sexta-feira, 22 de junho de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 8" (Por Diego T. Hahn)



A questão era que, a um certo ponto, eu realmente não tinha mais estímulo ali. Eu dizia que, com um mínimo de treino, um macaco poderia fazer perfeitamente aquele trabalho que eu fazia... E às vezes – lá vinha outra daquelas minhas viagens – me pegava rindo enquanto imprimia algum relatório ou carimbava algum papel e ficava imaginando mesmo um simpático símio – de terno e gravata, claro, o que dava mais graça ainda à cena – realmente pulando ali de um lado para o outro sobre o balcão da recepção, e no fim do mês feliz da vida ao receber seu cacho de bananas-salário.

Mas não eu, eu queria mais - se fosse para fazer o trabalho de um macaco, eu queria ser era como a Chita; melhor, claro, se fosse o Tarzan!, mas, enfim, eu queria ser um astro de cinema, ou algo assim, caramba: viver a vida sobre as ondas, você sabe; o meu destino é ser star!...

E, como o tempo ia passando e o meu destino parecia mesmo era não de star e sim estar ali, e aquele tal “sucesso” não chegava nunca, eu começava a me deprimir.
E, deprimido, claro, protagonizava o clássico: buscava ajuda no álcool...

Brincadeira! Quer dizer, o trago rolava solto na recepção, é verdade, especialmente de madrugada, mas era por pura zoação mesmo... uísque, vinho, cerveja... eu tinha um colega, Jaime por exemplo, que era mesmo um alcoólatra – nunca o vi trabalhar sóbrio naqueles tempos lá... 

Antes de queimar o filme do Jaime, porém, devo mencionar que teve uma certa época, na qual estava de férias da faculdade, que estabilizei por um tempo no turno da noite e deixei um outro colega de turnante. Pois nesse período trabalhávamos sempre eu e outro recepcionista e dois mensageiros. Trabalhávamos bem, talvez fôssemos os melhores que o hotel tinha naquela época nas nossas funções, mas o caso é que éramos também os mais fanfarrões e quando não havia movimento na área começávamos a zoação descerebrada, papo vai papo vem naquelas noites, fomos criando um vínculo de patifaria, e logo estávamos saindo os quatro juntos todas as noites também após o serviço. 

Éramos todos solteiros na época – um deles era o Jorge, o especialista em manobrar carros na garagem e bisturis em cirurgias cardíacas – e as noites iam longas e chegávamos trôpegos nas respectivas casas quando o sol já raiava no horizonte. Obviamente, com aquela rotina cada vez mais frequente, começamos a trabalhar com as caras amassadas, olheiras profundas, voz cavernosa... estávamos mais lentos também – brincávamos que aquilo podia ser um problema especialmente para os pacientes do Jorge – ... às vezes demorávamos a entender o que os hóspedes falavam, os mensageiros iam buscar o veículo do Seu Megane e voltavam com um para o Seu Sandero, que não estava ali (bem, ao menos eles ainda acertavam a "família", não é mesmo?)...

O que aconteceu então foi que o gerente da época, Alex, percebeu isso e logo tratou de desmanchar aquele nosso grupo: mudou os turnos de um, depois os de outro, e assim por diante, até cortar quase totalmente nossa comunicação mais direta e nossas aventuras noturnas começarem a escassear. 

Grande filho da puta aquele Alex por estragar aquele nosso animado bando!, mas, devo admitir, um filho da puta profissionalmente preciso, pois certamente salvou o bom funcionamento da recepção do hotel – e, bem, talvez também um filho da puta bom amigo, pode ter salvado igualmente nossas vidas, que, naquele ritmo de até então, pareciam destrambelhadamente começar a ir ladeira abaixo (embora nossa euforia pela diversão intensa e as gorjas, que por algum estranho motivo haviam se tornado mais frequentes naqueles tempos de vida loca, não nos deixassem perceber isso)...

Mas, fecha parêntese (para não nos queimarmos mais ainda aqui neste trecho - embora ainda haverá tempo e espaço para isso na sequência da nossa história...), e voltando ao Jaime (que pelo seu "profissionalismo" com o copo acabava fazendo a gente parecer criancinha da pré-escola do trago): Jaime costumava fazer a madrugada, mas às vezes quebrava um galho também em algum turno diurno. Era, porém, um daqueles caras que disfarçam bem a embriaguez; você a princípio não diria que ele está bebaço se não analisasse mais a fundo ou o conhecesse um pouco melhor.

Pois eu já o conhecia, após algumas noites trabalhadas junto. E quando começava a digitar algo no computador no turno da noite, logo percebia um copo repousando no balcão da recepção, bem ao meu lado; era Jaime me oferecendo – para não dizer me impondo - silenciosamente um drinque, o qual, para não fazer a desfeita, eu costumava acabar aceitando. E assim transcorríamos aquelas jornadas, fazendo pouco, quase nada, bebendo e trocando ideias sobre as coisas mais estapafúrdias possíveis. Aquilo era engraçado: com os hóspedes eu debatia política, com algum mensageiro eu falava de negócios, com outro de mulheres, todos davam pitacos sobre futebol, mas o Jaime, cara, o Jaime era difícil descrevê-lo.

 Porque ele não falava literalmente nada com nada – tanto é verdade que, daqueles tempos que convivemos por ali, não consigo lembrar de uma única frase sua com um mínimo de coerência com a realidade e a língua portuguesa, ou qualquer língua do mundo (por mais que essa quase total desconexão com o universo pudesse vir a ser engraçada para o leitor) que pudesse usar como exemplo aqui (e, você sabe, se é pra mentir/inventar coisas, paremo por aqui!...). De alguma forma, ele parecia indiferente a tudo, indiferente mesmo à vida... ele era daqueles caras que falam somente o mínimo indispensável, de uma maneira lenta e blasé, com uma voz rouca quase nunca olhando para o interlocutor e sim para algum horizonte perdido, por mais que simpatizasse com a outra pessoa – o que tornava, por algum motivo, inacreditavelmente, também ele um tanto quanto simpático e mesmo carismático (de um carisma, digamos, quase folclórico).

Pois Jaime acabou sendo mandado embora após abalroar a caminhonete de um hóspede na parede da garagem. Tenho a impressão, porém, de que aquilo não se deveu à bebida e sim ao fato de ele simplesmente não ir com a cara do dono do veículo. E nunca mais vi Jaime depois que ele foi embora do hotel.

Isso também não deixava de ser curioso: figuras como essa apareciam do nada e de repente estavam ali ao teu lado, bem fardados, passando 8 horas ali, conversando contigo, sobre de tudo um pouco, o que acabava induzindo quase inevitavelmente a uma amizade ou algo próximo disso, e de repente um belo dia eles faziam alguma cagada – ou não faziam nada, o que em alguns casos dava na mesma – e simplesmente iam embora, e você nunca mais os vê, como se eles não existissem “lá fora”, como se eles tivessem existido somente por algum tempo ali dentro do hotel, personagens criados especificamente para aquela trama.

Mas onde, afinal, se enfia esse pessoal de hotel no dia-a-dia? Até hoje procuro por alguns ex-colegas, boas pessoas, grandes amigos, mas nunca mais os encontrei, assim como Jaime... estarão enfurnados em um outro hotel? Não, não creio; depois de conquistarem a liberdade, eles não se submeteriam de novo àquilo... o europeu, por exemplo, havia acabado numa oficina mecânica – e, dizem, feliz, conversando em alemão e francês com suas repimbocas da parafuseta – , embora eu nunca mais o tenha visto.

Fosse como fosse, eu ia ficando lá, e, diabos, acreditando por vezes que eu é que fosse o personagem criado especificamente para aquela trama...

(Continua)


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