quinta-feira, 12 de abril de 2018

"Diário de um recepcionista de hotel canastrão - Parte 4" (Por Diego T. Hahn)


O proprietário do hotel era um coroa, na casa dos sessenta e alguma coisa, mas meio judiado, representando mais (embora talvez tivesse até menos), gordo, e não de muitas palavras, que aparecia lá de vez em quando na recepção, perguntava a respeito da taxa de ocupação ou algo assim e desaparecia, provavelmente voltando para seu escritório para contar o vil metal que entrava abundantemente em caixa (e obviamente não respingando nada desse excedente para a gente...).

Soa como um clichê, sei, da imagem que o revoltado proletário costuma ter do "capitalista", mas, diabos, ele parecia realmente só se importar com aquilo: encher os bolsos com sua infinita bufunfa, pois passava os dias enclausurado naquele hotel, da manhã à noite; acredito que não tinha grandes diversões na vida, não praticava um esporte, não costumava sair para jantar – comia quase sempre no restaurante do hotel mesmo – ou beber com amigos... enfim... aquilo me incomodava – por ele, veja bem, mais do que pela minha invejosa revolta; pelo "desperdício" que eu via naquele quadro – mas, que fosse, o que me importava mesmo, no fim das contas, é que ao menos ele não me enchia o saco ali. 
Por mim, então, podia seguir com sua vida sedentária e antissocial, enchendo o rabo de grana, desde que não atrapalhasse minhas sessões de pornô ali no pc da recepção...

Ele só parecia não gostar muito realmente, não sei bem por quê, quando eu começava a conversar demais com os hóspedes.
Sei que não apreciava nem um pouco quando eu enveredava, por exemplo, pelo terreno da política, mas aí eu até entendo, já que, como bom canhoto, sempre pendi para a esquerda, ao passo que, como já dito e creio que bem ilustrado, obviamente ele era um tradicional burguesão.

 Mas, diretamente, ao menos, ele não vinha nunca me dizer nada, só olhava meio enviesado de longe; quem chegava junto era o gerente (ou, "o capachão", como o chamávamos pelas costas), dizendo coisas como “tu é pago pra fazer check-in e check-out e não pra resolver os problemas do mundo, seu Marco...”.

Ok, por vezes eu travava mesmo ferozes duelos verbais com os clientes ali na recepção – discutíamos sempre educadamente, mas por vezes num tom um pouco mais alto e enfático, enquanto a fila do check-in crescia e os clientes que aguardavam para serem atendidos faziam cara feia, como ficava também a do capo, que mandava então o capa (sim, nos referíamos aos dois assim: o capo ("chefe", em italiano, segundo um colega nosso que sacava das línguas estrangeiras) e o capa (de capacho mesmo)) vir falar comigo, fazendo todos os olhares do arredor voltarem-se para a gente, mesmo os daqueles hóspedes que estavam alheios à conversa, que só estavam coçando ali pelo hall de entrada, lendo um jornal, esperando seu carro ou algo assim, alguns se mostravam então até meio espantados, provavelmente com a ousadia daquele carinha atrás do balcão ali, um ignorante qualquer, querendo saber mais que gente culta e estudada como aqueles caras que ali se hospedavam; quem ele pensava que era?... 

Não raras vezes, porém, foram aqueles com quem respeitosamente bati (de frente) e debati (questões um tanto quanto polêmicas) que se despediram efusivamente de mim ao partirem, deixando-me além de tudo, como bons burgueses, uma boa gorja (ao passo que eu, como bom socialista, aceitava de bom grado essa contribuição para meu, digamos, “fundo revolucionário”)...

Certa vez, por exemplo, apareceu um militar americano no hotel e começamos a conversar, a princípio, sobre assuntos amenos na recepção. 
Lá pelas tantas, no entanto, estávamos a altos brados, eu batendo nos states por sua política externa, seu militarismo, seu imperialismo, blá blá blá, e o cara, que estava lá para um intercâmbio com o Exército Brasileiro, republicano, rebatia com o clássico discurso protocolar de que eles só queriam exportar sua democracia e tal...

Caramba, acho que nunca vi o dono do hotel me olhar tão feio como aquela vez!

No seu check-out alguns dias depois, porém, o americano me deu um longo aperto de mão e me deixou nada menos que vinte dólares de tip (Oh, yeah: God bless America, man!)...

Ah, sim, os jornais: a propósito de "acesso à informação", a princípio os jornais do dia eram deixados em um canto discreto sobre o balcão da recepção. Pois quando não havia muito o que fazer eu dedicava-me a me informar sobre os acontecimentos do mundo, lendo-os um por um. 

A direção, contudo, por algum motivo parecia não gostar daquilo...

Assim, eu procurava ler quando eles não estavam por ali, mas, ainda que largasse os diários e voltasse ao meu computador como se estivesse fazendo algo muito importante quando era flagrado no ato, logo decidiram tirar os jornais daquele local e passaram a jogá-los sobre uma mesinha do hall de entrada.

Decisão acertada, ao meu ver, por ser um lugar realmente mais propício para os hóspedes terem acesso a eles, ainda que não fosse por esse motivo que os tivessem tirado do balcão da recepção; não, tiraram-nos dali simplesmente para que nós, recepcionistas, não pudéssemos lê-los mais. 
Não ficava bem, você entende: o recepcionista, ainda que não tivesse porra nenhuma para fazer, ficar lendo jornais... onde já se viu? O desgraçado devia era ficar ali, parado, imóvel - e sempre de pé, feito um elegante puro sangue, pois não tínhamos também sequer uma cadeira, um banquinho, nada, para escorarmos por alguns instantes que fosse naquelas seis (por vezes aparentemente infinitas) horas ali, independente dos eventuais ócio e solidão momentâneos no saguão de entrada - , bem vestido, bem alinhado, sem fazer nada, sem ler nada, sem conversar também – sim, parado e calado, pois, a não ser sobre o estritamente necessário para o trabalho, não devíamos conversar com os mensageiros, mesmo que estivéssemos só nós dois ali, devíamos ficar em silêncio, militarmente olhando para o horizonte... seeeeeennn-TIDO!!

Porra! É sério, cara... Mas, que diabos, sinto muito, mas não, eles não conseguiriam conter minha sanha de informação...
Pois nessa nossa nova era tecnológica - embora àquela época ainda não tivéssemos os famigerados smartphones e o diabo a quatro - obviamente bastava eu entrar no computador e ler as mesmas notícias em versão on-line. 
Ha ha!... Assim, por mais que não quisessem, eu me mantinha razoavelmente informado.

É isso aí, meus amigos: querendo ou não, pois, eles teriam um maldito recepcionista que lia (sim, livros também!), relativamente bem inteirado dos assuntos do mundo, e pronto para dialogar sobre quase qualquer coisa com os preciosos hóspedes deles.

(Continua)