terça-feira, 24 de junho de 2014

Em ritmo de Copa: "O artilheiro filósofo" (por Diego T. Hahn)


Bueno, em tempos de Copa do Mundo, o De Letra também entra em campo. Nos próximos dias vamos publicar aqui alguns textos inspirados no mundo futebolístico, começando por este, que faz parte do recém-lançado "Histórias reais de amigos imaginários (e vice-versa)".



Augusto era centroavante e ídolo maior da torcida do Vinte e Nove de Setembro. Anos de clube, um dos maiores artilheiros de sua história, a torcida realmente o adorava. Quando o Vinte e Nove subiu da segunda para a primeira divisão e aumentou a capacidade do seu estádio a torcida passou a comparecer em maior número, o time começou a aparecer mais na televisão e Augusto passou a ganhar destaque em nível nacional. Muito por seus inúmeros gols, que continuava marcando freneticamente, é verdade, mas certamente ainda mais por aquelas famigeradas entrevistas que concedia antes do início, no intervalo e no término das partidas.

 

- E aí, Augusto? O que você espera para o jogo de hoje?  
 
- Bom... a gente vai procurar fazer o que o professor pediu a semana inteira... estamos focados e...
 
- E aí, Augusto? E esse empate aí? Ficou de bom tamanho?
- Ah, a gente procurou fazer o que o professor pediu a semana inteira... estávamos focados e...
Ele procurava seguir sempre aquela fórmula. "Focados". "Semana". "Professor". Eram termos que costumeiramente recheavam aquele seu discurso típico de boleiro. E os repórteres e os telespectadores se esbaldavam com aquilo. Tanto que logo começaram a espocar sátiras a respeito e Augusto acabou por tornar-se mesmo um personagem cômico popular na televisão brasileira.
- E aí, Augusto? O que você acha da política econômica do nosso governo?

- Bom... acho que o pessoal da equipe econômica tá procurando fazer o que o professor presidente da república pediu... eles me parecem bastante focados e... 
 
- O que você achou do filme, Augusto?

- Olha, o elenco procurou fazer o que o professor diretor pediu... e estavam bem focados... ao meu ver, ao menos, a imagem não estava fora de foco e... – eram alguns dos esquetes humorísticos que parodiavam o artilheiro. Ele começava a ficar incomodado, mas seguia metendo seus gols e tentando demonstrar indiferença.

Um certo dia, no entanto, ao final de uma partida na qual havia marcado dois – o segundo, um golaço na gaveta – , um repórter lhe perguntou:
 
- E aí, Augusto? E aquele chutaço, lá onde dorme a coruja?

O jogador ficou em silêncio por alguns instantes. Olhou para o gramado, pensativo, franziu a testa e em seguida rebateu:

- Mas por que se diz "lá onde dorme a coruja" se a bola, no caso de tal lance, entra exatamente embaixo do travessão, e a coruja teoricamente dormiria sobre ele? Não seria mais apropriado se dizer então "lá onde dorme o morcego", já que este tem o costume de dormir de cabeça para baixo, e, ele sim, poderia estar efetivamente ocupando durante seu sono aquele espaço em específico onde a bola entrou?

 
O repórter arregalou os olhos, estarrecido, bradou um "Uau!", e a verdade é que não conseguiu seguir com a entrevista; agradeceu velozmente ao artilheiro e saiu correndo, comunicando-se intensamente via rádio com a produção do programa esportivo para o qual trabalhava.

No dia seguinte era só do que se falava: que diabos significava aquilo? Haveria acabado a era do foco e do professor?

Quando ao término da partida seguinte, após perguntado durante a tradicional entrevista sobre o resultado
de empate, Augusto respondeu que "tudo é relativo nessa vida... até mesmo a relatividade", começava a consolidar aquela sua nova fase. Os repórteres, porém, não entenderam a resposta e ele continuou:

- O que percebemos são ideias... não coisas em si.

- Como assim, Augusto?

- Uma coisa em si deve estar fora da experiência...

Os repórteres continuavam olhando-o, boquiabertos. Compenetrado, ele prosseguia naquela kantilena:

- Então, o mundo consiste apenas em ideias... e mentes que percebem essas ideias.

E concluía:

- Ou seja: uma coisa só existe na medida em que ela percebe ou é percebida.

 
Pronto. A partir do dia seguinte Augusto tinha virado "o artilheiro filósofo".

Os programas, sem perder tempo, passam então a explorar esse novo personagem:

- E aí, Augusto? Muita marcação da parte do adversário sobre você, não?

- O homem nasce livre e por toda parte encontra-se acorrentado, vocês sabem...

- E aí, Augusto? Como foi aquela furada dentro da área?

- Tudo que vemos é uma representação nossa da realidade... talvez a furada que você supostamente viu tenha sido na realidade uma grande jogada, um golaço de bicicleta... ou não.

Aquilo começou a realmente irritar o camisa nove. Primeiro eram aquelas piadinhas com as frases de boleiro... agora implicavam também com a sua filosofia?

Para completar, começou a circular o boato de que ele, então mais refinado, tinha também enjoado de pagode e pegado gosto por música clássica: no vestiário, antes de entrar em campo, ficava curtindo Chopin e Beethoven. Verdade ou não, com o tempo, o clube passou a colocar esses e outros clássicos a tocar no sistema de som do estádio antes do time entrar em campo. Assim, às primeiras notas da Nona Sinfonia, por exemplo, a torcida se exaltava e, dizia-se, estava criado um clima hostil para os adversários, que chegavam mesmo a tremer de pavor diante daquele cenário quase surrealista.

 
Augusto passara a odiar definitivamente tudo aquilo. Mas seguia metendo seus gols. Tanto que um belo dia acabou sendo negociado com o futebol europeu por uma banana de dinheiro.

A notícia caiu como uma bomba na cidade. Foi um tremendo choque para a torcida – e obviamente também para os repórteres e humoristas.

 
Era uma lenda que partia. Uma era que se acabava.

Augusto se foi e seguiu marcando seus gols na Europa. Ficou lá por dois anos, uma temporada na Itália – onde inclusive era chamado de Augustus, em menção ao primeiro imperador romano; os italianos têm esse costume de apelidar jogadores com o título ou nome de imperador – e outra na França... até que o Vinte e Nove de Setembro, numa empreitada ousada que contou com a ajuda de um pool de empresários simpatizantes do time, conseguiu repatriá-lo.

A torcida, maravilhada, entrou em êxtase com a boa nova.

Como não poderia deixar de ser, igualmente a mídia. A televisão chegou a cobrir seu desembarque no Brasil ao vivo.

 
No dia da sua reestreia, espocou Ode to Joy no sistema de som do estádio do Vinte e Nove antes do início da partida e a torcida foi ao delírio.


Ao entrar em campo troteando, Augusto foi cercado por uma multidão de repórteres. Todos queriam ouvir sua primeira declaração após o retorno. O que viria? Foco e professor? Nietzsche? Alguma declaração em francês, italiano ou mesmo latim, línguas que se dizia que ele dominava após aquela passagem pela Europa?


- E aí, Augusto? O que espera dessa nova...

 
Ele, porém, não deixou o repórter terminar a pergunta e, sem olhar para o lado, emendou de primeira, como o artilheiro que era:
 
- VAI TOMÁ NO CU!!!

 
E passou correndo para o campo, onde seguiu metendo seus gols, que era o que sabia mesmo fazer.

 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Pelos sebos da vida: "Monsenhor Quixote", de Graham Greene (por Diego T. Hahn)


Já estava há horas em dívida com o mestre Graham Greene (desde que li há uns dois anos o ótimo “Nosso homem em Havana”), mas foi bom ter esperado um pouco antes de homenageá-lo aqui: pois eis que encontro no sebo da Floriano, entre páginas meio amareladas e carcomidas e capa um tanto quanto cafona, este pequeno tesouro.

Olhando para ele de relance, em meio a um mar de livros, realmente você não dá nada por Monsenhor Quixote.
Uma versão mais legalzinha da capa

Quer dizer, não dá nada se não for um conhecedor de Greene...

Por falar no homi,  a melhor definição que já li a seu respeito é a seguinte: “Greene é o cara que conseguiu aliar a literatura de diversão com a boa literatura”.
       Não confundir com o simpático ator de traços indígenas, homônimo do escritor em questão


Impossível não se divertir com sua leitura que flui, aparentemente leve, mas com tramas bem construídas  - e, sim, com conteúdo (particularmente, seu estilo me lembra bastante o do L. F. Veríssimo dos tempos das Comédias da vida privada...).
Neste livro, Greene conta a história do padre de um pequeno vilarejo na região de La Mancha, na Espanha, terra do lendário personagem de Cervantes (diz-se que Greene era um fervoroso fã da obra-prima do espanhol e quis fazer uma pequena homenagem a ele – e, como também fã do Cavaleiro da Triste Figura, provavelmente este texto é o mais próximo que vou chegar de me atrever a resenhá-lo).

Reza a lenda no povoado que o padre é descendente do Dom, o que confunde alguns outros personagens durante o desenrolar da história: mas como, se Dom Quixote é um personagem fictício?
Seja como for, devido a uma sequência de curiosos episódios, o padre acaba partindo em uma viagem com um ex-prefeito comunista da cidade (para completar o "quadro", no decorrer da viagem o padre passa a chamá-lo de Sancho). Duas personalidades tão distintas, mas que inevitavelmente começam a estreitar laços durante essa jornada, ainda que à custa de muito embate ideológico – o ex-prefeito, por exemplo, nega a existência de Deus, enquanto o padre por sua vez defende que a salvação está no Senhor e contesta os métodos empregados pelos comunistas no poder, como Stálin, só para dar uma ideia do conteúdo que permeia boa parte da obra.
Sem dúvida, a viagem em si, com todos os seus percalços, é divertidíssima (hilário, por exemplo, o trecho em que o padre se encanta com a extrema simpatia das moças da hospedagem onde chegam em determinada cidade, sem a princípio dar-se conta do tipo de empreendimento no qual o ex-prefeito o faria passar a noite), mas o ponto forte da obra talvez sejam realmente os diálogos entre os dois personagens principais e, na particular opinião deste que aqui escreve, o seu emocionante final – o qual, se poderia ser um exagero dizer que é um dos melhores que já li, certamente incluo entre meus favoritos.