O telefone.
O telefone era um capítulo à parte.
Se por um lado na madrugada ele
permanecia quase invariavelmente mudo, à tarde ele tocava freneticamente,
incessantemente – era um negócio realmente enlouquecedor!
E o pior: na verdade, eram dois telefones!, separados por uns três
ou quatro metros na parte interna do balcão da recepção...
A coisa costumava se desenrolar
assim: eu atendia um, falava com o interlocutor, desligava, e ia pegar o outro
que já estava tocando, enquanto o anterior já começava a berrar novamente,
e o gerente gritava perguntando por que ninguém atendia o maldito telefone, e
eu não podia responder pois estava exatamente atendendo ao telefone, seu
*#%#@¨*!... E por aí íamos, ao longo da tarde, naquela infinita sequência digna
de um filme de comédia pastelão – eu podia me imaginar mesmo como um Didi Mocó
da vida real, quase conseguindo, por um milésimo de segundo, rir da idéia em
meio à raivosa corrida de um telefone para o outro (nos piores cenários, ainda
havia algum hóspede maldito por ali me perguntando coisas simultaneamente,
quando não uma pequena fila deles se formando e me olhando feio por eu dar
atenção aos telefones e não atendê-los direito, ou novamente o maldito gerente,
enquanto eu decidia ignorar os telefones e atender razoavelmente os clientes –
o que me parecia o mais lógico -, também ele resolvia usar o telefone na linha
interna e me telefonar para perguntar por que eu não estava atendendo os
malditos telefones!!)...
Foi então uma bela tarde que comecei
a colocar em prática uma técnica anti-stress-telefônico.
Primeiramente, óbvio, começara a acontecer de eu simplesmente esquecer
com relativa frequência os aparelhos fora do gancho...
Eu sei, você pode pensar que isso era
proposital, que essa então era a tal técnica, que - além de canalha - não tinha nada de original, e
eu lhe responderia que, fosse como fosse, se fosse verdade que esta era a
técnica empregada voluntariamente, ela era simples, realmente, mas também
eficaz, pois os aparelhos ficavam ali relaxados por uns cinco ou dez minutos
antes de eu me dar conta do lapso, o suficiente para voltar a ouvir meus
pensamentos e descansar a mandíbula, cansada de se abrir e fechar em meio ao
“Bom dia, Hotel Santa Maria, em que posso ajudá-lo?” que repetia 896 vezes por
tarde.
Mas não, como dito antes, aquilo era puro esquecimento, cara.
Mas não, como dito antes, aquilo era puro esquecimento, cara.
Agora, a técnica em si, sim, consistia
em efetivamente atender a uma chamada
– e aí eis o toque de gênio: ficar esticando ao máximo a conversa com o
interlocutor, explicando-lhe, com minúcias, ainda que não tivesse sido
perguntado, características do hotel, a localização deste, o que estava
incluído na diária, as “atrações turísticas” da cidade, como chegar, etc.
Fazendo isso, obviamente eu não deixava de ter que abrir a boca e falar (dessa, não adiantava, não havia técnica ou milagre que me fizesse escapar), mas, além de não correr o
risco de ser flagrado no esquecimento do
telefone fora do gancho (cena que poderia ser estarrecedora tal qual a do chuveiro de "Psicose" para o gerente ou,
pior, para o dono da budega, com direito à musiquinha de suspense - TÃ TÃ TÃ TÃ TÃ!! - e um close no fone fora do gancho como se fosse uma faca ensanguentada, chegava a visualizar eu num daqueles meus momentos de paz telefônica), ao menos eu não precisava correr de um aparelho
para o outro, e podia falar com toda calma do mundo sobre algumas questões um
pouco mais diversas do que aquela enlouquecedora introdução, com suas repetitivas saudação e as duas ou três informações mais básicas, que devem ter me feito perder uns oitocentos e setenta e sete milhões de neurônios por suicídio (ou, neuronicídio) por tarde de telefonemas.
Em alguns casos, então, flagrei-me mesmo
conversando sobre política, futebol e religião com as pessoas do outro lado da
linha que haviam telefonado para simplesmente saber se havia vagas e o preço dos quartos.
Mas, calma, como obviamente nem todos do outro lado da linha tinham
paciência, a técnica foi refinada, e
a deixei ainda mais artística: pois mesmo
depois de a pessoa com quem falava
ter desligado eu continuava muitas vezes conversando, calmamente, passando
várias informações que esse hipotético futuro cliente estaria pedindo – e ele
queria saber, claro, além da localização do hotel e se ficava perto do centro, quando
havia sido construído, que atrativos havia no entorno, como era a vida noturna
da cidade, que bar eu recomendaria para uma festinha legal, que tipo de som tocava lá, que tipo de som eu curtia, qual era o meu time, o que eu havia achado da rodada do fim de
semana, o que estava passando no cinema da cidade, se eu havia visto o filme
tal, o que havia achado (aproveitava para me fantasiar famoso, estirado num sofazão, num daqueles ping-pongs com Marílias Gabrielas e Jô Soares da vida) etc – e em outros momentos, para realmente descansar,
simplesmente concordando com o velho e bom “hum-rum” a indagações feitas por
seres imaginários do outro lado da linha, no melhor estilo poltergeist.
O outro telefone, obviamente, berrava
insanamente durante aqueles dez minutos que eu ficava ali naquela conversa com
o além, e o gerente, embora ainda
consternado com o aparelho que tocava, me observava e devia pensar “caramba, não levava muita fé, mas o cara até que é mesmo um funcionário prestativo; não se furtando a dar diversas informações, algumas, aliás, que não têm nada a ver com o trabalho dele, na maior
paciência, para algum filho da puta cheio de nove horas!...”.
É, é verdade: eu merecia mesmo era um
aumento por aquela paciência, meu
amigo, não é mesmo!?...
Mas, falando em gerente e paciência,
curiosa também era a organização dos nossos turnos na recepção por parte do tal: às vezes
não havia realmente porra nenhuma para se fazer e estávamos lá eu e outro recepcionista
batendo cabeça na “jaula”; em outros momentos, como no supracitado, eu,
solitário, me desabalava de um lado para o outro para atender aos telefones e
ao mesmo tempo fazer check-ins e lançamentos de produtos consumidos nas contas
e responder a perguntas idiotas de hóspedes desagradáveis e, como se sabe,
nessas horas sempre surgem mais coisas para fazer... por vezes ficava então tentando imaginar o
sujeito organizando os tais turnos (e aqui novamente entrava numa daquelas minhas viagens, visualizando mesmo o cara enfurnado em sua salinha privada - ou talvez realizasse aquele afazer realmente nesta última, isto é, no vaso - rindo maquiavelicamente em frente ao excel com nossos nomes sendo jogados, por puro prazer sádico, de lá pra cá naqueles retangulozinhos, sem um mínimo de lógica aparente...).
Enfim, o fato é que o indivíduo, um cara relativamente jovem, um pouco mais velho que a gente, e até bem "ligado", estava lá há longos meses, logo anos, sabia a rotina do hotel, dos horários, fluxos de movimento; como, ainda assim, conseguia organizar os turnos de maneira tão estúpida, meu Deus?...
Enfim, o fato é que o indivíduo, um cara relativamente jovem, um pouco mais velho que a gente, e até bem "ligado", estava lá há longos meses, logo anos, sabia a rotina do hotel, dos horários, fluxos de movimento; como, ainda assim, conseguia organizar os turnos de maneira tão estúpida, meu Deus?...
Nesses casos, vez em quando - digamos que "em protesto" - quando estávamos
em dois recepcionistas e dois mensageiros ao lado, teoricamente em serviço, mas todos coçando violentamente, fazíamos um
revezamento recreativo: um dos recepcionistas e um dos mensageiros ficavam de “plantão”,
justificando o contracheque recebido - afinal, fazer o quê, né - , enquanto os outros dois pegavam o carrão de
algum hóspede na garagem, tipo um Camaro ou uma BMW, e iam dar uma banda pela
cidade, aproveitando, óbvio, para dar uma flertada com algumas gatinhas pela rua...
Certa vez, por exemplo, o mensageiro Jorge, aquele que dizia que eu parecia um espião, parou o carro pelo centro e começou a papear com uma garota que
andava por ali. Ela sorriu.
Pois papo vai, papo vem, ele contou que era médico, pápápá, e trocaram telefones... alguns dias depois, chegaram a sair juntos para uma cervejinha e ele contando das cirurgias de transplante de coração que costumava fazer, não era fácil, mas era recompensador, sabe... e os olhos da menina brilhavam...
Pois papo vai, papo vem, ele contou que era médico, pápápá, e trocaram telefones... alguns dias depois, chegaram a sair juntos para uma cervejinha e ele contando das cirurgias de transplante de coração que costumava fazer, não era fácil, mas era recompensador, sabe... e os olhos da menina brilhavam...
Nos dias seguintes, entre um carro manobrado e outro, o camarada se demonstrava empolgado quando pela recepção, contando sem parar da sua nova conquista, sem se importar de ser sacaneado pelos colegas, que diziam que ele estava ficando apaixonadinho.
Difícil para ela, no entanto, deve ter sido
compreender a cena que viu quando certa vez passava por acaso em frente ao
hotel: lá estava o “doutor” na rampa da garagem, de uniforme do hotel todo
suado e carregando as malas de algum hóspede recém chegado e que lhe dava um tremendo
esporro por um motivo qualquer e ele só balbuciava “sim, senhor, sim,
senhor...”.
Depois disso, apesar do óbvio fim do romance e da nossa apreensão pela provável queda no astral do colega, surpreendentemente, entre suas missões pela garagem, ele continuaria vindo à recepção com frequência empolgadamente redobrada para conferir no computador detalhes sobre operações de ponte de safena, procedimentos como cateterismo e coisas do gênero, mostrando que, por mais platônico que talvez fosse, parecia realmente ter encontrado um novo amor nessa vida.
(Continua)
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