra, que é aquele no qual três dos nossos ancestrais encontram uma ancestral menos ancestral, digamos assim, uma menos primitiva (seria o equivalente, provavelmente, a uma integrante do Povo do Fogo do livro, enquanto os três primeiros pertenceriam à Tribo). Estes, não conheciam, e não tinham o costume do riso ainda, e a princípio se assustam e ficam curiosos quando essa garota começa a rir de um acontecimento supostamente engraçado; na sequência, algumas cenas depois, uma enorme pedra cai na cabeça de um deles (quase causando neste um traumatismo craniano!) e ela volta a gargalhar... após um novo estranhamento inicial, os três pouco a pouco então passam a acompanhá-la naquele riso, inclusive aquele que levou a porrada na cabeça, enquanto o sangue empapa seus cabelos e escorre da sua cabeça pelo seu rosto, fazendo-o misturar uma feição de dor com a daquela nova sensação...

Mas o filme vale sem dúvida também para algumas outras interessantes reflexões, como por exemplo, fazendo o caminho inverso, sobre o fato de, mesmo cerca 80 mil anos depois, com toda nossa tecnologia, carros, aviões, computadores, celulares, e nossa suposta evolução comportamental, revoluções dos mais variados gêneros e tudo o mais, essencialmente a humanidade girar ainda em torno da mesma busca dos nossos ancestrais pelo trinômio básico comida, abrigo e, a cereja sobre o bolo, o combustível (que equivaleria também ao poder!?) – no caso deles, o fogo – do qual somos ainda tão dependentes e pelo qual continuamos fazendo guerra (ou, por uma espécie de procuração implícita, alguém por nós; só que de um jeito supostamente mais "elegante" - embora também mais eficiente...), como nos primórdios (saque um daqueles itens da sua vida e veja de que servem efetivamente então todos esses tão preciosos aplicativos de hoje em dia nas nossas telinhas mágicas...). Sob esse aspecto, me parece cômico - e até um pouco patético - nos vermos como criaturas supostamente tão evoluídas e eventualmente ironizarmos aqueles nossos costumes ancestrais...



Ah, uma outra curiosidade a respeito do filme é que o cara que criou o sistema de comunicação, as “línguas” (ou, os sons, os grunhidos) das tribos, foi o mesmo dos “druguinhos”, Antony Burgess (sim, o autor de “Laranja Mecânica”).


No fim do filme (pequeno spoiler, não tão decisivo no contexto geral da obra), um casal primitivo se aconchega um nos braços do outro numa colina à noite olhando com um olhar brilhante para a Lua lá no alto – o que irremediavelmente me remeteu a cena clássica do osso que, jogado ao alto pelo primata, se transforma na sequência, num salto de alguns séculos na edição, numa nave no espaço sideral em “2001 – Uma odisseia no espaço”.


Coincidentemente, meu amigo Ronaldo dia desses me falou muito bem de um livro que havia lido há alguns dias, “Uma breve história do mundo” (não aquele que virou um best-seller recente, o do Geoffrey Blainey, mas o do H.G. Wells, autor também de, entre outros, "A Ilha do Dr. Moreau", "A máquina do tempo" e "A guerra dos mundos" - aquele da transmissão radiofônica de Orson Welles em 1938 que causou pânico em grande parte da população americana por esta acreditar se tratar de uma notícia verídica a narrativa fictícia de um trecho da obra na qual alienígenas invadem o planeta Terra), e, diante da minha curiosidade, me emprestou o mesmo. 


                                                  Este.

Fugindo do gênero costumeiro do autor, o fictício, o livro perpassa, resumidamente, como anunciado no título, toda a história do mundo (entenda-se por mundo, no caso, “tudo” - ou quase: não de todo o Universo, mas do Planeta Terra, desde os primórdios, formação do planeta, primeiras formas de vida, numa escala cronológica, até os dias de hoje, ou melhor, de ontem, até 1922, quando o autor escreveu a obra). E não é que em determinado capítulo, ele narra a história do Neanderthal e do seu provável extermínio por um outro ser mais evoluído, o chamado Homem Verdadeiro, do qual o homem seria um descendente direto, o que me fez pensar que talvez a Tribo do Dentuço descrita na obra de London fosse formada exatamente por Neanderthais (eles são caçados e quase todos eliminados por uma tribo mais “humanizada” - como dito antes, o Povo do Fogo, que seria, na minha hipótese, o equivalente à tribo do Homem Verdadeiro).


Uma raça de seres assemelhados, mais inteligentes, que conheciam mais coisas e que falavam e cooperavam uns com os outros, veio se deslocando para o sul e entrou no mundo dos Neandertais. Eles desalojaram os Neandertais de suas cavernas e de seus locais de descanso; caçavam a mesma comida; provavelmente entraram em guerra com seus medonhos antecessores e os mataram em definitivo”, descreve Wells, como se descrevesse com precisão parte da obra de London, já que a Tribo do Dentuço vivia em cavernas e fora desalojada de lá pelo Povo do Fogo, que dominava uma comunicação mais evoluída e cujos integrantes tinham a faculdade de colaborar entre si, articulando, por exemplo, planos de ataque, ao contrário daquele outro bando, cuja comunicação se resumia a alguns grunhidos indistintos e não tinha o poder de colaboração, sendo que cada um acabava agindo por conta própria, dificultando assim a própria defesa da Tribo.
Mas, enfim, devaneios à parte, para concluir fica uma curiosa reflexão (na verdade, ainda um novo e derradeiro devaneio, poder-se-ia dizer, ou até mesmo um insight, derivado de um eventual antepassado pré-histórico meu, o qual, pelas possíveis características físicas - algumas das quais teria deixado, inclusive, decisivamente como herança genética para a sequência dos descendentes na árvore genealógica - poderia ser chamado de o Tripé), que me veio também de lambuja ao analisar essa fantástica obra de London:
E, no fim das contas, o que haverá ainda hoje em dia de resquício dos nossos primitivos ancestrais ao fecharmos os olhos à noite no aconchego do lar?