Bueno, em tempos de Copa do Mundo, o De Letra também entra em campo. Nos próximos dias vamos publicar aqui alguns textos inspirados no mundo futebolístico, começando por este, que faz parte do recém-lançado "Histórias reais de amigos imaginários (e vice-versa)".
Augusto era centroavante e ídolo maior da torcida do Vinte e Nove de Setembro. Anos de clube, um dos maiores artilheiros de sua história, a torcida realmente o adorava. Quando o Vinte e Nove subiu da segunda para a primeira divisão e aumentou a capacidade do seu estádio a torcida passou a comparecer em maior número, o time começou a aparecer mais na televisão e Augusto passou a ganhar destaque em nível nacional. Muito por seus inúmeros gols, que continuava marcando freneticamente, é verdade, mas certamente ainda mais por aquelas famigeradas entrevistas que concedia antes do início, no intervalo e no término das partidas.
- E aí, Augusto? O que você espera para o jogo de hoje?
- Bom... a gente vai procurar fazer o que o professor pediu a semana inteira... estamos focados e...
- E aí, Augusto? E esse empate aí? Ficou de bom tamanho?
- Ah, a gente procurou fazer o que o professor pediu a semana inteira... estávamos focados e...
Ele procurava seguir sempre aquela fórmula. "Focados". "Semana". "Professor". Eram termos que costumeiramente recheavam aquele seu discurso típico de boleiro. E os repórteres e os telespectadores se esbaldavam com aquilo. Tanto que logo começaram a espocar sátiras a respeito e Augusto acabou por tornar-se mesmo um personagem cômico popular na televisão brasileira.
- E aí, Augusto? O que você acha da política econômica do nosso governo?
- Bom... acho que o pessoal da equipe econômica tá procurando fazer o que o professor presidente da república pediu... eles me parecem bastante focados e...
- O que você achou do filme, Augusto?
- Olha, o elenco procurou fazer o que o professor diretor pediu... e estavam bem focados... ao meu ver, ao menos, a imagem não estava fora de foco e... – eram alguns dos esquetes humorísticos que parodiavam o artilheiro. Ele começava a ficar incomodado, mas seguia metendo seus gols e tentando demonstrar indiferença.
Um certo dia, no entanto, ao final de uma partida na qual havia marcado dois – o segundo, um golaço na gaveta – , um repórter lhe perguntou:
- E aí, Augusto? E aquele chutaço, lá onde dorme a coruja?
O jogador ficou em silêncio por alguns instantes. Olhou para o gramado, pensativo, franziu a testa e em seguida rebateu:
- Mas por que se diz "lá onde dorme a coruja" se a bola, no caso de tal lance, entra exatamente embaixo do travessão, e a coruja teoricamente dormiria sobre ele? Não seria mais apropriado se dizer então "lá onde dorme o morcego", já que este tem o costume de dormir de cabeça para baixo, e, ele sim, poderia estar efetivamente ocupando durante seu sono aquele espaço em específico onde a bola entrou?
O repórter arregalou os olhos, estarrecido, bradou um "Uau!", e a verdade é que não conseguiu seguir com a entrevista; agradeceu velozmente ao artilheiro e saiu correndo, comunicando-se intensamente via rádio com a produção do programa esportivo para o qual trabalhava.
No dia seguinte era só do que se falava: que diabos significava aquilo? Haveria acabado a era do foco e do professor?
Quando ao término da partida seguinte, após perguntado durante a tradicional entrevista sobre o resultado
de empate, Augusto respondeu que "tudo é relativo nessa vida... até mesmo a relatividade", começava a consolidar aquela sua nova fase. Os repórteres, porém, não entenderam a resposta e ele continuou:
- O que percebemos são ideias... não coisas em si.
- Como assim, Augusto?
- Uma coisa em si deve estar fora da experiência...
Os repórteres continuavam olhando-o, boquiabertos. Compenetrado, ele prosseguia naquela kantilena:
- Então, o mundo consiste apenas em ideias... e mentes que percebem essas ideias.
E concluía:
- Ou seja: uma coisa só existe na medida em que ela percebe ou é percebida.
Os programas, sem perder tempo, passam então a explorar esse novo personagem:
- E aí, Augusto? Muita marcação da parte do adversário sobre você, não?
- O homem nasce livre e por toda parte encontra-se acorrentado, vocês sabem...
- E aí, Augusto? Como foi aquela furada dentro da área?
- Tudo que vemos é uma representação nossa da realidade... talvez a furada que você supostamente viu tenha sido na realidade uma grande jogada, um golaço de bicicleta... ou não.
Aquilo começou a realmente irritar o camisa nove. Primeiro eram aquelas piadinhas com as frases de boleiro... agora implicavam também com a sua filosofia?
Para completar, começou a circular o boato de que ele, então mais refinado, tinha também enjoado de pagode e pegado gosto por música clássica: no vestiário, antes de entrar em campo, ficava curtindo Chopin e Beethoven. Verdade ou não, com o tempo, o clube passou a colocar esses e outros clássicos a tocar no sistema de som do estádio antes do time entrar em campo. Assim, às primeiras notas da Nona Sinfonia, por exemplo, a torcida se exaltava e, dizia-se, estava criado um clima hostil para os adversários, que chegavam mesmo a tremer de pavor diante daquele cenário quase surrealista.
Augusto passara a odiar definitivamente tudo aquilo. Mas seguia metendo seus gols. Tanto que um belo dia acabou sendo negociado com o futebol europeu por uma banana de dinheiro.
A notícia caiu como uma bomba na cidade. Foi um tremendo choque para a torcida – e obviamente também para os repórteres e humoristas.
Era uma lenda que partia. Uma era que se acabava.
Augusto se foi e seguiu marcando seus gols na Europa. Ficou lá por dois anos, uma temporada na Itália – onde inclusive era chamado de Augustus, em menção ao primeiro imperador romano; os italianos têm esse costume de apelidar jogadores com o título ou nome de imperador – e outra na França... até que o Vinte e Nove de Setembro, numa empreitada ousada que contou com a ajuda de um pool de empresários simpatizantes do time, conseguiu repatriá-lo.
A torcida, maravilhada, entrou em êxtase com a boa nova.
Como não poderia deixar de ser, igualmente a mídia. A televisão chegou a cobrir seu desembarque no Brasil ao vivo.
No dia da sua reestreia, espocou Ode to Joy no sistema de som do estádio do Vinte e Nove antes do início da partida e a torcida foi ao delírio.
Ao entrar em campo troteando, Augusto foi cercado por uma multidão de repórteres. Todos queriam ouvir sua primeira declaração após o retorno. O que viria? Foco e professor? Nietzsche? Alguma declaração em francês, italiano ou mesmo latim, línguas que se dizia que ele dominava após aquela passagem pela Europa?
Ele, porém, não deixou o repórter terminar a pergunta e, sem olhar para o lado, emendou de primeira, como o artilheiro que era:
E passou correndo para o campo, onde seguiu metendo seus gols, que era o que sabia mesmo fazer.