Pois a propósito de figuraças, tive dois outros colegas que também marcaram época nos poucos meses que ficaram com a gente no hotel - ambos tendo começado "enganando bem" e terminado sua passagem por lá de forma estrondosamente negativa.
O primeiro, Roger, era um sujeito que costumava tratar todo mundo com sorrisos e fala mansa e todo um gestual que, embora conseguisse fazer parecer natural, com o tempo percebíamos que era minuciosamente pensado e preparado, e, estrategicamente, refinou ainda mais esse tratamento com determinados hóspedes para assim garantir
polpudos elogios ao seu trabalho (era o seu objetivo descarado - e quase declarado: largava algumas piadinhas às vezes deixando subentendido, nas entrelinhas, que julgava-se capaz de passar a conversa em meio mundo mesmo... e, diabos, por vezes, parecia realmente ter essa capacidade), elogios esses que inevitavelmente acabavam chegando à direção.
Por isso, tinha relevados pelos chefes seus também constantes atrasos e as volumosas críticas que recebia de outros tantos clientes do
hotel sobre falhas "operacionais" suas - esquecia de passar recados, fazer reservas etc - , sendo eventualmente apenas chamado para conversar sobre o acontecido, no
que sempre acabava por convencer o gerente – ou mesmo o proprietário – da sua
“inocência”. O cara era mesmo bem articulado, tinha o diabólico dom da oratória, e sabia complementá-lo com uma voz macia, um sorriso na medida certa - sem parecer muito bajulador e aparentemente jamais mau-humorado - e gesticulando também com certa graça. Além do mais – e talvez seja o que os cabeças (na verdade, nem tão cabeças realmente) mais valorizavam – o canalha estava sempre impecavelmente vestido, roupa bem passada, cabelo bem penteado,
barba bem feita, sapatos lustrosos. Com aquela beca, ele dizia rindo para nós, num daqueles poucos momentos que deixava as guampinhas um pouco mais aparentes, que sabia
poder mandar os hóspedes tomar no rabo, se quisesse, que se safava.
Estivesse lá e provavelmente aquele nosso ex-colega europeu faria uma outra avaliação sociológica a respeito, considerando aquela uma boa amostragem daqueles que se destacam na nossa sociedade tupiniquim como um
todo, pois, nessa sua toada, Roger foi mesmo ganhando moral e chegou a ser
cogitado para uma posição de chefia... antes de descobrirem, digamos, uns
ilícitos seus relacionados ao caixa da recepção.
Ainda assim, ao mandá-lo embora percebi que os chefes lamentavam por ter de fazê-lo, provavelmente pelo fato de o cara se expressar mesmo tão
carismaticamente bem e tê-los (sob certo aspecto, irreversivelmente) seduzido – mas, especialmente (eu percebia que olhavam fixamente para seus pés), por aqueles sapatos tão bem lustrados, caramba!...
Já um outro
colega, Johnny, também deixou sua marca lá – esta, literalmente, bem menos sutil (na fuça de um outro colega!)...
Johnny era
mensageiro e certa época estávamos trabalhando juntos. No início, tal qual Roger, o cara era
extremamente cuidadoso nas palavras, nos gestos, no comportamento em geral...
mas pouco a pouco começou a mostrar uma outra faceta sua, um tanto quanto curiosa.
Tudo estava
em silêncio, por exemplo, ali pela recepção, só nós dois na área, eu digitando
no computador, e de repente eu ouvia uma gargalhada. Daquelas de ressoar em toda a recepção.
Olhava para trás e lá
estava Johnny balançando a cabeça e, referindo-se a mim, dizendo para si mesmo “esse Marcão é uma
figuuuuuuuura, cara...”.
Outra situação típica dos tempos de Johnny por lá era quando
passava algum ser do sexo feminino, não importando idade, cor ou tamanho, e ele
largava, com um sorriso de canto de rosto, sempre outro indefectível bordão seu: “e aí; te animava, Marcão?... Hein? Hein!?” – como indagando se
eu teria ânimo de encarar sexualmente a referida criatura.
Certa vez, ainda,
o movimento era grande e dois mensageiros, ele, Johnny, e Luciano, trabalhavam
juntos para dar conta do entra e sai de carros. Era um sobe e desce frenético
da recepção para a garagem e vice-versa, para retirar os veículos dos hóspedes
que estavam saindo e guardar aqueles dos que estavam chegando, e eu observava
Luciano sem parar naquela via crucis, Luciano que subia, Luciano que descia, Luciano que corria de um lado para o outro, Luciano que suava feito um porco, e
subia também para levar bagagens de hóspedes nos quartos, enquanto,
curiosamente, Johnny caminhava lentamente pelo saguão, balançando a chave de um
carro na mão e conversando tranquilamente com algum hóspede, e dava risadas –
provavelmente de alguma piada que ele mesmo havia contado – , depois
desaparecia por alguns minutos, ressurgia tranquilão do bagageiro, pegava um
copo d´água, tomava um gole, largava um “aaaaaaahhh!” com a boca bem aberta, pegava
outra chave de carro que estava sobre o balcão da recepção, ficava olhando para ela por alguns instantes, descia caminhando
lentamente para a garagem, voltava perguntando de que carro era aquela chave e
de repente desaparecia de novo, enquanto Luciano reaparecia da garagem se
arrastando com três chaves de carros nas mãos e me perguntando onde estava a
chave do Peugeot que estava trancando a saída da garagem – e, mais importante,
onde diabos estava o Johnny???????!!!!!!!...
Mais tarde,
quando o movimento cessara, estavam os dois lado a lado na recepção; Luciano esbaforido, camisa toda empapada e buscando o ar, enquanto Johnny assobiava e
tamborilava os dedos no balcão da recepção e a certa altura, olhando para mim, passou
a mão na testa como limpando o suor e largou esta: “Tchêêêê... que correriiiia,
hein!?”.
Johhny
começou a atrasar e faltar muito ao trabalho e, após ser cobrado por um outro
mensageiro, Vander, sobre esses seus atrasos e faltas (Vander acabava tendo que ficar mais do que deveria no seu turno em função da falta de pontualidade exacerbada ou das ausências de Johnny...), protagonizou uma
cena de boxe em meio a uma troca de turno logo no início da manhã com esse colega. Johnny enfiou um
cruzado de esquerda (uma coisa que nunca entendi bem foi por que de esquerda, já que não era
canhoto...) na cara do indivíduo, justamente diante da porta de entrada e embaixo
de uma das câmeras de segurança do hotel.
Inevitavelmente
cada funcionário que chegava no trabalho aquele dia dava uma passadinha na sala
da gerência para conferir o vídeo e dar boas risadas, como se fosse uma daquelas videocassetadas da tv, protagonizada - que orgulho! - pelos nossos dois colegas.
E assim, no
dia seguinte, no lugar de Johnny eu tinha um novo colega lá...
Mas... como diabos eles
conseguiam mais gente para colocar lá? De onde eles saíam??, voltava eu a me
indagar.
Um gerente
que lá trabalhou certa vez falou em uma reunião que deveríamos valorizar mais
nosso trabalho no hotel, afinal estávamos lá dentro, no bom do ar condicionado, num ambiente
elegante, e os trabalhadores braçais que passavam ao sol lá fora olhavam lá
para dentro e nos invejavam, a nós nos nossos ternos e gravatas e sapatos bem
lustrados.
Pois pensei comigo na ocasião que sim, eles nos invejavam pelo fato de acreditar – você sabe, as
aparências... – que ganhávamos
O DOBRO do que eles ganhavam ou algo assim, e nunca
imaginariam que a situação fosse exatamente o
contrário: como dito num capítulo anterior, as pessoas em geral costumavam achar que
ganhávamos dois, três mil reais no hotel, quando na verdade ganhávamos por volta de um mísero salário mínimo lá...
Mas, enfim,
assim seguíamos em frente - ao menos com nossos ternos, gravatas, sapatos e penteados
impecáveis...
O requinte
de crueldade, no entanto, estava no fato de ainda por cima termos de trabalhar
de pé o dia todo – “como cavalos”, bufava um colega frequentemente – , sem nunca poder sentar; não tínhamos sequer um banquinho à disposição na recepção. Eu
nunca entendi bem o por quê; ninguém nunca explicou direito aquilo. Ouvi alguns
rumores, sim, sobre alguns ex-funcionários que acabavam ficando sentados o
tempo todo, inclusive diante dos hóspedes e tal, numa época remota quando havia
cadeiras ou bancos lá... não sei. Era uma espécie de lenda, lenda urbana, do
Terrível Sentador da Recepção, que sentava o tempo todo na cadeira, e sentava
no balcão, e sentava sobre os computadores e sobre os hóspedes e tudo o mais
que cruzasse pela frente...
Lembrava-me
do meu emprego anterior, no qual ficara somente cerca de três ou quatro meses.
Era um hotelzinho bem simples, um dois estrelas – ao contrário desse outro no
qual trabalhava já há alguns anos, que era um quatro estrelas – , mas lá, naquele suposto
muquifo, lidava na recepção numa confortável
cadeira de couro reclinável e giratória, tinha que vestir uma camisa, uma calça e sapatos, certo, mas ninguém ficava também controlando muito detalhada e obsessivamente meu fardamento ou alguns pelinhos no meu rosto, e ganhava comida, e ganhava mais ou
menos o mesmo salário que no outro... não que quisesse voltar a trabalhar lá –
não, em termos gerais nessa vida não costumo considerar essa possibilidade, de voltar atrás, retroceder; ainda que muitas vezes possa
mesmo ser tentador, creio que devemos sempre andar para a (suposta) frente – mas a
questão que eu me impunha era exatamente essa:
Cara, sapatos lustrosos e barba bem feita à parte, havia
eu realmente evoluído?...
(Continua)