sexta-feira, 31 de maio de 2013

Grupo Consórcio de Batatas da Laide (por Juliano Lanius)


Grupo Consórcio de Batatas da Laide

Almoço em família é muito engraçado. Aqui no Sul, o cardápio é quase sempre o mesmo: churrasco. Que bom! Qual é o gaúcho que não gosta de uma carne bem gorda e sangrenta? Ainda mais ao redor dos que nos amam e amamos também. Eu adoro.
 
Minha família não é muito diferente. Assim como na maioria das famílias, também temos o tio comediante, no caso, Tio Cláudio. Tio Cláudio possui certo dom natural para contar piadas, fazendo com que um ínfimo detalhe torne-se algo de que todos achem graça. A diferença – e vantagem – de Tio Cláudio para os outros tios é que ele frequentemente renova seu estoque de anedotas. Ainda bem, por que sempre tem aquele que conta a mesma piada todas as vezes que quer agradar. Sabemos quando Tio Cláudio está passando um pouco da conta no momento em que sua esposa, Tia Thereza, solta um: “Menos, Cláudio Augusto!”. Quando nosso nome sai por completo da boca de nossas esposas, ou mães, é que a coisa está feia para o nosso lado. E Tia Thereza tem certa implicância com seu nome. Não sei se ela pensa que as pessoas sempre erram ao escrever Thereza – e sempre erram – ou se pensa que as pessoas são analfabetas. Sempre que lhe perguntam seu nome, ela diz: “Thereza, com H e com Z, tá?”. A pessoa deve se sentir até meio coagida, pensando que ao menor erro de grafia vai receber um xingamento ou coisa parecida.

Também temos o gritão na nossa família. Você também tem um na sua? Pois é, e advinha quem é o gritão da minha? Meu pai. Pai para mim, Sérgio para as irmãs, e Tio Sérgio para as sobrinhas. Na escola, não ensinaram o princípio da propagação do som a meu pai. Ele não deve ter aprendido que as ondas sonoras perdem força à distância, mas que de perto são bem potentes. Acho que, às vezes, ele pensa que os vinte centímetros entre ele e a pessoa que o escuta não são suficientes para a intensidade com que ele fala. Pai, é mais do que suficiente.
Ah, na nossa família também temos aquela tia que recebe os convidados em sua casa, a anfitriã. Essa sempre é a mais prestativa, alcança os pratos, os garfos, as panelas e os copos. Bem pudera, já que ela é a dona da casa, ela é que tem que saber onde estão essas coisas. Tia Adelaide, mais conhecida como Tia Laide, é a que nos recebe na sua casa em muitos encontros familiares. Tia Laide é admirada por todos na família por sua maravilhosa salada de batatas (maionese, para os gaúchos). Tanto, que, mesmo quando os almoços aconteçam em outro local, ela sempre é a escolhida para fazer a maionese, ou lhe oferecem para fazer. Porém, em sua casa, ocorre um probleminha toda vez que ela prepara a tal salada. Geralmente, as pessoas preferem que a comida seja farta, que todos fiquem satisfeitos, ao invés de deixar os convidados com desejo de comer mais. Tia Laide não pensa assim. Para ela, se não sobrar nada, mesmo que um ou dois nem tenham comido, melhor. Não sei se é por que ela não gosta de guardar os restos ou por que ela quer realmente que as pessoas a elogiem e peçam que ela faça mais da próxima vez. Tipo massagem no ego, sabem?
E, pelo jeito, esta história é de longa data. No último almoço muitos disseram que Tia Laide sempre faz pouca maionese. A maioria explica que é a quantidade de batatas que ela cozinha a causa da fome alheia. Ela diz que a media correta é duas batatas por pessoa. Eu, sinceramente, não sei. Mas não custava nada colocar ao menos mais cinco batatas na panela.

Neste encontro, onde a polêmica foi grande, todos trouxeram idéias de como resolver a questão da falta de batatas na casa da Tia Laide. A hipótese que mais nos animou foi a possibilidade de plantarmos nossas próprias batatas. Concordamos em fazer uma espécie de “consórcio de batatas”. Cada um contribuirá com uma quantia ainda não estipulada de dinheiro. Esse investimento será para custear o terreno, que será arrendado na chácara de Tio Cláudio e Tia Thereza – com H e Z –, a compra das sementes e algum produto que seja necessário. A mão-de-obra vai ser familiar. Assim, não haverá mais desculpas por ter deixado as pessoas com angústia por não poder servir de mais uma colherada da bendita maionese.

O único problema é que até a primeira safra ainda teremos outros encontros. Por este motivo, deixo aqui um pedido aos produtores e comerciantes de batatas: estamos aceitando doações desta raiz de que tanto carece nossa família. As informações sobre como efetuar as doações podem ser obtidas através do meu email. E aqueles que se interessam em fazer parte deste consórcio, que fará um imenso bem aos amantes da maionese da Tia Laide, devem aguardar divulgação nos meios de comunicação. Depois de consolidado, o Grupo Consórcio de Batatas da Layde, fará doações da maionese a quem queira experimentar.
 
(Juliano Lanius)

terça-feira, 28 de maio de 2013

Felippão está convocando


Pois estão abertas até o dia 14 de junho as inscrições para o tradicional Concurso Literário Felippe D´Oliveira (e também para o Concurso Fotográfico Cidade de Santa Maria; nos últimos anos eles ocorrem quase sempre no mesmo período e seguindo mais ou menos o mesmo cronograma), que visa homenagear a memória do ilustre poeta santamariense (1890 – 1933).

O Felippe D´Oliveira, aberto para brasileiros moradores em todo o território nacional e exterior e que está em sua trigésima sexta edição, premia os três melhores textos em cada uma das categorias: Conto, Crônica e Poesia. Há também um prêmio de incentivo para autor local.
Boa oportunidade para quem gosta de se aventurar no mundo das letras (e tem paciência para imprimir 3 vias do texto, colocá-las num envelope grande, que será identificado com etiqueta número 1 e no qual deverá ser inserido também um cd com o texto gravado e etiquetado com o título do mesmo e um envelope menor, que será identificado com a etiqueta número 2 e no qual será inserida a ficha de inscrição e... Ufa! Enfim, aqueles costumeiros trâmites dos concursos) se testar. Ah, e além da “honra”, financeiramente o prêmio também não é de se desprezar: 3 mil reais para o primeiro lugar em cada categoria e 2 mil reais para o incentivo local. Todos os premiados recebem certificado.
Link do edital do Concurso:


Algumas curiosidades sobre Felippe D´Oliveira:
O pai do poeta, que era juiz municipal, foi assassinado antes do seu nascimento em frente ao local onde funcionava o Fórum de Santa Maria na época.
Embora nascido em Santa Maria, viveu e fez sua carreira fora da cidade – a maior parte no Rio de Janeiro.
Além de escritor, era também farmacêutico, jornalista, empresário e esgrimista.
Tendo apoiado a Revolução Constitucionalista de 1932, foi perseguido e exilado na França.
Faleceu perto de Paris em um acidente de carro.
Tem um busto seu, esculpido em bronze por Vitor Brecheret, na Praça Saldanha Marinho, em Santa Maria, exatamente em frente ao local onde funcionava o Fórum da cidade, onde seu pai fora assassinado – o busto está posicionado de costas, como simbolizando seu luto.


Extra-oficialmente: reza a lenda – na verdade contou-me um amigo, que pediu para não ser identificado como fonte, mas que não pestanejarei em fazê-lo em caso de eventual processo pela publicação deste “causo”! –  que haveria pessoas imbuídas da ideia de levar o busto embora para o centro do país – provavelmente para ala de determinado museu carioca que homenageia o poeta – pelo valor da escultura e por supostamente ser o mesmo mais identificado com o Rio de Janeiro, e assim autoridades da área cultural de Santa Maria temeriam por uma decapitação e subsequente “sumiço” da cabeça de Felippe D´Oliveira da praça na calada da noite, destacando inclusive vigilância especial noturna para evitar tal ato.
Verdade ou não, a história é interessante e, como dizem: se a lenda é mais interessante que o fato, publique-se a lenda.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

terça-feira, 21 de maio de 2013

Pelos sebos da vida: "Gomorra", de Roberto Saviano (por Diego T. Hahn)


A Máfia.
Costuma-se muitas vezes designar certas organizações criminosas como entidades abstratas, intangíveis, algo grande demais para nossos reles olhos mortais, quando, na verdade, o modo operativo dessas organizações, como não poderia deixar de ser, desenvolve-se também como um trabalho operário de formiguinhas no dia-a-dia, no comércio - seja lá do que for - que pode estar acontecendo nesse exato momento ao nosso lado, enfim, é algo que faz parte também do nosso pequeno cotidiano, embora obviamente ninguém nos conte isso e a gente muitas vezes não faça também lá muita força  para ver.
 
Da autoria do italiano Roberto Saviano, Gomorra é uma excelente leitura, não somente pela fluidez de seu texto, mas especialmente por apresentar um panorama das entranhas do mundo mafioso – mais especificamente da Camorra, a máfia napolitana e a mais violenta da Itália – de um modo como talvez não tivesse sido feito até então.
Napoli é uma das cidades mais belas, mais pobres, e mais violentas da Itália – e mesmo da Europa – , com altas taxas de desemprego e poucas perspectivas para os jovens que resolvem lá permanecer ao invés de partir para uma Roma, uma Milão ou algum outro centro do norte do país com mais possibilidades, o que facilita o recrutamento das formiguinhas.
 
Saviano, natural da cidade, traça um retrato de partes da sua juventude caminhando lado a lado e vendo passar diante de si fatos e personagens que fazem parte da história desse mundo obscuro para a maioria.
 O autor narra minúcias sobre o contrabando no porto de Napoli, principal porta de entrada na Europa para produtos "sem procedência comprovada" (cerca de 60% da mercadoria que ali desembarca invade a Itália e o resto da Europa sem submeter-se aos tradicionais “empecilhos” alfandegários). Prédios no entorno do porto que são comprados e em seguida têm seus interiores completamente "esvaziados", tendo inclusive suas paredes divisórias derrubadas, transformam-se em verdadeiros esqueletos, para simplesmente servir de depósito para a mercadoria que chega pelo mar.
 
Passeia pelos fedorentos lixões clandestinos improvisados em certas zonas da Campania (a região da qual Napoli é capital) e para onde é levada grande parte do lixo tóxico de toda Europa, envenenando vidas ao redor, entre as quais as dos próprios chefões que lucram com tal negócio.
Expõe ainda o chocante treinamento militar ao qual são submetidos adolescentes recrutados pelo Sistema: meninos que são vestidos com coletes à prova de bala e em seguida atingidos por disparos à queima-roupa no peito, para acostumarem-se com a situação e perderem o medo diante do perigo.
Mas, ao mesmo tempo que visualizamos detalhes e minúcias do seu modus operandi, sim, ela talvez seja ainda grande demais para os nossos olhos – e nossa mente: costuma-se pensar em máfia como um fenômeno perdido lá no sul da Itália, quando seus tentáculos estão espalhados assustadoramente através de suas conexões econômicas não só por todo aquele país, como por boa parte da Europa, Estados Unidos, e outros tantos pontos desse nosso mundão velho de meu Deus – inclusive, veja só você, que surpresa, nosso belo Brasil varonil (anos atrás, um dos antigos chefões, Antonio Bardellino, foi morto no Rio de Janeiro, e outro, Tommaso Buscetta , preso em São Paulo, por exemplo).

E você pensa num mafioso como um tiozão sentado na sua poltrona com um charutão pendendo da boca e pose de Marlon Brando, capangas  com metralhadora ao redor, e, sim, talvez ele não fuja completamente desse estereótipo, mas o importante é saber que ele não é só isso, ele também é o político no congresso, e ele é o empresário trocando favores com esse político... e ele é parte de um ciclo que infelizmente talvez nunca tenha fim.
 
Interessante, por sinal, falar no estereótipo do Poderoso Chefão (o clássico filme, a propósito, é baseado no livro IL Padrino, do italiano Mario Puzo) pois, costuma-se pensar no mesmo, assim como em outros gângsters, como inspirados na máfia “real”, quando, na maioria das vezes, pelo contrário, o que acontece é que esses, os mafiosos da vida real, é que costumam inspirar-se nos filmes de gângsters e copiar certo modo de agir, falar, vestir-se. Certo chefe de determinado clan, conta por exemplo Saviano, mandou certa feita que se construísse no hall de entrada de sua casa uma réplica perfeita da escadaria da casa de Tony Montana, de Scarface, aquela do tiroteio insano de Al Pacino.
 
Roberto Saviano, após ver Gomorra transformar-se num sucesso de público e crítica, vendendo milhões de exemplares do livro na Itália e em todo o mundo, vive hoje sob escolta permanente em algum lugar desconhecido longe de sua terra natal - afinal está, logicamente, jurado de morte pela máfia. 
(por Diego T. Hahn)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Frase(s) da semana (por Herman Hesse)


“Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo.”

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Aquela (por Diego T. Hahn)


                                                                 Aquela

Quando o senhor Schumacher chega ao bar ainda não há ninguém lá além do garçom, que enxuga alguns copos atrás do balcão, e do velho papagaio, que é a mascote do lugar e está dormindo quietinho em seu poleiro. Obviamente o senhor Schumacher está adiantado. Ele senta-se, chama o garçom e pede um wurstel e um chope, enquanto aguarda.
- “Uma” wurstel bem “assada”, porr favorrr... – especifica, carregando nos erres finais. Depois fica curtindo o movimento das garotas de programa que fazem ponto em frente ao bar.
Alguns minutos depois chega o senhor Sam.
- Hey, man! What´s up? – saúda o outro, com o olhar voltado também para as profissionais lá fora.
- Hein!? – pergunta o senhor Schumacher, que estava distraído olhando para o papagaio.
- Como vai? All right?
- Hummm... sim... alles gut... alles gut... tudo bem… e “a” senhor? Também “chamada” para vir aqui?
- Yeah, yeah, yeah... recebi uma carta... mas não entendi bem... well, anyway... estou aqui...
- Eu também não entender bem... bom, pedi há pouco algo para comer... peça “a” senhor também, enquanto aguardamos...
- Ok... Hey, man! – grita o senhor Sam, dirigindo-se ao garçom – um hambúrguer, com bastante bacon, batatas e ovos fritos, please!...
Nesse momento adentra apressado o bar o senhor Manuel, com seu indefectível bigodão, só agora se lembrando de tirar seu avental de padeiro antes de sentar-se junto aos outros.
- Bom dia, gajos, bom dia... Como estão? É aqui a reunião??
- Reunião? Well... me parece que sim... só recebi uma carta para aparecer aqui na hora tal... and so, here I am...
- Eu também... não compreender bem “esse” carta, mas... estar aqui também...
- Hummm... estranho... nós três, três estranhos, unidos por algum motivo que não sabemos aqui neste bar...
- Yeah... está parecendo um daqueles filmes... “Jogos mortais”... do you know?
- Não... eu não gostar muito “dessas” lixos “americanas”...
- Ora pois... se é um filme ou o quê, não sei... só sei que saí apressado da padaria, peguei uns minutinhos de folga, mas tenho que voltar já, já, pois Maria não é muito boa com as contas...
É quando então entra no bar o senhor Giuseppe, pedindo mil desculpas pelo atraso.
- Ciao, ciao! Buongiorno a tutti!... Mi spiace, ragazzi... é que... tive uns contratempos... não estava conseguindo achar a salsa certa para o almoço e...
- No problem, man. Sente-se aqui com a gente... estávamos falando... estranha situação...
- Que situação?
- Você recebeu uma carta também, não?
- Sì, si... una lettera... dizendo para vir aqui... às onze e meia... mi spiace ancora per il ritardo!...
- “A” atraso não tem problema... “a” problema é que todos nós quatro recebemos “esse” carta... mas não sabemos quem mandou... e, principalmente, “a” porquê!...
- Entendeu, gajo? Ou quer que eu traduza, já que nossas línguas são mais próximas? Porque às vezes é difícil entender o amigo ali...
- No, no... capisco, capisco... é, sim... compreendo... estranho mesmo... e pelo que vejo, cada um de nós é de uma nacionalidade diferente...
- Ah, sim? É verdade! Sabes que eu não tinha notado?
Quem faz essa última observação, obviamente, é o senhor Manuel.
Então, enquanto tomam seus drinques e beliscam os petiscos que pediram, os quatro olham sérios uns para os outros por alguns instantes, tentando entender aquela situação.
- “Um” tentativa de sequestro?
- Maybe uma proposta de business?
- Um bello almoço entre amici?
- Mas que “amici”, se a gente nem se conhecia até agora? Are you crazy?
- Bem... não sei por que isso nos impediria de comer juntos una buona pasta...
- Uma piada...
- Como, “senhora” Manuel?
- Senhor. Senhor Manuel... Sim, uma piada... olhem para a gente...
- O que tem a gente? I don´t understand...
- Ora pois... um alemão, um americano, um português e um italiano...
- Sim?
- Isso só pode ser coisa de uma pessoa...
 Who? Chi? Wer??
- O senhor João.
Os outros esbravejam, concordando. Claro! Isso só podia ser coisa dele!
- Ah, essa não... eu tô fora...não tenho tempo para isso... e geralmente sou só um coadjuvante mesmo nessas histórias... tenho mais o que fazer... tenho um mundo de coisas para dirigir... ô, garçom, cancela o hambúrguer!...
- Ja, ja... eu também... só “uma” coadjuvante!... não poder aceitar isso, depois de “minha” povo ter sido protagonista, para “a” bem ou para “a” mal, “nas últimas” grandes encontros entre povos “nas últimas” séculos...
- Ma che cazzo! Podia estar em casa, já preparando a pasta... já é mais de meio-dia...
- Ora pois... reclamam aí ainda... pior eu! Preferia ser coadjuvante, pois quase sempre protagonizo e acabo me ferrando nessas histórias aí do João!... Estou fora também!... tenho que voltar para a padaria...
Os quatro se levantam, o alemão paga a conta por todos, e vão embora, esbravejando.
Cerca de meia hora depois entra rapidamente no bar com cinco polígrafos na mão o senhor João, mandando beijinhos e piscadelas para as trabalhadoras que continuam em frente ao recinto.
- Bom dia, bom dia... Desculpem o ligeiro atraso... Aqui estão os roteiros e...
É quando se dá conta que não tem ninguém ali. Ninguém além do garçom, que continua lá atrás do balcão enxugando os copos, e do papagaio, que parece agora acordar com a entrada do senhor João no bar, mas continua quieto no seu poleiro.
Ele olha para a mesa onde estavam os outros. Joga sobre ela os polígrafos. Senta-se. Pede um martelinho de cachaça. Toma tudo de um gole só. Pede outro. Fica pensativo um tempo... olhar perdido no movimento das moças da vida lá fora... Uma delas, a mais espalhafatosa, uma mulata alta, cabelo ruivo, brincões de argola e vestido amarelo fosforescente berrante, lhe manda beijinhos pela janela,
mas ele não dá muita bola... parece desiludido...
            Uns dois ou três minutos depois, porém, parece ter um estalo... Ele ri consigo mesmo - enquanto o louro abana as asas agora, como se espreguiçando, e fazendo aquele barulho de louro, “crooot” - coça a cabeça, olha para baixo e hesita por um momento, mas em seguida se levanta e vira-se para o garçom gritando:
- Ô, garçom!... – e, após entornar o segundo martelinho e pedir outra dose, sorrindo, lhe pergunta – Conhece aquela do bêbado, da prostituta e do papagaio na padaria???
(publicado em "Flashbacks de um mentiroso")

terça-feira, 14 de maio de 2013

Doce ou salgado? (por Juliano Lanius)


Doce ou salgado?
Aprecio o conteúdo dos jornais que circulam no RS. Quando lia uma reportagem sobre pais e filhos, me assustei com a ideia de que, talvez, eu não saiba como brincar com meus futuros filhos. Quando tinha nove ou dez anos, as brincadeiras que faziam parte do meu cotidiano e dos meus amigos faziam nossos pés permanecerem dois dias pretos. Isso acontecia quando jogávamos futebol, descalços, no campo do time do Campina, cujo nome também era o do bairro onde morávamos. Outras vezes chegávamos todos molhados em nossas casas depois de uma incrível guerra, onde a munição de que dispúnhamos eram bexigas cheias d’água.
Certa vez, minha mãe, meu padrasto e eu estávamos nos preparando para sair, pois íamos a um restaurante almoçar. Convenci D. Márcia (minha mãe), que me deixasse andar de bicicleta na rua de casa durante aqueles minutos que antecipavam nossa saída. Melhor seria se eu não tivesse saído do pátio naquele dia. Alguma coisa deu errada com o freio da bicicleta, justo em uma curva no fim da rua, e eu caí dentro de um canal de esgoto – daqueles com direito a estrume boiando e tudo –, na esquina da minha casa. Cheguei em casa com uma cara de “tacho” e, obviamente, chorando. Umas palmadas na bunda completaram meu momento trágico. Hoje, eu e minha mãe rimos muito quando nos lembramos dessa história.
Atualmente, me parece que baniram a sujeira, os machucados, as cascas de ferida, da vida dos pequenos. Computadores substituem os pedais da bicicleta. Claro, é muito mais fácil apertar o botão do controle do videogame do que se esforçar para subir a lomba de bike. Os rolimãs aos poucos foram sendo deixados de lado, pois os carrinhos de hoje possuem baterias recarregáveis para não cansar o motorista. Por que será que as crianças não gostam mais de desafios? Quem ainda se lembra como se joga dama? E ludo? E jogar peão e soltar pipa, alguém sabe?
Dizem que, quando adultos, somos o reflexo ou o resultado do que éramos quando criança. Então, acho que não teremos mais homes como Ghandi, Getúlio Vargas, e até mesmo Hitler, que ainda que tenha feito uso de suas faculdades para propósitos cruéis, mudaram o destino de suas nações. Os nossos futuros homens quererão que tudo lhes venha pronto às mãos. O criativo se tornará cansativo. O pensamento lhes é imposto, e não exposto. Penso que não veremos mais crianças com o joelho esfolado. Com um ou dois olhos roxos. Ou portando uma lancheira. Lembram-se das lancheiras? A minha possuía um orifício na parte superior, onde a tampa da garrafinha térmica ficava exposta. Admiro minha mãe, pois até hoje faz merenda para meu irmão levar ao colégio.
Certos detalhes, que nos fizeram mais felizes na infância, podem contribuir para que sejamos, pelo menos um pouco, mais felizes. Ainda mais agora, que estamos na vida de adulto que tanto sonhamos um dia. Deixemos que crianças sejam crianças em tempo integral, com seus tombos e dentes perdidos. Sejamos também um pouco mais crianças. Oxalá todos os pais e mães reservassem uma hora de seus dias para brincar de “lutinha” com os meninos e de casinha com as gurias. As crianças adoram! E quando pegar o seu filho “limpando o salão”, pergunte: “Qual é o seu, doce ou salgado?”
 
(Juliano Lanius)

Frase da semana (por Hunter S. Thompson)


Eu tenho uma teoria de que a verdade nunca é dita durante o horário comercial.”
 

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Pelos sebos da vida: Sebo Café


Bom, pra tentar amenizar a saudade que a Feira do Livro, com todo seu vuco-vuco e seus interessantes saldos e descontos, vai deixar aí a partir da próxima segunda, vamos aproveitar este espaço para destacar alguns locais nos quais podemos encontrar uma boa leitura e um ambiente aconchegante na nossa Santa Maria, começando hoje com o Sebo Café (não, infelizmente o seu Carlos não está nos pagando “jabá” nem nada assim), localizado na Floriano Peixoto, um pouco abaixo do Bar do Pingo (mais fácil de situar eventuais leitores pinguços).

Você, chegando pela calçada, vê aquela portinha com aquela escadariazinha estreita e a princípio pode acontecer de não dar nada pelo lugar.


Pois é a velha história: não julgar um livro pela capa (ainda mais em se tratando de um sebo!)... ao adentrar o recinto, você se perde em um incrivelmente longo corredor, em meio a um oceano de livros – e também CDs, vinis, VHS (para quem não sabe ou não lembra o que é, trata-se da “fita” com a qual se assistia filmes no videocassete, antes de essa ser substituída pelo cd)...

Quando lá me perdi uma tarde dessas, levei cerca de duas horas para me achar outra vez, e foi quando flagrei-me então diante do caixa com quatro livros em mãos (Os Duelistas, de Joseph Conrad; Armas no Cyrano´s, de Raymond Chandler; Nosso homem em Havana, de Graham Greene; e Teje preso, do Chico Anisio, alguns dos quais já “resenhados” aqui no blog e outros na fila), pelos quais acabei pagando razoáveis 40 barões...

Seu Carlos, que é o proprietário e não pode dar-se ao luxo de perder-se também por ali, adotou o sistema de organizar as obras por gênero e alfabeticamente, facilitando assim também a vida de quem busca títulos ou autores específicos.

Além do mais, o Sebo Café está também vinculado ao Estante Virtual, site através do qual se pode comprar usados por encomenda via internet.


Enfim, recomendado: um lugar agradável, despojado, onde se tem a possibilidade, em meio àquele infinito de livros, de se deparar com grandes clássicos ou alguma rara obra cult perdida ali pelo meio e por preços bastante interessantes – e, claro, se tomar um bom cafezinho, para, digamos, justificar o nome do local. Vale a visita.

 

terça-feira, 7 de maio de 2013

Aos pés dos gaúchos (por Juliano Lanius)


Aos pés dos gaúchos
Os gaúchos têm uma relação de muito afeto e zelo com seus pertences. Não que outros povos sejam relapsos com seus bens, mas os sul-riograndenses conseguem demonstrar muito de sua personalidade através de seus adereços. Os calçados que vestem, por exemplo. Dependendo do modelo, da marca, da cor que calçam, podem expor suas características, seus sentimentos, seu jeito de ser.
Comecemos observando um dos símbolos do Rio Grande do Sul, a alparcata. Este rústico calçado – cruza de um triângulo amoroso entre um mocassim, uma sandália de pano e um rolo de corda – é usado por aqueles que gostam de ser elogiados e admirados, por cultivarem as tradições gaúchas. Porém, existe uma grande diferença entre quem usa a alparcata fechada – com a parte traseira no lugar certo – e quem a deixa com o calcanhar do calçado sob os pés. O primeiro pode ser considerado um gaúcho moldado aos costumes da cidade grande. Veste-se tradicionalmente – aos fins de semana –, com bombachas apertadas, camisa pólo, boina com etiqueta de grife e, claro, alparcata fechada. Intitula-se gaúcho nato, conhecedor das raízes. Mas, questionado sobre seu gosto musical, sai cantando: “Créu, créu, créu...”. O segundo vivente tem outros atributos. Não se importa com a beleza da bombacha, mas sim com o tamanho. Quanto mais larga melhor. Geralmente, a faca está embainhada na guaiaca, mas isso depende do lugar em que se encontra, pois arma branca é proibida. Queria ter vivido no tempo das revoluções, assim a adaga seria companheira inseparável. Chapéu é item indispensável no dia-a-dia, assim como a alparcata arrastando a parte de trás por onde quer que vá. Ou uma boina feita pela avó, que, mesmo nos dias de mais calor, só saem da cabeça para limpar o rosto encharcado de suor. Gosta do Teixeirinha e toma chimarrão o dia inteiro. À noite tem insônia, pois tem de ir ao banheiro várias vezes para destilar a água quente do dia anterior. Mas os dois são gaúchos. Cada qual com suas peculiaridades e modos de ser.
Outro calçado que é visto frequentemente nos pés dos gaúchos é a bota. O ato de vestir um par de botas tem um significado especial aqui no sul. Não se trata de um calçado qualquer, mas sim de um resgate das origens do homem do Rio Grande. Na história do Estado, a bota foi trazida por bandeirantes que por aqui permaneceram quando descobriram as maravilhas que estavam escondidas nesta terra. Ela aparece como coadjuvante, mas está lá, nos pés dos guerreiros farrapos. Por isso, os homens, quando as vestem, se sentem realçados, também guerreiros. Só falta uma espada à tira colo e um uniforme com divisas para saírem cantarolando o hino do Rio Grande. Sim, por que a maioria dos gaúchos sabe o hino do Estado de cor. Eu também sei. As duas partes, inclusive.
Também há diferenças entre os dois gaúchos e suas botas. O da alparcata fechada, o da cidade grande, sempre anda com as botas bem lustrosas, cheirando a Nuggett. Se pudesse inventava uma bota com amortecedor. Seus pés ficam inchados e murchos depois de um longo tempo com o calçado de cano longo. Já o rural coloca as botas pela manhã e só as retira quando vai se deitar. O bico da bota é mais gasto que o restante, de tanto tropeçar voltando para casa depois de dezesseis rodadas de bocha e muito vinho. As botas sofrem ainda mais quando o moço vai ao baile. O solado esfrega sua cara no chão, arrastado salão afora. As pisadas da prenda machucam ainda mais aquele couro surrado. De volta para casa, as companheiras têm um descanso merecido após tantos xotes e bugios.
Aos domingos, a velha guerreira é posta de lado pelo bagual. Na missa, o gaúcho gosta de se apresentar bem vestido, então pega a caixa de cima do armário e vislumbra aquela maravilha, digna de um fazendeiro de estância. Lustrosa, com cheiro de nova. Igual as botas do gaúcho urbano, mas o campeiro só as usa aos domingos. O barulho do salto no assoalho da igreja transforma o rapaz em celebridade, para onde todos os olhares se voltam quando o piso ecoa aqueles passos gaúchos. Ao fim da missa, as botas retornam às suas caixas de papelão frias e escuras para, dali a sete dias, deleitarem-se novamente com a luz do dia e o badalar dos sinos.
Mas, engana-se quem pensa serem somente os homens afetuosos por seus calçados. As gaúchas também valorizam, e muito, o que carregam aos seus pés. Ainda mais se o salto agulha foi adquirido em uma loja chique. Bom, aí parece que umas simples Havaianas se transformam em artigo de luxo aos olhos femininos. E realmente se transformam. Aliás, falando em salto agulha, até hoje é uma incógnita como as mulheres conseguem se equilibrar de forma tão graciosa sobre aqueles saltos tão finos. Fariam sucesso em um circo, pois o rapaz da corda bamba passaria vergonha ao ver a destreza e maestria com que desfilam com seus sapatos de bico igualmente fino. Tão fino que recebem, vulgarmente, o apelido de “sapato de matar barata nos cantos”. Coitada das baratas, não tem culpa nenhuma da luta das mulheres quererem se fazer bonitas umas às outras. Sim, pois mulher não se veste para o marido, e sim para causar inveja nas amigas. Deus o livre se alguém aparecer com o mesmo calçado ou roupa em alguma festa ou evento. É motivo de beicinho e vontade de ir embora. Coitados dos maridos, pois sabem que terão que fazer uso novamente do cartão de crédito para renovar o estoque de calçados da esposa. Isso quando elas não usam a conta bancária do cônjuge para compras ocultas. Por que será que as mulheres insistem em esconder dos esposos alguma nova aquisição que estava em oferta? Detalhe: elas nos dizem sempre que o produto estava em oferta e não podiam perder aquela oportunidade única. Não se preocupem meninas, sabemos que todos os quarenta e três pares de sapatos que possuem são extremamente necessários.
A afeição dos gaúchos e gaúchas por sua alparcata, sua bota, seu salto agulha, é uma herança genética. E isso se prolongará ainda por muitos anos. Seja qual for o modelo, a cor, a marca, o estilo ou o tamanho, o calçado nos faz parceria em todos os momentos. Nossas chuteiras são cúmplices das vitórias e derrotas no futebol. Nossas pantufas nos aquecem os pés antes de dormir. Nossos tênis de corrida nos amortecem quando queremos entrar em forma. A eles devemos o nosso saber andar, pois, sem eles, teria sido muito mais escorregadio e doloroso aprender.
Que nossos calçados nos levem ainda a muitos outros caminhos. Que possamos ser companheiros de jornada, mesmo que nossos rumos se afastem. Se não puder ser em nossos pés, que seu abrigo seja acalanto para os pés que vagam descalços. E se, um dia, não for possível mais calçá-los, se seu solado não aguentar mais se segurar sozinho, se seu cadarço deixar somente o coração apertado, que se renovem as esperanças. Que alguma alma bondosa o triture em pedaços, sem dó nem piedade. Mas que o transforme mais uma vez em calçado, para que outros pés sintam a tênue força que move o passo dos gaúchos ruma a novas estâncias e novas amizades.
(Juliano Lanius)

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Pelos sebos da vida: Teje preso (Chico Anísio)


Nunca havia cruzado com nada escrito do Chico (ao menos não deste, do outro li “Budapeste”) até então, sendo que assim, como vagava pelo sebo sem um “alvo” específico e encontrando-me repentinamente diante da obra de tão ilustre expoente do humor brasileiro – apesar de julgar, é verdade, como muitos, suas últimas empreitadas na tv meio fracas –  , decidi, curioso, de pronto levá-lo para dar uma conferida.
 
Fato curioso que talvez valha a pena destacar - ou não - é que isso se passou numa sexta, no 22 de março deste ano... "Curioso" pois após chegar em casa e dar uma folhada no livro, resolvi dar uma olhada no perfil de Chico na internet e surpreendi-me com a data de sua morte: 23 de março do ano passado... no creo en las brujas, pero... 

Bem, coincidências (?) à parte, quanto ao livro, embora talvez tivesse criado certa expectativa e esperasse um pouco mais, trata-se de uma leitura agradável, divertida, direta, sem muita “frescura” e com um toque todo particular. São contos bem-humorados que se passam em geral num interior fictício do Ceará, focando as narrativas nas peculiaridades da região e de seus habitantes e linguajar.
“Partindo de Bacurim, no rumo de Paratinga, qualquer caminhante encontra um povoado pequeno por nome de Santa Arminda. Caminho de piso ruim, desvios e catabis. Estrada pouco assentada por pneus de automóveis, mas castigada pelos cascos de zainos e alazães (sic). Vez por outra passam bois puxando carros modorrentos, molengões...”, começa a narração do primeiro conto do livro, “Chico Motta”.
Já a introdução daquele que dá título ao livro – e um dos mais divertidos do mesmo – vai assim: “Capivali e Querém não distavam mais do que quatro léguas uma da outra. E se havia uma aproximação geográfica tão grande – apesar de não constarem dos mapas – maior ainda era a rivalidade. Feito Natal e Mossoró, São Paulo e Campinas. Só que lá a rivalidade gritava mais, porque além da concorrência, nada mais de proveitoso havia a ser feito...”. E segue, inserindo no triângulo regional seu terceiro vértice, a cidadezinha de Cravelho, menor e mais humilde, mas que decide construir uma nova cadeia – e não uma cadeia qualquer, mas uma cadeia de primeiro mundo! – para fazer inveja às duas vizinhas. O problema é que, construída a nova cadeia, e convidadas as autoridades – entre as quais até mesmo o governador – para a grande inauguração, falta o essencial para uma boa cadeia: alguém preso lá dentro. E começa-se assim na cidade uma desesperada busca por um candidato ao posto...
Quem se habilita? É por uma boa causa. Teje preso!
Para quem, como eu, não sabia, Chico publicou, além deste, cerca de mais uma dezena de livros.
Outra pequena curiosidade que pode ter sido notada por algum leitor mais atento (ou mais chato): apesar de nos últimos tempos ele costumar assinar o Anysio assim, com “y”, seu nome não foi escrito errado no título deste texto, não: como mostra a capa lá em cima, nesse livro ele ainda era um Chico, digamos, abrazucado, com o velho e bom “i” mesmo...

Ah... e não, Professor Raimundo, Bento Carneiro, Tim Tones e Nazareno (“Caalaaaaaaaaada!!”) não estão lá... Mas ainda assim vale a leitura como entretenimento para uma boa espairecida – ou mesmo para quem só quiser matar a curiosidade a respeito dessa faceta do artista.
(por Diego T. Hahn)