quinta-feira, 1 de março de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 2" (por Diego T. Hahn)



Eu trabalhava há alguns bons anos na recepção daquele hotel. Era um dos mais antigos lá – o que não era muito difícil, já que a rotatividade de funcionários era grande; o pessoal ficava por ali uns seis meses, um ano no máximo, e caía fora... só havia um cara mais antigo do que eu lá, era um mensageiro, encarregado de colocar e tirar os carros dos hóspedes da garagem, o Severo. O Severo devia estar lá há uns trinta anos - sendo que o hotel só existia há uns vinte... brincávamos que realmente o Severo já zanzava por lá desde antes do hotel ser construído e provavelmente lá estaria depois que o hotel deixasse de existir – alguns colegas apelidaram inclusive uma certa época o Severo de “O fantasma da garagem”... sacanagem.

O trabalho não era pesado, mas a grana era pouca e assim, como dito antes, na primeira oportunidade o pessoal pedia as contas. Mas eu, assim como o Severo, não podia me dar ao luxo de fazer como os outros e simplesmente pular do barco assim no mais; não, eu precisava daquele emprego, afinal, embora não tivesse que bancar ninguém além de mim mesmo (ao contrário do próprio Seva, que era como eu chamava o veterano, que sustentava dois filhos), também não tinha ninguém que me bancasse nem nada assim – as finanças dos velhos andavam mal das pernas – e tinha que pagar minha faculdade... além do que era um emprego no qual eu podia “jogar” com os horários, já que trabalhava de turnante, que era o cara que cobria as folgas dos outros, independentemente do turno – manhã, tarde, noite ou madruga – e assim podia adaptar minha rotina ali com a das aulas, trabalhando de tarde ou de noite quando tinha aula de manhã, e vice-versa, flexibilidade que seria muito difícil de encontrar em algum outro serviço.

- Bom dia, rapaz.

Mas também não me submetia a qualquer coisa simplesmente por isso: como talvez já tenha sido possível observar, não costumava baixar a crista pra ninguém assim no mais. Tentava tratar a maioria legal, mas, você sabe, às vezes (na verdade mesmo, fazia tempo que não tinha mais saco para aquilo, para a rotina quase robótica do trabalho em si, apertando dois ou três botões, repetindo as mesmas frases mecanicamente todo dia... por outro lado, me sentia já meio em casa por lá. E, de certa forma, gostava do “clima” do lugar. Sim, gostava. Só não gostava dos tais dos hóspedes. Mas, fazer o quê?)

- Bom dia, seu Antônio.

Mas também não era radical; havia algumas raras exceções e uma meia dúzia eu costumava tratar bem, já que a recíproca era verdadeira – ou seja, era uma retribuição da gentileza. Um exemplo era o seu Antônio.

- Como vão as coisas, rapaz? E o futebol?

- Ah, jogando de vez em quando, dando uma aulinha pros caras por aí... o senhor sabe como é; só na catega, pifando os bruxos na cara do gol e tal...

- Sim, sim... claro... e as leituras?... Chegou a ver aquele que te indiquei da outra vez?

- Ah, o de sempre também, né... naquelas... batalhando contra uma meia dúzia aí... tudo ao mesmo tempo agora – aquela minha velha mania, né, de ler três ou quatro ao mesmo tempo... e sempre dando uma saramagueadazinha... algum Heminga, e um outro produto do nosso velho e bom amigo Buk aqui e ali... não, ainda não consegui parar para procurar aquele que o senhor me indicou; como era mesmo? “Zen e as motocicletas”?...

- “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”. Isso. Mas legal, legal...

- É, umas biografias também... uma, inclusive, dum mito da hotelaria mundial, “Seu” Sabadoz...o senhor talvez conheça!?... trabalhou aqui um tempo...

- Hummm... não lembro agora...

Também conseguia entabular uma conversa com alguns hóspedes e creio que ganhar uns pontos extra por isso: eu leio - bastante... inclusive ali no trabalho mesmo, quando a coisa tava meio parada e eu meio à toa...

- Bom dia. – saudava-me o hóspede – eu tenho uma reserva e... – ele me olhava e eu seguia de cabeça baixa, concentrado.

- Psiu... – depois de alguns instantes me olhando atentamente, ele tentava ainda chamar minha atenção - ...Oi!? - Eu fazia o sinal de “só um pouco” com a mão. A leitura estava tensa, não podia simplesmente encerrá-la assim no mais, no meio do parágrafo, como se nada fosse! E...

- Ok. Pronto; terminei – levantava a cabeça enquanto fechava o livro, sorrindo para ele, que não parecia, porém, tão simpático à literatura naquele momento. Eu tinha então vontade de elaborar imediatamente um questionamento a respeito de uma suposta implicância dele com Mr. Orwell, talvez pelo passado socialista do autor, ou talvez por ser ele, o hóspede, um socialista, contrariado com a crítica feita pelo inglês quando já desgostoso com o caminho tomado pelo comunismo – ao menos aquele russo – , mas, especialmente por pensar na complexidade (para ele, o hóspede) de toda a questão esquerda/direita/comunismo/socialismo/liberalismo/e outros ismos, me contenho.

- É assim que vocês recebem os clientes aqui? – parece irritado o sujeito. 

Isso não é modo de começar uma conversa, penso eu.

- Vocês quem, senhor? – respondo, olhando ao redor. Será que esse cara vê fantasmas? Será outro esquizofrênico paranoico? Será que vou ter que dizer que não temos quartos disponíveis? Ah, mas ele disse que tem reserva... droga – qual o seu nome?

- Silva. Carlos Silva.

- Pode soletrar, por favor?

- Soletrar? Soletrar o quê? Silva?? Ou Carlos? É Silva, normal... e Carlos também... não tem nenhuma letra dobrada, nada... - a irritação dele parecia aumentar. Não devia gostar do próprio nome. Talvez lamentasse não ter exatamente um nome mais exótico, tipo Maycol...

- Sei, sei, mas é que, às vezes, a reserva... o senhor sabe...

- S-I-L-V-A.

- Ahá. Silva. Tá aqui. Quarto 402.

Sim, sou mesmo quase maldoso com alguns. Mas justo: avalio-os nesse primeiro momento, já na apresentação, com o intuito exatamente de decidir como será o tratamento destinado a eles no decorrer de sua estada no hotel. Faço uma espécie de teste de aptidão: se correspondem às minhas expectativas, terão meu melhor atendimento possível; caso contrário, experimentarão o lado negro da força da recepção.

Ele sobe com o cartão magnético que abre a porta na mão. Alguns minutos depois, porém, desce, com a mesma cara emburrada.

- O cartão não funcionou. – resmunga.

- Humm... o senhor sabe como funciona?

- É claro que eu sei como funciona! Já parei mil vezes em outros hotéis que utilizam esse sistema e...

- Sim, eu sei, mas é que às vezes os hóspedes não sabem... o senhor tem que inserir o cartão no...

- Olha aqui, rapaz, eu sei como funciona esse troço! Mas esse troço NÃO está funcionando, entendeu?...

Sim, eu sei que não está funcionando, pois eu propositalmente não o magnetizei na maquininha aqui da recepção e assim ele realmente nunca abriria porta alguma do hotel, e provavelmente porta alguma de qualquer hotel do Universo, e por um instante fiquei imaginando-o,  tremendo de frio e entre cães vadios e bêbados errantes, dormindo na praça aquela noite, pensamento que me proporcionou um efêmero mas simplesmente indescritível prazer, provavelmente fazendo-me soerguer ligeiramente o cantinho de uma das sobrancelhas e dos lábios em um sorrisinho involuntário, antes de lhe dizer:

- Ok, ok. Empreste-me aqui, por favor, que vou magnetizar o cartão novamente para o senhor...

(Continua)


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