terça-feira, 31 de dezembro de 2019

(Ainda - mas nunca o bastante) sobre mestres, despedidas e homenagens (por Diego T. Hahn)


Bem, como houve um período, alguns anos atrás, aqui no blog em que entramos numas meio "fúnebres", com uma sequência de postagens que fazia o mesmo parecer mais um obituário do que um espaço propriamente literário (embora com uma sensação de que eram "necessárias" e justas as homenagens feitas então - e, no fim das contas, em última instância, a "culpa" era mesmo da vida... ou, mais coerentemente, do seu oposto), havíamos dado um tempo nessas...

Mas, desde o final do ano passado, ainda que tenha resistido à época (com o pensamento meio vago de "não banalizar" a questão e fazer tão somente uma homenagem "silenciosa", em pensamento), me dou conta agora, passado quase exatamente um ano, que meu pretenso "eu escritor" estava ainda, lá no fundo, com essa dívida com um Mestre (e que, ainda que ninguém leia ou nada signifique para mais ninguém, esse gesto sempre vale quando é "de coração", como se diz - e talvez assim, de alguma forma, isso chegue mesmo ao próprio homenageado, em alguma dimensão especial desse universão velho sem porteira). E captei isso esses dias quando, coincidentemente, ao folhear um livro de crônicas de coletivo de autores santa-marienses de alguns anos atrás ("Tudo haver", de autoria do Athos Miralha da Cunha, do Orlando Fonseca, do Pedro Brum Santos e do Humberto Gabbi Zanatta) leio lá, em uma crônica do último: "Padre Otávio Ferrari nunca vai ler estas linhas. Ao menos neste mundo (...) Ele já nos deixou há alguns meses na sua natal Nova Palma"...

Ah, os sinais (pra quem gosta de acreditar - ou da ideia de acreditar - nos sinais)...

Então, parafraseando-o, Mestre Zanatta também nunca vai ler estas linhas - ao menos não neste mundo - , mas segue uma singela (e creio que necessária) homenagem a ele, que nos deixou, como dito antes, há quase exato um ano, em um relato do nosso contato nos últimos anos.

Contato que começou com um convite para a "patronagem" da nossa 1ª Feira do Livro de Nova Palma, que deveria ser realizada em 2015... fomos eu, então assessor de Cultura do município, e a Secretária de Educação à época, Neusa, à casa do compositor de "Tropa de Osso" - e, mais especialmente para nós, do Hino de Nova Palma - fazer o convite pessoalmente, ao que fui surpreendido já na recepção com o reconhecimento por parte dele (até então nunca havíamos conversado diretamente, além de ao telefone para marcar essa visita), que disse, brincando, "sim, tu me substituíste no livro dos colorados lá"... (ele se referia à terceira parte de uma trilogia de contos e crônicas com o tema Inter escritos por autores santa-marienses e à qual eu participei com três textos - Zanatta havia participado da segunda parte alguns anos antes) - correndo o risco da "heresia", pois, mas não perdendo a piada, respondi: "É, e, olha, mesmo saindo o camisa 10, o substituto conseguiu cumprir a missão e a equipe manteve o nível, hein!" (Acho que ganhei a simpatia dele, que sorriu de canto de boca, especialmente por essa "molecagem"...).

A famigerada feira não saiu naquele ano, mas no ano seguinte lá estava Zanatta na Câmara de Vereadores de Nova Palma, homenageando o município no mês de aniversário do mesmo ao presenteá-lo com um belo videoclipe do hino municipal (cujo autor da letra é ele mesmo, composto em 2010 em parceria com Evandro Zamberlan, autor da música). E encantou a todos os presentes o "Zanattinha", ao discursar falando sobre a história de Nova Palma e sua gente (e mostrando, surpreendentemente, tanto ou mais conhecimento de ambos do que grande parte da própria gente do município)...

Como o hino municipal foi o tema do concurso fotográfico de 2017, durante a premiação do certame lá estava novamente Zanatta na Câmara de Nova Palma no julho seguinte, desta vez mais sendo homenageado do que homenageando - mas novamente dando seu show de oratória e carisma, para deleite da plateia.

Brincávamos com ele, "pô, tu de novo por aqui, Zanatta!?", pois três meses depois, outubro de 2017, finalmente aconteceu a 1ª Feira do Livro de Nova Palma (da qual ele já era patrono há uns dois anos...)... "Mestre Zanatta", como eu o chamava, abriu a feira emblematicamente percorrendo o salão paroquial e tocando sineta, lançou um livro (produzido, em parceria com outro mestre, o Byrata, em tempo recorde especialmente para o evento) intitulado "Palmas para Nova Palma", prestigiou os dois dias de feira, da manhã à noite, e ao final da mesma, entregou uma palmeira-real para a Secretária de Educação de então, Inês, e para a equipe organizadora do evento como presente-símbolo (em referência ao nome do município).
A sua ideia era ainda em 2018 trabalhar o livro que homenageava Nova Palma junto às escolas do município, mas, como se diz, "fomos nos enrolando" com outros afazeres, e Zanatta acabou adoecendo pelo meio do ano - em outubro, ao contatá-lo ao telefone, ele, já em delicado repouso em casa após uma temporada no hospital (e dois meses antes de seu falecimento), me falava ainda sobre seu desejo de começar, talvez no mês seguinte, a atividade pela escola da comunidade de origem quilombola do Rincão Santo Inácio...

Não deu...

Mas, ainda antes disso, mais uma vez, Zanatta "deu um jeito" de estar entre nós em Nova Palma, ainda que indiretamente, em 2018 - com menção no protocolo do evento que abria em julho o aniversário do município com o desejo de melhoras (e, infelizmente, posteriormente, em dezembro, com a declaração por parte do Prefeito André do luto oficial de 3 dias...).

Como não poderia deixar de ser, com essa ligação quase "astral" com a cidade, Zanatta obviamente não poderia deixar de estar com a gente na 2ª Feira do Livro, realizada neste 2019, quando sua família recebeu como homenagem a sineta com a qual ele abriu simbolicamente a 1ª edição da feira dois anos antes e com a interpretação pelos músicos nativistas e velhos parceiros seus, Antônio Gringo, Evandro Zamberlan e Sérgio Rosa, de algumas de suas composições, como "Não podemo se entregá pros home" e "América Latina", além da já citada "Tropa de Osso", e, claro, do Hino Municipal de Nova Palma.

Enfim. Já faz um ano que faz uma falta danada por essa parceria, mas, em termos mais amplos, que falta ainda mais brutal faz um assim em tempos de burrificação em massa e atentados sistemáticos (e, o mais incrível, apoio a esses atentados!) contra a educação, a cultura e o humanismo. Nós, soldados, resistimos, vamos avante - mas meio "órfãos", pois que falta faz um general como o Zanattinha nessa batalha!...

Mas, ao mesmo tempo, olhando, e me valendo do clichê (pois não, brincadeiras à parte, cada um tem o seu lugar, mas ninguém substitui à altura os verdadeiros mestres - aqueles que fogem exatamente dos clichês) da metade cheia do copo, foi pouco mas precioso tempo, no qual tivemos ao menos a sorte de conhecer um pouco melhor essa grande figura e dividir algumas boas histórias e lições, que ficarão na memória e ajudarão sempre a lembrar de continuar lutando a boa luta, na esperança de que "talvez um dia não existam aramados/ nem cancelas nos limites das fronteiras...".
Ah, e, como se não bastasse por aqui o emocionante hino, cada vez que ressoa, a nos lembrá-lo, também a sua/nossa palmeira-rei cresce firme e forte em frente à Prefeitura Municipal, mais um símbolo vivo para não nos deixar esquecer - e até fazer sorrir, pelas histórias que vão adiante.

Obrigado (ainda que em atraso), Mestre - e um bom ano novo a todos!


sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Tradicional reprise de fim de ano: "Papai Noel não existe" (por Diego T. Hahn)


(Misturando a tradicional preguiça de fim de ano, ritmo já meio de férias, e, bem, a temática pertinente - a propósito, tirem as crianças da sala (ao menos, aquelas alfabetizadas e ainda "crentes"...)! - , vamos encerrar 2019 aqui no De Letra com uma re-re-reprise; como de costume, no entanto, com pontuais novas edições (com um cópia e cola, também novamente editado, até desta introdução - mas, enfim, duvido que algum dos 4 leitores do blog lembre mesmo do ano passado) - texto que, não custa nem um pouco re-re-re-reprisar também, foi selecionado no ano de 2013 para a coletânea dos melhores do Prêmio Sesc de Crônicas "Rubem Braga", de Brasília/DF - obrigado, obrigado!... E Feliz Natal - atrasado - e tudo o mais!)

Não lembro bem do exato momento em que esse fato se deu - o que me parece estranho, já que é de certa forma um "divisor de águas" (entre aspas, pois um dos daqueles chavões rechaçados pelos grandes literatos - e esta observação entre parênteses para já imediatamente pedir a absolvição aos mesmos, ou ao menos um indulto de Natal): agora você é um mocinho, não é mais tão ingênuo, não acredita mais em tudo que te dizem, sabe que há muito mais coisas por trás das coisas por trás de todas as coisas, e às vezes as pessoas só querem te iludir e...

Bem, enfim, você entendeu: é um "momento-chave" (consideremos que recebi o indulto...). Pois, como dizia, não lembro bem do exato momento em que descobri – ou me contaram – que o bom velhinho não existe, ao menos não aquele bom velhinho, que bom velhinho de verdade mesmo é o vovô e ele não dirige um trenó voador e sim um Monza 87 e tem como animal de estimação um protocolar cãozinho e não um bando de renas. Não lembro, aliás, se descobri por conta própria ou se alguém me contou, mas não creio que tenha restado algum trauma da revelação; ao menos não tenho registrado conscientemente na memória algum "choque" decorrente de tal descoberta...

Penso nisso, no entanto, agora, ao sentir essa melancolia, essa nostalgia, essa tristeza misturada com alegria inundar meu peito, ao flagrar o palhaço, ainda todo maquiado, fora do picadeiro, fumando um cigarro e esbravejando algum palavrão em protesto contra alguma coisa que o incomoda ou contra as agruras da vida em geral, com um tom de voz e uma carranca totalmente diversos daqueles impostados naqueles mágicos momentos de alguns instantes atrás no decorrer do show.

Esse palhaço fora do picadeiro é a vida crua e real. Ele é a revelação que Papai Noel não existe mais uma vez sendo jogada na minha cara, depois de tantos anos.

Não só ele, na verdade, como qualquer artista em geral, quando o vemos “do lado de fora”, falando de qualquer futilidade do cotidiano, como a gente, nos dá uma certa sensação de “pertencimento” ao mundo, uma sensação de que a nossa vida não tem nada de excepcionalmente banal – ela é banal como todas as outras, mesmo aquelas das estrelas – e ao mesmo tempo de desilusão.

Pois sim. No fim das contas, é isso: vivemos de ilusão.

É como ver o ídolo do nosso time indo embora depois de anos de clube e jogando no rival, beijando a camisa adversária como um dia beijou a nossa; é como ver os erros de gravação de um filme; é como perceber que talvez não haja nada além dos erros de gravação.

Mas ainda assim vivemos e continuamos nos alimentando de ilusão. Por mais racionais e duros que sejamos, invocamos vez em quando nos nossos íntimos aquele resquício de magia que tem um quê de infantilidade – ou vice-versa – lá no fundo do peito. Apesar de termos certeza de que tudo isso aqui se resume tão somente a células, carne e barro vagando a esmo pelo espaço, olhamos da janela para o céu estrelado na calada da noite e nos permitimos viajar longe por alguns instantes, solitariamente, em segredo, sem que ninguém mais saiba, naquela nossa nave particular, buscando por um algo mais lá nos confins do universo – ou mesmo em alguma outra dimensão só nossa.

E assim, quando voltamos, por mais desgastados, ranzinzas e céticos que sigamos, continuamos rindo do palhaço – e, de vez em quando, nos flagramos até mesmo dando uma olhada meio de relance, como quem não quer nada, para a chaminé em meio à ceia de Natal.