terça-feira, 5 de junho de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 7" (por Diego T. Hahn)



Faltando quinze minutos para terminar o turno, o relógio inevitavelmente parava: estacava abruptamente no quinze para as seis da tarde e ali ficávamos para todo o sempre - forever and ever!... ou, bem, ao menos assim parecia.

Tinha um colega mensageiro que olhava para aquele enorme relógio quadrado da recepção e dizia que ali atrás dele devia haver um buraco, onde se escondia um anão, e esse anão filho da puta era quem parava o relógio, só de sacanagem. 

Eu retrucava que não, que devia ser um duende, pois isso é típico dos duendes, você sabe. Eles gostam de sacanear mesmo... 
Gnomo certamente não era; os gnomos, a princípio, são camaradas e tal (embora a Xuxa alegasse ver gnomos, o que talvez também não deponha a favor dessa suposta bondade deles, não é mesmo? Mas enfim)... 
O colega respondeu então que na verdade eles deviam se revezar, deviam ter também eles seus turnos ali, como a gente: quando o tempo passava mais rápido então, devia ser o gnomo ali atrás do relógio; quando mofávamos na recepção, devia ser o duende o encarregado daquela tarde - o anão era o turnante, quebrava o galho quando os outros dois estavam de folga. 

Enfim, essa descrição acima foi só para o amigo leitor ter noção do nível de idiotice que a um certo ponto atingíamos por vezes ali naquele recinto...

Certa vez, em meio a um desses nossos vácuos mentais que infelizmente transformávamos em diálogos, um hóspede, com a cara fechada, chegou em frente ao mensageiro ao lado da recepção e balbuciou, com os dentes cerrados:

- Megane – pedia seu veículo, carrancudo, visivelmente com pressa.

O colega, mais um novato, ainda não era além de tudo muito ligado em marcas de carros e respondeu sorrindo todo simpático, estendendo a mão para o sujeito:

- Prazer, seu Megane. Reinaldo. Posso ajudá-lo?

Pois, noves fora a ignorância automobilística do mensageiro em questão, quanto aos seus Meganes da vida, eu os ficava ouvindo naqueles outros papos vazios (ao menos os nossos eram engraçados...), orgulhosos das vendas que haviam feito no dia, ou trocando ideias do dia a dia das empresas, sobre novos produtos no mercado, ou algo assim, e ria melancolicamente comigo mesmo da pomposidade que muitas vezes alguns deles empregavam àqueles assuntos - práticos e importantes para alguns, sim, sem dúvida, mas, diabos, extremamente maçantes para a humanidade como um todo, caramba!...

E sentia então uma tremenda vontade de indagar-lhes o que achavam que havia após "tudo isso", e o que achavam a respeito de de onde viemos e para onde vamos, e ainda se acreditavam em vida após a morte, e em Deus – ou nos duendes e gnomos, que fosse – e se acreditam em algo – em algo além da empresa, que lhes pagava aquelas diárias ali...

Provavelmente perguntariam também se eu acreditava em algo além da empresa que me pagava para estar ali. 
E eu responderia, categoricamente, que acredito em tudo, MENOS na empresa que me pagava para estar ali – até porque, na verdade, não acreditava naquilo que me pagavam para estar ali... 


Mas, enquanto isso, lá vinha outro desfilando imponente pelo hall do nosso caro Hotel Santa Maria City:

- Como é o Hotel Imembuy? - perguntava-me o velho rabugento, após dizer que estava descontente com a estrutura do nosso hotel, e o atendimento, e...

- Não sei, senhor.

- Como não sabe? Que raios de atendimento é esse?

- Bem... senhor... o caso é que, como o senhor pode supor, eu moro aqui em Santa Maria, certo? Assim sendo, nunca me hospedei no hotel Imembuy... afinal, não preciso; tenho uma casa aqui em Santa Maria... não faria sentido me hospedar no hotel tendo uma casa aqui, correto? E também nunca trabalhei lá, trabalho aqui no Hotel Santa Maria City... portanto, não faço ideia de como é o hotel Imembuy... senhor.

- E por um acaso isso te impede de ter ouvido o que dizem de lá? Trabalhando num hotel, não sabe o que dizem do outro hotel? É isso?

- Ah, sim... já ouvi falar de lá... uma pessoa me disse que é uma porcaria total... outra, me disse que é maravilhoso... lhe ajudei agora??

- Vou falar com o gerente sobre o seu atendimento – vociferou o velhote por fim, dando-me às costas.

Bem, repassando mentalmente o diálogo e toda a racionalidade e lógica extremas empregadas no mesmo, supus que aquilo só podia ser um elogio.

Um outro desses sujeitos, após fazer o check-in, subiu ao andar do seu quarto e logo telefonou lá de cima e começou a resmungar, dizendo que ia embora, pois não era nada do que “tinham lhe prometido” - veja bem, apesar dos chororôs desses malas reclamões, o hotel era considerado o melhor da cidade, um bem ajeitado 4 estrelas...

Respondi simplesmente “ok” e desliguei.

Ele desceu, veio até a recepção e repetiu toda aquela sua ladainha chorosa, por fim ameaçando novamente que ia embora.

Repeti, educadamente, mas sem maiores delongas: “Ok”.

Ele ficou me olhando. Esperava certamente, eu via em seu olhar, que eu replicasse dizendo que o acomodaríamos em um outro quarto, faríamos o nosso melhor, ou ao menos que eu perguntasse QUAL era o problema mesmo; devia estar acostumado com hotéis, e suporia que essas deviam ser as instruções dadas no treinamento (lembrando que o meu "treinamento" fora na madruga, com o mensageiro-cozinheiro-violeiro-meu-filho-no-videogame Zeca) e... ficou me olhando. E eu, para ele. 

Atônito, depois de alguns segundos então, foi-se embora devagarzinho arrastando sua bagabem, de vez em quando ainda dando uma olhadela entre surpresa e incomodada para trás antes de passar pela porta automática da saída, certamente desolado por inesperadamente ter que recomeçar mesmo sua busca por um quarto de hotel (talvez fosse acabar parando no muquifo do Hotel Imembuy, que era uma verdadeira bosta, embora eu eticamente me recusasse a mencionar isso para o desgraçado anterior) como não imaginava que pudesse acontecer quando lá de cima ameaçou partir e, especialmente, por não ter sido paparicado por aquele maldito recepcionista sem coração.

Certa vez me ocorreu, no entanto, o terrível pensamento que fora dali também eu talvez agisse como alguns daqueles hóspedes em certas ocasiões. Quando no papel do cliente, em um restaurante, uma lancheria, ou algo assim... 

Vi-me entrando no lugar, todo cheio de banca, fazendo pose para a garota ao meu lado, analisando o cardápio, enquanto o garçom ali ao lado, já cansado de esperar pelos idiotas que não se decidem nunca o que querem comer, começa a tecer teorias a meu respeito, imaginando-me um completo imbecil que se acha superior a ele por estar ali sentado... e aí fico em dúvida se tomo um refri normal ou um refri zero... decido por fim que não, quero uma água... ou melhor; uma cerveja. Isso, uma cerveja. Duas. Três. Quatro. E logo estou bêbado e bravateando, fazendo piadinhas sem graça, para as quais ele tem que retribuir com um sorriso amarelo, e fico lá sentado quando todo mundo já foi embora e os funcionários só aguardam por mim para irem embora, completamente destruídos pela infinita jornada diária...

Sim, tenho auto-crítica, porra: sei que também sou uma espécie de hóspede pedante em certas ocasiões (de acordo com a teoria sociológica de um ex-colega, esse é um problema crônico do brasileiro como um todo: por mais pobretão que seja, se estiver pagando, ele acredita que pode tudo...). Mas isso não me fez ser mais condescendente; não, isso me fez ser ainda mais crítico com eles (os malditos hóspedes) – e também comigo mesmo; passei a procurar tratar os garçons como o Seu João de Almeida me tratava (um dia desses, por sinal, depois de uns tragos solitários num boteco, convidei mesmo um deles para acompanhar numa expedição até as queridas... não estou evoluindo?).

Um cara que trabalhou ali na recepção por breve período, cerca de três meses, havia trabalhado anteriormente por algum tempo em cruzeiros turísticos e em hotéis pela Europa. Disse que lá essa questão do atendimento era mais tranquila: os hóspedes não ficavam pedindo mil coisas, não achavam que tinham direito a tudo (ele é o cara daquela teoria que eu mencionara antes); simplesmente entravam no hotel, dormiam, tomavam café, no máximo pediam alguma informação da cidade, e caíam fora... e se pedissem muito, na realidade, o pessoal do hotel já dizia que não, não tinha, não, não era possível, e já fechava a cara, no que, devo dizer, identifiquei-me com esse tipo de tratamento.

O problema era exatamente, continuava ele, quando surgiam brasileiros... era um inferno. A princípio, ele ficava contente de ver patrícios chegando lá e poder trocar uma ideia com pessoal da sua terra natal, mas com o tempo foi percebendo essa faceta pedante dos turistas brazucas... havia muitas situações que o pessoal do hotel até quebrava um galho, mas no caso era mesmo um favor, não coisas que estariam incluídas no serviço, embora esses hóspedes acreditassem que sim, que tinham direito a absolutamente tudo que solicitassem. “Novos ricos”, dizia ele. Querem exercer esse seu novo poder – e precisam, por conseguinte, de alguém para sofrê-lo – completava ele sua análise sociológica.

E agora aquele sujeito estava ali, trabalhando num hotel no Brasil. Cercado, pois, de hóspedes brasileiros por toda parte! Gente pedindo adaptador pro carregador de bateria do celular ou do computador, pedindo mais coberta, pedindo mais travesseiros, pedindo para ir ver o ar que parece não estar funcionando direito – está muito quente; ou muito frio; ou ambos - , pedindo para dar uma olhada na televisão, a imagem está meio ruim, e o controle remoto também parece não estar funcionando direito, e como me colocaram num quarto de frente para a rua?? Vocês estão loucos?? Ah, não, nos fundos também não, né!?... a vista lá é péssima... e no meio, no meio nem pensar: aquele barulho enlouquecedor do elevador a toda hora!!...

E tudo aquilo por menos de um mísero salário (várias vezes, quando conversávamos e pedia que eles chutassem o valor do nosso ganho mensal, ouvi de hóspedes o palpite que aqueles carinhas dentro daquele hotel chiquezão, fardados de terno e gravata, tiravam, no mínimo, uns 2 paus limpos por mês. ) - de nada valendo também ali toda sua experiência lá fora e as 3 ou 4 línguas estrangeiras que falava...

Alguns meses depois, após ficarmos um tempo sem notícias suas após ele (obviamente) deixar o hotel, soubemos que o colega europeu estava trabalhando numa oficina mecânica a algumas quadras dali – e Jorge, o mensageiro, afirmava quase não tê-lo reconhecido ao vê-lo de relance, devido ao rosto todo sujo, mas que debaixo de toda aquela graxa havia um sereno semblante de quem, apesar de não ter mais o prazer de correr mundo servindo drinques em navios bacanas para formosas e simpáticas suequinhas, por outro lado, entre uma repimboca da parafuseta e outra que aparafusava e com as quais dialogava sussurrando em francês ou alemão, encontrara um pouco de paz de espírito nos últimos tempos, por simplesmente também não precisar mais aturar os famigerados hóspedes tupiniquins...

(Continua)


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