quinta-feira, 13 de julho de 2017

O último Rei do Rock (por Diego T. Hahn)


(Para comemorar o Dia Mundial do Rock, que se celebra hoje, 13 de julho, libero em primeira mão especialmente para você, um dos cinco fiéis leitores do "De Letra", este meu texto, inédito para o grande pequeno público em geral, premiado no ano de 2014 na categoria Conto do Concurso Literário Felippe D´Oliveira. Espero que curta - de preferência ao som de um Ozzy ou Led!...)


-                   - ONE-TWO-THREE-FOUR!!!...
É, naquele tempo havia ainda uma meia dúzia deles vagando por aí. Estavam confinados em botecos fuleiros, onde tocavam para minúsculas plateias, que se concentravam especialmente no balcão do bar e eram formadas por uns tiozões de olhos caídos e alguns outros esquisitões. A pista, vazia. Nos cantos dela, ao lado dos pilares, ainda havia umas três ou quatro meninas, cabelos coloridos, piercing e tatuagem em alguma parte da anatomia, vagos resquícios das antigas gruppies. Mas elas não emprestavam sua beleza ao lugar por muito tempo e, assim que terminava o show, partiam para alguma outra casa de espetáculos, para assistir geralmente algum pagode ou sertanejo da vida. Ninguém conseguia mais tirar uma casquinha e restavam lá realmente só os malucos. O rock estava definhando. A cada dia que passava um roqueiro sumia e ressurgia no dia seguinte de chapelão de caubói, formando geralmente uma nova dupla sertaneja. Mas uma meia dúzia ainda resistia.
E, entre eles, Otávio, a lenda.
Pagodeiros e sertanejos não eram vistos exatamente como inimigos. Era “cada um na sua”, simplesmente. Os pagodeiros eram uma realidade com a qual se convivia já há tempos, era algo estabelecido. Mas o fenômeno sertanejo era algo relativamente novo e estava no seu auge, praticamente monopolizando as atenções do grande público. E assim Otávio os via à distância com seus salões e pistas abarrotados e não podia deixar de sentir uma pontada de inveja.
- Lembro sempre daquela vez que toquei pra 30 mil pessoas... – era uma história recorrente sua, de uma ocasião na qual, segundo ele, junto com outras bandas, tocara em um festival musical para um grande público numa cidadezinha do Mato Grosso, em meio a uma tour que fazia pelo país – veja você, no Mato Grosso!, um tradicional reduto deles... – dava ares épicos ao nostálgico relato na mesa do bar quase vazio após o show, rodeado por três bêbados e pelo barman, que aguardava impaciente a partida do derradeiro grupo.
Não havia nenhum registro impresso ou em áudio ou vídeo do tal evento. Ninguém lembrava de ter ouvido falar dele, também. “Era lá pelos anos 70”, tentava situar Otávio. Muitos suspeitavam da veracidade do fato.  Anos 70, ainda por cima... Otávio podia estar doidão e ter imaginado tudo... enfim..
Mas, no fim das contas, vai saber: nos contos de rock, assim como nos de fadas, tudo é possível.
Já nos tempos nos quais se passa esta nossa história, Otávio costumava tocar para públicos de trinta ou quarenta pessoas. Em um outro recente festival no litoral, conseguira a fantástica audiência de 300 cabeças.
Mas Otávio não desistia, seguia na estrada. Ia já para os seus sessenta anos de idade. Via-se como uma referência para os roqueiros mais jovens que ainda tentavam. “Dinossauro do rock”, imaginava sempre, orgulhoso, que se referissem a ele por aí. “O rei do rock”, era mais frequente, que, entre realmente reverente e ao mesmo tempo um tanto quanto sarcástico, voltasse sua atenção a ele o pessoal da geração mais nova. “O último rei do rock”.
E pensar que um personagem folclórico daqueles parecia extinguir-se pouco a pouco no escuro daqueles bares e ninguém percebia aquela perda! – àquelas alturas, ninguém lembrava a trajetória de Otávio; era como se ele tivesse começado nos dias de então, era como se fosse apenas mais um novato, ninguém tinha noção de tudo pelo que passara, as loucuras, aventuras e desventuras da sua vida de roqueiro... parecia que havia começado já no ocaso... era praticamente uma lenda perdida.
Ninguém, exceto, contudo, um estranho nerd estudante de jornalismo com ideais revolucionário-contraculturais - ou algo assim - já na casa dos seus quarenta e poucos, em um outro ponto distante da cidade, um sujeito que tinha há tempos um projeto de um documentário a respeito da vida de Otávio, embora este não conhecesse o cara e nem nunca tivesse ficado sabendo da ideia. O projeto, porém, por motivos dos mais variados, nunca saía do papel e, até o fechamento deste texto não se tem notícia que tenha acontecido e, o mais provável, é imaginar que ele tenha ficado engavetado para todo o sempre, condenando assim a história de Otávio a se perder nas brumas do tempo, entre resquícios de memórias bêbadas e “Aquela vez, no Mato Grosso...”, como seguia ele com aquela história. Parecia que era o que lhe dava forças para seguir adiante, aquela simples lembrança, e o passado um dia viraria futuro.
Mas a verdade é que o rock minguava nos bares e nos clubes. Mesmo os esquisitões, com suas camisas do Led, do Motorhead, do Nirvana, do Pink, e, claro, dos Ramones, pareciam estar desaparecendo. Bem, talvez alguns, que eram mais velhos – realmente, alguns eram até bem mais velhos que Otávio – tivessem mesmo passado desta para a melhor, cogitavam os barmen e as bartenders atrás dos balcões e os músicos em cima do palco, o que os angustiava ainda mais, pois aquelas camisas, pendendo no escuro enquanto o local vibrava com a distorção das guitarras, aquelas camisas eram como estandartes de guerra, eram como um símbolo da resistência, eram como uma fonte de energia e inspiração para os caras em cima do palco, assim como a lembrança do Mato Grosso talvez fosse particularmente para Otávio.
Eis que um belo dia, quando já não havia talvez mais do que três ou quatro bandas de rock na cidade, Otávio foi convidado para tocar novamente em um festival.
- Cara, demais! Lembro, inclusive, daquela vez, no Mato Grosso...
A coisa seria grande. Vários estilos misturados – revezados, contudo, em palcos distintos: seriam dois, um menor, onde tocaria Otávio, entre outros da antiga e iniciantes, e o maior, onde se apresentariam os artistas em evidência no momento. Não seriam trinta mil, como supostamente no Mato Grosso aquela vez, mas previa-se um público de cerca de cinco mil pessoas, o que já era um público e tanto para a cidade, coisa que há tempos não se via mesmo nas imediações.
Pois chegara o grande dia e Otávio apareceu com antecedência ao local onde aconteceria o espetáculo. Não havia ainda ninguém além dele lá. O sol ainda brilhava no céu, o que acentuava as rugas e olheiras do roqueiro, seu longo cabelo desgrenhado em contraste com suas ligeiras entradas no topo da testa, as tatuagens desbotadas no braço. Ele caminhava devagar. Estava cansado. Havia dormido mal. Sentia-se realmente velho então. Sentia, certo, um desgaste físico de uma vida. De uma vida de rock. Mas, mais do que físico também, sentiu-se velho mentalmente ao olhar para aquele palco onde se apresentariam os bambambans e imaginou toda aquela gente ali, aquela juventude gritando, pulando, os caras sorrindo seus sorrisos perfeitos e jovens também no palco, com suas camisas bem passadas e seus chapelões na cabeça. Sentiu-se, mais do que velho, pela primeira vez deslocado, em um ambiente daqueles. Sentiu que sua carreira estava realmente no fim – se é que já não havia acabado. “Dinossauro do rock”. Ora bolas, os dinossauros estavam extintos há eras!...
Entrou no espaço dos camarins, deslocou-se até o seu, uma simples salinha sete por cinco com paredes de madeira, uma mesa e quatro cadeiras no meio, um sofá no canto. Jogou-se no sofá e apagou.
Acordou com os rapazes da banda invadindo o recinto e, empolgados, chamando-o. Dormira. Dormira por horas. Acordava então zonzo. Custou a princípio a dar-se conta de onde estava. Bocejou. Havia agora águas e cervejas em cima da mesa. Puxou uma mineral no gut-gut, enquanto esfregava os olhos. Os rapazes o olhavam, rindo, e um pouco constrangidos.
- Pô, tá com sono, Otávio?
- Logo hoje, cara?
Otávio olhou para eles. Pareceu voltar então a real; voltar ao seu velho mundo.
- Não... – balbuciou, e, em seguida, firmando a voz, complementou, já mais confiante – Não... Não! vamos dar um show do c#%(¨&* pra eles lá embaixo, rapaziada!! – e, após respirar fundo e pegar fôlego, urrou um urro gutural, olhos esbugalhados, como algum guerreiro celta diante da possibilidade de uma boa morte em batalha diante do império romano que avançava imponente.
Os rapazes vibraram, o abraçaram, e foram acabar de se vestir e afinar os instrumentos.
“Se vai começar, vá fundo, vá até o fim...”, pensava consigo mesmo, parafraseando certo velho poeta roqueiro que lhe vinha à mente então.
Desceram ao seu palco e fizeram um baita show. Tocaram para minguadas cinquenta pessoas, mas não importava. Lá embaixo a galera curtia, sim, o show, via-se: balançavam as cabeças, e sorriam contentes, e um que outro levantava o mindinho e o indicador, segurando os outros dedos, e erguia o braço, como a aprovar o som e fazer uma solitária ode ao rock´n roll, e a certa altura uns cinco ou seis começaram a se bater amigavelmente uns contra os outros no meio da pista naquela outra espécie de curioso ritual roqueiro. Em seguida, um inclusive sobe ao palco e joga-se de peito lá embaixo, sendo seguro por outros três, e começando a surfar sobre a galera, não obstante a falta de maiores ondas, enquanto o baixista bradava “Sertanejos não surfam! Sertanejos não surfam!!” – e tudo aquilo era a verdadeira felicidade para Otávio.
Mas parecia faltar algo ainda.
Sim, haviam feito mesmo um ótimo show. Sim, a galera jogou junto. Mas faltava algo para o velho roqueiro. Faltava cruzar alguma fronteira.
Brindaram no camarim, tomaram algumas bebidas e ficaram papeando e rindo juntos e foi divertido, mas depois que os rapazes foram embora, Otávio permaneceu lá, jogado no sofá, pensando na vida. Ou, simplesmente, não pensando.
Voltou sua atenção à realidade quando, no palco maior, uma dupla de sertanejos despedia-se do ruidoso público. Os tais cinco mil deviam estar lá. Aqui somos os trezentos de Esparta, pensou, rindo. Começou a ouvir o som da banda que se apresentava então no palco pequeno. Mais alguns integrantes da resistência. Alguns garotos roqueiros. Idealistas. Tsc, tsc, tsc. Não durarão muito. Ninguém dura muito hoje em dia, pensava Otávio. Mas sentia um extremo orgulho deles ali naquele momento. Sentia um orgulho paternal. Sim, sentia-se mesmo como uma espécie de pai deles.
E, como pai deles, precisava oferecer-lhes proteção. Estava velho, sim, mas, não, não estava acabado. Recém havia mostrado aquilo, exatamente naquele mesmo palco, alguns minutos atrás.
Foi então que vislumbrou tudo. Havia um intervalo no palco maior. O público, ensandecido, permanecia lá, em pé, vibrando, gritando, chamando pela próxima atração – sertaneja, provavelmente; ele não sabia ao certo, mas, sim, devia ser...
Cinco mil pessoas. Aquele enorme palco. Sim, agora ele entendia:
Aquela era a fronteira a cruzar.
Ajeitou-se no sofá. Suas energias se renovavam. Viu-se saindo do camarim, guitarra em punho, cruzando o corredor escuro e entrando, solitariamente, naquele palco iluminado.
Aquele mar de chapéus de caubói lá embaixo. Olhares petrificados nele. Era como o forasteiro cavaleiro solitário invadindo o saloon nos faroestes de antigamente. Mas, gostem ou não gostem, eu estou aqui. Essa era a mensagem.
Arrancaria um solo distorcido de sua velha parceira – não, não tocaria No rancho fundo em homenagem aos “inimigos” da sua época, bradando “Vocês querem sertanejo? Pois ISTO é sertanejo, meus amigos!!”, como você pensou  –  e, olhos fechados, dedicaria aquele seu sacrifício aos deuses do rock. Haveria, a princípio, um silêncio respeitoso na plateia. Depois a mesma se dividiria. Alguns reclamariam, talvez, que não era o que esperavam, não haviam pagado por aquilo, por aquele ritual quase pagão...
Outros, contudo, começariam, no fundo, no fundo, para suas próprias surpresas, a pouco a pouco se sentir bem com aquela vibração, com aquela energia...
Logo ele visualizaria, entre surpreso e divertido, uma meia dúzia de chapéus de caubói se chocando amistosamente no meio da pista, algumas mãos erguidas aqui e ali com seus mindinhos e indicadores imponente e desafiadoramente eretos, alguém levantaria também a camisa xadrez e mostraria embaixo dela a camisa preta do Metallica, e, enquanto ele ainda solava como hipnotizado, o ápice, com um sertanejo subindo ao palco e voando para ser seguro pela multidão e contrariar o baixista da banda de Otávio.
Você sabe, nos contos de rock tudo pode acontecer...
Ou, claro, podia dar tudo errado e ele ser implacavelmente vaiado, a maior vaia de sua vida, e ter garrafinhas de plástico de água jogadas aos montes na sua cabeça... fazia parte correr os riscos...
Fosse como fosse, Otávio, elétrico, como num choque, levantou-se do sofá e catou sua velha guitarra vermelha.
Era sua tão aguardada cruzada final – e, no fim das contas, depois de todo sofrimento, todas as privações, será como roubar o fogo dos deuses, e é a única boa briga que existe, disse para si mesmo, novamente parafraseando aquele velho poeta roqueiro de outrora, que insistia em lhe vir à mente naquele momento.
Afinal, como se diz, rock não é só um estilo musical... rock não é só pancadaria na batera e guitarras distorcidas...
Rock, meu amigo... Rock é atitude!

Oh, yeeeeeaaah!