Eu
trabalhava há alguns bons anos na recepção daquele hotel. Era um dos mais
antigos lá – o que não era muito difícil, já que a rotatividade de funcionários
era grande; o pessoal ficava por ali uns seis meses, um ano no máximo, e caía fora... só
havia um cara mais antigo do que eu lá, era um mensageiro, encarregado de
colocar e tirar os carros dos hóspedes da garagem, o Severo. O Severo devia estar lá há uns trinta anos - sendo que o hotel só existia há uns vinte... brincávamos
que realmente o Severo já zanzava por lá desde antes do hotel ser construído e provavelmente
lá estaria depois que o hotel deixasse de existir – alguns colegas apelidaram inclusive uma certa época o Severo de “O
fantasma da garagem”... sacanagem.
O trabalho
não era pesado, mas a grana era pouca e assim, como dito antes, na primeira
oportunidade o pessoal pedia as contas. Mas eu, assim como o Severo, não podia
me dar ao luxo de fazer como os outros e simplesmente pular do barco assim no
mais; não, eu precisava daquele emprego, afinal, embora não tivesse que bancar
ninguém além de mim mesmo (ao contrário do próprio Seva, que era como eu chamava o veterano, que sustentava dois filhos), também não tinha ninguém que me bancasse nem nada
assim – as finanças dos velhos andavam mal das pernas – e tinha que pagar minha
faculdade... além do que era um emprego no qual eu podia “jogar” com os
horários, já que trabalhava de turnante,
que era o cara que cobria as folgas dos outros, independentemente do turno –
manhã, tarde, noite ou madruga – e assim podia adaptar minha rotina ali com a
das aulas, trabalhando de tarde ou de noite quando tinha aula de manhã, e
vice-versa, flexibilidade que seria muito difícil de encontrar em algum outro
serviço.
- Bom dia, rapaz.
Mas também
não me submetia a qualquer coisa simplesmente por isso: como talvez já tenha sido possível observar, não costumava
baixar a crista pra ninguém assim no mais. Tentava tratar a maioria legal, mas, você sabe, às vezes (na verdade mesmo, fazia tempo que não tinha mais saco para
aquilo, para a rotina quase robótica do trabalho em si, apertando dois ou três botões, repetindo as mesmas frases mecanicamente todo dia... por outro lado, me sentia já meio em casa por lá. E, de certa forma,
gostava do “clima” do lugar. Sim, gostava. Só não gostava dos tais dos hóspedes. Mas, fazer o quê?)
- Bom dia,
seu Antônio.
Mas também
não era radical; havia algumas raras exceções e uma meia dúzia eu costumava
tratar bem, já que a recíproca era verdadeira – ou seja, era uma retribuição da
gentileza. Um exemplo era o seu Antônio.
- Como vão
as coisas, rapaz? E o futebol?
- Ah,
jogando de vez em quando, dando uma aulinha pros caras por aí... o senhor sabe
como é; só na catega, pifando os bruxos na cara do gol e tal...
- Sim,
sim... claro... e as leituras?... Chegou a ver aquele que te indiquei da outra
vez?
- Ah, o de
sempre também, né... naquelas... batalhando contra uma meia dúzia aí... tudo ao
mesmo tempo agora – aquela minha velha mania, né, de ler três ou quatro ao
mesmo tempo... e sempre dando uma saramagueadazinha... algum Heminga, e um outro produto do nosso velho e bom amigo Buk aqui e ali... não, ainda não
consegui parar para procurar aquele que o senhor me indicou; como era mesmo?
“Zen e as motocicletas”?...
- “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”.
Isso. Mas legal, legal...
- É, umas
biografias também... uma, inclusive, dum mito da hotelaria mundial, “Seu” Sabadoz...o senhor talvez conheça!?... trabalhou aqui um tempo...
- Hummm...
não lembro agora...
Também
conseguia entabular uma conversa com alguns hóspedes e creio que ganhar uns
pontos extra por isso: eu leio - bastante... inclusive ali no trabalho mesmo, quando a coisa tava meio parada e
eu meio à toa...
- Bom dia. –
saudava-me o hóspede – eu tenho uma reserva e... – ele me olhava e eu seguia de
cabeça baixa, concentrado.
- Psiu... – depois
de alguns instantes me olhando atentamente, ele tentava ainda chamar minha
atenção - ...Oi!? - Eu fazia o sinal de “só um pouco” com a mão. A leitura
estava tensa, não podia simplesmente encerrá-la assim no mais, no meio do
parágrafo, como se nada fosse! E...
- Ok.
Pronto; terminei – levantava a cabeça enquanto fechava o livro, sorrindo para ele, que não parecia,
porém, tão simpático à literatura naquele momento. Eu tinha então vontade de elaborar
imediatamente um questionamento a respeito de uma suposta implicância dele com
Mr. Orwell, talvez pelo passado socialista do autor, ou talvez por ser ele, o
hóspede, um socialista, contrariado com a crítica feita pelo inglês quando já
desgostoso com o caminho tomado pelo comunismo – ao menos aquele russo – , mas,
especialmente por pensar na complexidade (para ele, o hóspede)
de toda a questão esquerda/direita/comunismo/socialismo/liberalismo/e outros
ismos, me contenho.
- É assim
que vocês recebem os clientes aqui? – parece irritado o sujeito.
Isso não é
modo de começar uma conversa, penso eu.
- Vocês
quem, senhor? – respondo, olhando ao redor. Será que esse cara vê fantasmas? Será outro esquizofrênico paranoico? Será que vou ter que dizer que não temos quartos disponíveis? Ah, mas ele disse
que tem reserva... droga – qual o seu nome?
- Silva.
Carlos Silva.
- Pode
soletrar, por favor?
- Soletrar? Soletrar o quê? Silva?? Ou Carlos? É Silva, normal... e Carlos também... não tem nenhuma
letra dobrada, nada... - a irritação dele parecia aumentar. Não devia gostar do próprio nome. Talvez lamentasse não ter exatamente um nome mais exótico, tipo Maycol...
- Sei, sei,
mas é que, às vezes, a reserva... o senhor sabe...
- S-I-L-V-A.
- Ahá. Silva.
Tá aqui. Quarto 402.
Sim, sou
mesmo quase maldoso com alguns. Mas justo: avalio-os nesse primeiro momento, já
na apresentação, com o intuito exatamente de decidir como será o tratamento destinado a
eles no decorrer de sua estada no hotel. Faço uma espécie de teste de aptidão: se correspondem às
minhas expectativas, terão meu melhor atendimento possível; caso contrário,
experimentarão o lado negro da força da recepção.
Ele sobe com
o cartão magnético que abre a porta na mão. Alguns minutos depois, porém, desce,
com a mesma cara emburrada.
- O cartão
não funcionou. – resmunga.
- Humm... o
senhor sabe como funciona?
- É claro
que eu sei como funciona! Já parei mil vezes em outros hotéis que utilizam esse
sistema e...
- Sim, eu
sei, mas é que às vezes os hóspedes não sabem... o senhor tem que inserir o
cartão no...
- Olha aqui,
rapaz, eu sei como funciona esse troço! Mas esse troço NÃO está funcionando,
entendeu?...
Sim, eu sei
que não está funcionando, pois eu propositalmente não o magnetizei na
maquininha aqui da recepção e assim ele realmente nunca abriria porta alguma do
hotel, e provavelmente porta alguma de qualquer hotel do Universo, e por um
instante fiquei imaginando-o, tremendo
de frio e entre cães vadios e bêbados errantes, dormindo na praça aquela noite,
pensamento que me proporcionou um efêmero mas simplesmente indescritível prazer,
provavelmente fazendo-me soerguer ligeiramente o cantinho de uma das sobrancelhas e dos lábios em um sorrisinho
involuntário, antes de lhe dizer:
- Ok, ok.
Empreste-me aqui, por favor, que vou magnetizar o cartão novamente para o senhor...
(Continua)
Nenhum comentário:
Postar um comentário