terça-feira, 23 de setembro de 2014

Domingos em Porto Alegre (por Juliano Lanius)


(E outra boa reprise aqui no blog, pegando ainda meio de revesgueio o gancho do 20 de setembro!)

Seu Domingos é moço ainda. Com esse modismo de longevidade, podemos dizer que Seu Domingos é um jovem de vinte e quatro – não que ele tenha vinte e quatro anos, mas ele nasceu em 1924. Morador de Porto Alegre, é grande apreciador do Rio Grande do Sul. Seu Domingos tem muito orgulho da cidade onde vive e conhece como ninguém a história do lugar, os sítios históricos e os monumentos que fazem parte da cidade de Porto Alegre. De tão entendedor sobre os percursos da vida desta grande metrópole, Seu Domingos, certa feita, foi convidado a contar um pouco da história da cidade para alunos universitários.  Isso serviria para que eles tivessem um contato mais direto com alguém pertencente ao lugar. Os alunos tinham a cidade de Porto Alegre como objeto de estudo. Eis alguns trechos de seu relato aos alunos, um momento em que Seu Domingos se deixou levar pela emoção, dando aos alunos a certeza de ser um eterno apaixonado pelo solo rio-grandense, especialmente Porto Alegre. 


- Boa noite. Meu nome é Domingos, sou natural de Porto Alegre, onde me criei e vivo até hoje. Essa cidade me traz lembranças muito boas. Foi aqui que meus filhos e meus netos frequentaram a escola, desde a primeira série. Infelizmente, na minha época, o estudo não era uma prioridade nas famílias do interior. Eu não lembro muito bem, mas minha mãe – que Deus a tenha – dizia que eu era um rapaz que gostava de ler. Como as coisas mudam, não é? Naquele tempo eu conseguia, pelo menos, enxergar as letras. Hoje, eu mal consigo ler o que diz no letreiro do ônibus. Esses dias, além de ter embarcado no ônibus Cerrito, ao invés de Centro, tive que ficar de pé no ônibus, a viagem toda – era dia de pagamento do INPS. Mas isso nada tem a ver com nosso assunto principal: o Rio Grande do Sul. Mais precisamente, Porto Alegre. Cidade bonita. Vamos começar pelos locais de ensino. Os colégios. As escolas fazem parte da história de qualquer cidade. O ensino está presente em todos os momentos da evolução. Quero dizer, na minha época pensávamos assim. Hoje em dia, não sei não. O meu neto está na fase adolescente, catorze anos, e é um dos que não concordam com essa idéia. Ele disse que deu seu primeiro beijo. Na escola. 


“E escola é lugar de fazer isso, moleque?” “Bah, coroa, ela tava afim e eu grudei”. ”Coroa? Eu lá sou moeda para tu ficares me chamando de coroa? E por acaso virastes cola para ficar grudando nos outros?”. Ele me contou que a menina era, digamos, desprovida de qualidades anatômicas favoráveis. O legítimo bagulho. 


Mas ele disse que estava precisando se especializar no negócio de beijar, afinal de contas ele já tinha 16 anos e ainda era BV. “Que troço é esse de BV?” “É boca virgem Vô.Todo mundo sabe”. Todos os seus colegas já tinham dado pelo menos um beijo na boca, e ele ali, literalmente chupando dedo. E não só o dedo como a mão toda, pois um amigo lhe disse que tinha que treinar na mão primeiro, para não passar vergonha na frente da guria, babar, morder, ou algo do tipo. Bem que eu notei que ele estava com alguns roxos na mão e com a boca seca. Até perguntei: “Tu ta fumando aqueles capim com cheiro de palha mofada pegando fogo depois da chuva, guri?”. E não estava realmente. Ficava horas em casa, chupando a mão. Isso lhe rendeu marcas semi-definitivas. Mas o bonito mesmo foi o lugar que ele deu seu primeiro beijo. Museu de Tecnologia da PUCRS. 


É um lugar de visitação. Geralmente de estudantes. Sendo que, neste dia, em que meu neto perdera o cabaço da boca, o colégio em que ele estuda estava fazendo uma visita pelo local. Ele me falou que queria que tivesse um clima quando tudo acontecesse. O rapaz puxou ao avô, um eterno romântico.  Aí levou a menina até uma parte do museu, onde ficam os animais empalhados. Ao perguntar se eram animais raros ou pássaros exóticos, me respondeu que não. Disse que gostava de valorizar as coisas daqui, então foi ao habitat do ratão-do-banhado, da chinchila, da garça e do tatu-bola. Um cenário muito tranquilo, acolhedor. “Até que o beijo foi bom, mas quase perdi um dente”. Acho que o garoto estava um tanto ansioso, afoito, sei lá. 
 
“- Aí, mais tarde, no meio das minhas andanças, descobri outro local bom de dar uma volta ou matar aula, a Praça da Alfândega”. Vocês acreditam que meu neto me falou isso? Assim. Na lata, como dizem os jovens. Na lata. Entorpecido com sua audácia, resolvi conferir se o que dizia era verdade. Peguei o moleque no flagra, “gaseando” aula – só os gaúchos conhecem esta expressão. Na Praça da Alfândega. Deflagrando o local que serviu de palco para momentos importantes desta cidade querida chamada Porto Alegre. Quase que fiz meu neto perder a audição, tamanho foram os puxões de orelha que dei nele. Na minha época funcionava. Sabem aqueles “espichadores” que os jovens colocam na orelha? Aqueles que ficam um buraco que pode servir de tipóia em um acidente? Eu estava tentando fazer um artesanal em meu neto. A despeito destas frustrações, a Praça da Alfândega é muito bonita, arborizada. “E tem uns esconderijos ‘da hora’ para dar uns beijinhos nas meninas que só vendo”. Palavras do neto do vovô. A Praça da Alfândega tem muitas histórias a contar. Nossa, e como tem.  


- Mas vamos seguir o baile, tchê. Outro local bastante importante na história de Porto Alegre, e da minha também, é o Centro Histórico da Praça da Matriz. Nos arredores desta praça é que se localizavam os prédios dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Até me lembro de uma vez que tive que ir ao judiciário falar com o juiz, pois a mulher do meu filho decidiu que queria uma pensão depois que se separaram. Falei com o juiz, ele não tinha condições de dar nada a ela. Mas, não houve jeito. Aquela desgraçada levou quase tudo o que o coitado tinha. Só sobraram as bombachas e as alpargatas. Não me segurei e a mandei aquela lorpa botar um serviço naquele corpo gordo. Não entendo como meu filho foi gostar dessa jararaca.  


- Mas, vamos voltar ao que interessa. Perto da Praça da Matriz se encontram também o Palácio Piratini, a Catedral Metropolitana e outros prédios mais. Na frente da Praça da Matriz também se encontra o Theatro São Pedro, um dos maiores do estado. O Theatro já foi palco de peças importantes, e por ali passaram inúmeros artistas. O porto-alegrense, como todo gaúcho, gosta de um teatro viu, tchê. Mulher, então, nem se fala. A minha “veia”, por exemplo. Esses dias, só por que eu cheguei um pouquinho mais tarde em casa, levemente embriagado, fez uma cena dramática. Merecedora de um Oscar. E quando tem perfume diferente, então? Nossa, aí parece teatro para surdo de tanto que a mulher grita, grita e grita. Toda mulher tem um pouco de atriz por dentro.


- Porto Alegre tem uma vida cultural muito intensa, com várias casas de espetáculos e shows. Outras formas de manifestação popular podem ser vistas em Porto Alegre, como é o caso do Brique da Redenção.
 
 Lá podemos encontrar artesãos, músicos, artistas de rua e muitos outros movimentos populares. Eu não deixo de ir todos os domingos ao Brique, nem que seja pra tomar um chimarrão e passear com meu cachorro. Mas eu levo a sacolinha e junto as cacarias do meu cachorro. O triste é querer sentar na grama para descansar um pouco e não poder levantar mais até que o brique esteja vazio. Sim, por que, se levantar antes, todo mundo vai ver que tu estás levando algo pertencente a outro animal. Não é fácil, viu? 


- Bom gente, agora que vocês conhecem um pouco mais da minha cidade, espero que vocês venham visitá-la. Quando vierem, me avisem, assim a gente pode ir juntos aos lugares de que falamos. Não se esqueçam de trazer o chimarrão, por que ninguém é bobo de ficar pagando erva para vocês. E se vierem com cachorro, a sacolinha à tira cola, viu? Bueno, um abraço para os guris e um beijo para as gurias. Ah, e, gurias, se vocês quiserem, eu mostro para vocês os esconderijos da Praça da Alfândega.   


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Nossas façanhas (por Diego T. Hahn)


Pra não deixar passar em branco a Semana do Gaúcho, republicamos aqui esta pequena ode - parte integrante também do "Histórias reais de amigos imaginários (e vice-versa)" - ao nosso querido estado.


O pai observava atentamente o guri que zanzava pra cima e pra baixo do apartamento pilchado com sua bombacha e cantando o hino do Rio Grande...

            - “Como a aurora precursora”...
 
            O pai, nascido e crescido em meio ao campo lá pros lados de São Borja, perguntava-se se o filho fazia ideia do que significava a palavra “precursora”, mas admitia consigo mesmo que a pronúncia do guri era boa e a voz não era nada ruim também.
            Há dias o velho analisava o piá, adolescente na casa dos dezesseis anos, e aquele seu entusiasmo todo da repentina descoberta do Rio Grande do Sul como centro do Universo.
 
 Via-o digitando nas tais redes sociais na internet poemas e odes louvando o estado e sua suposta superioridade em relação ao resto do mundo, muitas vezes discutindo com gente natural de outros estados ou mesmo países, enaltecendo o histórico peleador do gaúcho, seu inconformismo, sua educação, a qualidade de vida local, e os grandes feitos também de Inter e Grêmio no futebol e... foi quando o velho, que efetivamente conhecia o histórico do estado, mas também sua realidade atual não tão maravilhosa e, mais maduro, embora continuasse gostando de sua terra, estava acostumado a analisar tudo sem aquele “ufanismo” gaudério que também ostentara um dia, se encheu daquilo tudo. Chegou no pirralho bem na hora que ele entoava o “sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra” e de mansinho o cutucou:
            - Vem cá, ô, guri... tu por um acaso sabia que hoje o nosso estado tem alguns dos piores índices de desenvolvimento do país?
            O filho o olhou assustado. Em seguida balbuciou algo como:
            - C-como?... Como assim, pai?...
            - É isso aí: alguns dos piores índices de educação, saneamento básico, asfaltamento de estradas, entre outros, do país... sabias?
-Bem capaz, pai!... nós... nós temos os melhores...
            - Nada de “nós”, tchê; o único “nós” que existe somos nós aqui: tua família; eu, tu, tua mãe e tua irmã... e, fora o que os números mostram, não tem nada dessa de melhores nem piores, é tudo ilusão...
            - Não pode ser, pai... aqui no sul a gente é mais politizado, mais civilizado e...
 
            - Civilizado? Tu ouviste falar da atual situação do Presídio Central de Porto Alegre? E se te gabas tanto da história do estado, deves certamente ter lido ou ouvido falar nas degolas de algumas das nossas revoluções, como a Federalista, por exemplo, não!?
            - Ah, pai... mas isso é coisa da guerra... é porque somos um povo aguerrido... veja só nossos times, que... – e quando começou a exemplificar que o Inter era o campeão de tudo e havia batido certa vez o poderoso Barcelona e o Grêmio era o Imortal tricolor copeiro que certa vez havia batido o Náutico com quatro a menos e que a raça do futebol gaúcho era mais um exemplo das façanhas do sul, o pai interrompeu-o novamente:
            - Sim... e tu sabias que certa vez o Inter perdeu para um time do Congo, chamado Mazembe? E que o Grêmio caiu duas vezes para a segunda divisão do futebol brasileiro?
            - Sim, mas... – ele tenta desconversar – nós temos nossas bonitas tradições... a bombacha, por exemplo... 
            - Sim, é verdade, temos bonitas tradições. Também gosto delas. Mas tu sabes por acaso quem foi que inventou a bombacha?
            - Ué... foram os... os farrapos, não foram?  - chutou o guri, meio sem jeito.
            - Não. Foram os turcos. E quem a trouxe para esses lados foram os ingleses...
            O guri se chocou. Não sabia daquilo. Não podia ser verdade. Mas, que diabos, devia ser, o pai não iria lhe mentir. Ou iria?
            - É isso aí, meu garoto: o mundo não começou com a Guerra dos Farrapos. Também gosto do nosso estado, filho, mas atualmente não sei se temos tantas façanhas assim para servir de modelo a TODA a Terra... – e jogou-lhe uns três livros de História sobre a cama – e mais um do Simões Lopes Neto, por via das dúvidas. Por fim apontou para os pés do garoto:
            - Bueno... e por mais que a bombacha seja um símbolo nosso – observou, rindo sardônico – ela não cai muito bem usada com tênis NAIQUE, tchê!!...
O guri olhou meio sem jeito para os próprios pés. O pai riu, foi até ele, abraçou-o e passou a mão no seu cabelo, escabelando-o, o guri riu de volta, e os dois foram para a sala disputar uma ferrenha partida de futebol no videogame, valendo o título de campeão do Universo – disputada, claro, em um Grenal. 
 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Retamoso - parte 2 (por Ronaldo Lippold)


(conclusão)

Contam que aquele encontro com as tropas de Rivera marcariam seu destino para sempre. Naquela escaramuça com os argentinos o valente Ybicuí angaria o respeito de seus pares pela valentia e empenho com que se dedica as investidas de espada em punho contra o inimigo. Em 1832 o Exército da Banda Oriental desloca-se à região conhecida como Desierto, acima do rio Negro, onde os índios Charruas concentram a maioria de seu povo. De acordo com as orientações dos lideres seria apenas uma reunião com os caciques Charruas para acordarem a determinação de uma terra para seu usufruto. Cerca de duzentos índios são levados a separarem-se de suas armas e logo são convidados a beber guampas cheias de cachaça. Dom Frutos Rivera conversa amistosamente com os índios relembrando antigas guerras em que lutaram bravamente lado a lado. A confraternização se estendeu até uma dúzia de reses que assavam em uma valeta com fogo de chão. Quando o álcool começou a subir à cabeça os Charruas verificaram a cilada em que foram conduzidos. Dezenas de soldados armados começam a atirar sem piedade em uma turba de índios desarmados e bêbados. O massacre é inevitável. Alguns poucos conseguem furar o cerco. Homens, mulheres e crianças são massacradas num episódio pouco conhecido e explorado em jornais da época. Um Ybicuí furioso toma satisfação de seu superior imediato, Bernabé Tabaré Rivera, sobrinho do Presidente e é seguro por dois sargentos, pois ameaçara de morte os mentores daquela tocaia. O jovem Bernabé Tabaré alega que em função de seu relacionamento anterior com uma índia foi negada a informação do massacre, porém este era inevitável em função de interesses por gado e grandes extensões de terras. Ele em plena madrugada rouba um cavalo e deserta daquele exército que aniquilou covardemente um povo aliado.

            Homem e cavalo tomam o rumo da fronteira com o Brasil. Ele era um desertor. Estes eram degolados sem apelação. Como a fazenda La Favorita certamente seria um dos primeiros lugares a serem vasculhados pelos Orientais tem que percorrer uma região de difícil acesso. Cavalgando quase à exaustão e com a cabeça se punindo por ter participado, mesmo à revelia de tão mesquinha armadilha, Ybicuí segue adiante. Dois dias após ele chega a uma bodega onde falam português. Entrega seu cavalo a um peão que cuida do sofrido animal. Senta em um tronco de árvore e começa a tomar uma canha pensando em que rumo tomar. Aquela imagem do sangue que corre nas veias de seu filho ser derramado de maneira tão cruel e covarde faz lágrimas correrem pelo seu rosto cansado. Lembra que não havia chorado desde a morte de seus pais no início do século. Seu pensamento voa até Carmencita que logo deve ganhar outro descendente dos Retamoso Calderón. Começa a fechar um palheiro pensando no sorriso tranqüilo de seu filho Osório. Como faria para voltar ao convívio deles? Teria que deixar baixar a poeira.

            Dois anos após em uma fazenda em Santana do Livramento ouve falar que La Favorita foi vendida e seus moradores deixaram a região rumo a Colônia de Sacramento aonde conseguem trabalho em outra estância do mesmo caudilho. Fica ciente também de que é procurado por deserção e que é pai de gêmeos. Resolve continuar a vida no Rio Grande e alia-se aos gaúchos que desafiam o Império. Em 1835 ingressa no exército Farroupilha. Durante vários anos Ybicuí segue os líderes farroupilhas em refregas cada vez mais violentas. Nas horas de calmaria seu pensamento volta-se para seus filhos e esposa. Tem uma imensa saudade principalmente de Osório que deve estar beirando os vinte anos.

            No estertor da revolução Farroupilha participa de uma batalha ao lado dos homens de General Netto contra as hostes do antigo aliado Bento Manoel Ribeiro. É uma luta sangrenta e encruada. Os homens se atiram um contra o outro na base do sabre e espada. Os soldados devido a pouca distância conseguem ver os olhares dos inimigos, quase suplicando para que alguém, enfim desfralde uma bandeira de paz e acabe com aquela atrocidade que já perdeu o sentido original. Neste dia Retamoso Calderón e mais seis soldados se grudam numa sangrenta luta corpo a corpo contra quatro adversários. Somente o bravo Ybicuí, embora com inúmeros ferimentos consegue sobreviver. Ele se apoia exausto em uma velha bergamoteira enquanto olha os corpos mutilados de seus colegas. Descasca algumas frutas para matar a sede e se aproxima de um inimigo que lutou bravamente e jaz caído com uma adaga enfiada no peito. Olha aquele rosto de menino todo sujo de terra e sangue, puxa a faca e limpa na manga da camisa. Se sente completamente triste por ter ceifado vida tão moça. Resolve satisfazer sua curiosidade na origem do rapaz mexendo nos bolsos do casaco do garoto. Jovens desta idade deveriam estar em casa, pensa enquanto procura algo naqueles bolsos sujos de sangue. Encontra um envelope e uma página em papel pardo bastante amassado. Quando termina de ler aquele pequeno relato de saudade começa a gritar e arrancar os cabelos loucamente. Era uma carta em espanhol de uma mãe chamada Carmencita para seu filho Osório que estava longe de casa a sete meses, desejando-lhe boa sorte.

            Ybicuí sai a caminhar pelo pampa visivelmente transtornado. Sua demência aumenta com o passar do tempo. Durante muitos anos é visto nos lugares mais distantes até ser abrigado, com quase oitenta anos em um asilo para loucos em Porto Alegre. Seu companheiro de quarto comentava que ele morou neste asilo por mais de cinco longas décadas. Seu relacionamento era difícil com os demais asilados. Ficava mudo durante meses e de repente começava de supetão a falar as coisas mais desencontradas, recheadas de datas, nomes de batalhas e de pessoas e que após isto desatava a chorar copiosamente, dizendo que a vida era uma trincheira marcada a ferro, fogo e lágrimas.



quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Retamoso - parte 1 (por Ronaldo Lippold)



Em mais uma participação especial no De Letra, temos a honra de apresentar desta vez o amigo Ronaldo Lippold, que com este belo épico gaudério com fortes matizes de melancolia foge um pouco da sua linha cômica, com a qual impregnou os seus hilários "A culpa é do Padre" e "A culpa é do Padre 2", coletâneas de contos e crônicas lançadas em 2009 e 2012, e dá mostras de toda sua versatilidade na arte de contar histórias - por falar em versatilidade, o vivente ainda fabrica na garagem de casa sua própria cerveja, a saborosa Old Lipp, distribui suas raquetadas na quadras de padel de SM, e até trabalha nas horas vagas.



             Contam os presentes ao velório de Ybicuí  Albuquerque Retamoso Calderón que no dia em que ele rompeu o tênue traço que ainda o mantinha vivo, mesmo sendo um dia claro de março, um trovão irrompeu no azul do céu, contrariando todas as previsões do tempo e uma chuva fora de época acabou banhando todos os transeuntes. Duas dezenas de velhos compunham o séquito de despedida daquela criatura que driblava a morte desde muito tempo. Deve ter sido o único homem que no leito de morte não contava com a presença de nenhum parente próximo.

            Seus filhos, netos, bisnetos e tataranetos já haviam deixado esta vida e hoje compunham o pó dos tempos. Sua longevidade não era plenamente explicada pela ciência, que acreditava que idade tão avançada seria possível somente para os habitantes do século XXII. Relembravam os mais antigos, enquanto olhavam aquela pequena carcaça encolhida em um humilde caixão de pinus, que aquele rosto vincado de rugas que mais parecia o leito de um açude seco, havia nascido num tempo não determinado pelos ofícios, em algum lugar perdido entre as fronteiras do Rio Grande e a República Oriental do Uruguai. Que ele não se anunciava nem brasileiro muito menos uruguaio, mas sim um gaúcho dos quatro costados que com seis anos de idade já rompia léguas de campo montado num vistoso cavalo crioulo, levando mensagens para homens que conheciam somente a lei da guerra, da peleia e da barbárie. 

Este legítimo gaudério, criado guacho, sem frequentar escola ou igreja, consta que perdeu pai e mãe numa escaramuça em data não delimitada com precisão, mas segundo alguns lá pelas voltas de 1800. O menino Ybicuí Albuquerque com menos de onze anos já era dono de si e corria o mundo atrás das raras oportunidades que se apresentavam. Naquele mundo com campos que se perdiam de vista e cidades muito distantes ele aprendeu a lei do mais forte. Depois de trabalhar durante cinco anos em uma estância em Durazno, aprendendo a arte da doma e da esquila resolveu juntar-se as hostes do Barão de Laguna,vindo a participar do cerco a Montevideo  onde sofreu sérios ferimentos na perna esquerda. Após ficar em um catre de hospital durante dois meses, acabou afeiçoando-se a sua enfermeira com a qual teve um tórrido romance. 

Aymar era uma índia charrua de baixa estatura, com grandes olhos amendoados e longos cabelos negros. Após uma demorada recuperação em função do balaço na perna, o casal resolveu voltar para terras brasileiras vindo a instalar-se em um fundo de campo perto de uma fronteira até então fictícia. Em uma tapera de barro minúscula coberta com palha e que mal conseguia atacar o forte vento minuano o casal passou dias de muito trabalho e afeição. Com a ajuda de Aymar, grávida, os dois plantaram uma roça de mandioca e cultivaram feijão, milho e melancia. Num inverno inclemente a índia charrua começou a sentir as dores do parto. Naquela madrugada chuvosa com um frio que penetrava nos ossos nasceu Osório, um lindo menino índio. A alegria de Ybicuí durou apenas dois dias. Devido a uma infecção a jovem mãe veio a falecer depois de suar e gemer por longas horas. 

O homem cuidou do filho sozinho levando no peito uma saudade da mulher amada e uma tristeza que sumia somente quando o choro do menino quebrava a imensidão daquele fim de mundo. No dia em que Osório deu os primeiros passos, homem, criança e um cavalo velho começaram uma longa caminhada que durariam três dias. Anos após Ybicuí dizia não saber como a criança agüentara tão dura travessia. Quando o piá começava a chorar de fome ele enfiava um pedaço de charque já mastigado na boca do pequeno indiozinho e começava a falar da mãe que havia partido tão cedo.

 Chegando a Tacuarembó logo consegue emprego em uma fazenda de um velho caudilho, a La Favorita. Aquele homem forte e trabalhador que ostentava um imenso bigode em poucos dias cai nas graças do proprietário da estância e também da cozinheira. Carmencita era uma mulher bonita beirando os vinte anos e se apegou de imediato por Osório e seu pai. Seis meses após trinta homens daquele local, entre eles Ybicuí se unem as tropas do uruguaio Fructuoso Rivera, primeiro presidente constitucional do Uruguai em mais uma contenda contra os portenhos que teimavam em invadir suas terras. Da varanda da casa grande Aymar se despede, com olhos úmidos segurando Osório numa mão e um rebento na barriga.