terça-feira, 15 de maio de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 6" (por Diego T. Hahn)


O telefone.

O telefone era um capítulo à parte.

Se por um lado na madrugada ele permanecia quase invariavelmente mudo, à tarde ele tocava freneticamente, incessantemente – era um negócio realmente enlouquecedor!

E o pior: na verdade, eram dois telefones!, separados por uns três ou quatro metros na parte interna do balcão da recepção...

A coisa costumava se desenrolar assim: eu atendia um, falava com o interlocutor, desligava, e ia pegar o outro que já estava tocando, enquanto o anterior já começava a berrar novamente, e o gerente gritava perguntando por que ninguém atendia o maldito telefone, e eu não podia responder pois estava exatamente atendendo ao telefone, seu *#%#@¨*!... E por aí íamos, ao longo da tarde, naquela infinita sequência digna de um filme de comédia pastelão – eu podia me imaginar mesmo como um Didi Mocó da vida real, quase conseguindo, por um milésimo de segundo, rir da idéia em meio à raivosa corrida de um telefone para o outro (nos piores cenários, ainda havia algum hóspede maldito por ali me perguntando coisas simultaneamente, quando não uma pequena fila deles se formando e me olhando feio por eu dar atenção aos telefones e não atendê-los direito, ou novamente o maldito gerente, enquanto eu decidia ignorar os telefones e atender razoavelmente os clientes – o que me parecia o mais lógico -, também ele resolvia usar o telefone na linha interna e me telefonar para perguntar por que eu não estava atendendo os malditos telefones!!)...

Foi então uma bela tarde que comecei a colocar em prática uma técnica anti-stress-telefônico

Primeiramente, óbvio, começara a acontecer de eu simplesmente esquecer com relativa frequência os aparelhos fora do gancho...

Eu sei, você pode pensar que isso era proposital, que essa então era a tal técnica, que - além de canalha - não tinha nada de original, e eu lhe responderia que, fosse como fosse, se fosse verdade que esta era a técnica empregada voluntariamente, ela era simples, realmente, mas também eficaz, pois os aparelhos ficavam ali relaxados por uns cinco ou dez minutos antes de eu me dar conta do lapso, o suficiente para voltar a ouvir meus pensamentos e descansar a mandíbula, cansada de se abrir e fechar em meio ao “Bom dia, Hotel Santa Maria, em que posso ajudá-lo?” que repetia 896 vezes por tarde. 
Mas não, como dito antes, aquilo era puro esquecimento, cara.

Agora, a técnica em si, sim, consistia em efetivamente atender a uma chamada – e  eis o toque de gênio: ficar esticando ao máximo a conversa com o interlocutor, explicando-lhe, com minúcias, ainda que não tivesse sido perguntado, características do hotel, a localização deste, o que estava incluído na diária, as “atrações turísticas” da cidade, como chegar, etc. Fazendo isso, obviamente eu não deixava de ter que abrir a boca e falar (dessa, não adiantava, não havia técnica ou milagre que me fizesse escapar), mas, além de não correr o risco de ser flagrado no esquecimento do telefone fora do gancho (cena que poderia ser estarrecedora tal qual a do chuveiro de "Psicose" para o gerente ou, pior, para o dono da budega, com direito à musiquinha de suspense - TÃ TÃ TÃ TÃ TÃ!! - e um close no fone fora do gancho como se fosse uma faca ensanguentada, chegava a visualizar eu num daqueles meus momentos de paz telefônica), ao menos eu não precisava correr de um aparelho para o outro, e podia falar com toda calma do mundo sobre algumas questões um pouco mais diversas do que aquela enlouquecedora introdução, com suas repetitivas saudação e as duas ou três informações mais básicas, que devem ter me feito perder uns oitocentos e setenta e sete milhões de neurônios por suicídio (ou, neuronicídio) por tarde de telefonemas.

Em alguns casos, então, flagrei-me mesmo conversando sobre política, futebol e religião com as pessoas do outro lado da linha que haviam telefonado para simplesmente saber se havia vagas e o preço dos quartos.

 Mas, calma, como obviamente nem todos do outro lado da linha tinham paciência, a técnica foi refinada, e a deixei ainda mais artística: pois mesmo depois de a pessoa com quem falava ter desligado eu continuava muitas vezes conversando, calmamente, passando várias informações que esse hipotético futuro cliente estaria pedindo – e ele queria saber, claro, além da localização do hotel e se ficava perto do centro, quando havia sido construído, que atrativos havia no entorno, como era a vida noturna da cidade, que bar eu recomendaria para uma festinha legal, que tipo de som tocava lá, que tipo de som eu curtia, qual era o meu time, o que eu havia achado da rodada do fim de semana, o que estava passando no cinema da cidade, se eu havia visto o filme tal, o que havia achado (aproveitava para me fantasiar famoso, estirado num sofazão, num daqueles ping-pongs com Marílias Gabrielas e Jô Soares da vida) etc – e em outros momentos, para realmente descansar, simplesmente concordando com o velho e bom “hum-rum” a indagações feitas por seres imaginários do outro lado da linha, no melhor estilo poltergeist.

O outro telefone, obviamente, berrava insanamente durante aqueles dez minutos que eu ficava ali naquela conversa com o além, e o gerente, embora ainda consternado com o aparelho que tocava, me observava e devia pensar “caramba, não levava muita fé, mas o cara até que é mesmo um funcionário prestativo; não se furtando a dar diversas informações, algumas, aliás, que não têm nada a ver com o trabalho dele, na maior paciência, para algum filho da puta cheio de nove horas!...”.

É, é verdade: eu merecia mesmo era um aumento por aquela paciência, meu amigo, não é mesmo!?...

Mas, falando em gerente e paciência, curiosa também era a organização dos nossos turnos na recepção por parte do tal: às vezes não havia realmente porra nenhuma para se fazer e estávamos lá eu e outro recepcionista batendo cabeça na “jaula”; em outros momentos, como no supracitado, eu, solitário, me desabalava de um lado para o outro para atender aos telefones e ao mesmo tempo fazer check-ins e lançamentos de produtos consumidos nas contas e responder a perguntas idiotas de hóspedes desagradáveis e, como se sabe, nessas horas sempre surgem mais coisas para fazer... por vezes ficava então tentando imaginar o sujeito organizando os tais turnos (e aqui novamente entrava numa daquelas minhas viagens, visualizando mesmo o cara enfurnado em sua salinha privada - ou talvez realizasse aquele afazer realmente nesta última, isto é, no vaso - rindo maquiavelicamente em frente ao excel com nossos nomes sendo jogados, por puro prazer sádico, de lá pra cá naqueles retangulozinhos, sem um mínimo de lógica aparente...). 
Enfim, o fato é que o indivíduo, um cara relativamente jovem, um pouco mais velho que a gente, e até bem "ligado", estava lá há longos meses, logo anos, sabia a rotina do hotel, dos horários, fluxos de movimento; como, ainda assim, conseguia organizar os turnos de maneira tão estúpida, meu Deus?...

Nesses casos, vez em quando - digamos que "em protesto" - quando estávamos em dois recepcionistas e dois mensageiros ao lado, teoricamente em serviço, mas todos coçando violentamente, fazíamos um revezamento recreativo: um dos recepcionistas e um dos mensageiros ficavam de “plantão”, justificando o contracheque recebido - afinal, fazer o quê, né - , enquanto os outros dois pegavam o carrão de algum hóspede na garagem, tipo um Camaro ou uma BMW, e iam dar uma banda pela cidade, aproveitando, óbvio, para dar uma flertada com algumas gatinhas pela rua... 

Certa vez, por exemplo, o mensageiro Jorge, aquele que dizia que eu parecia um espião, parou o carro pelo centro e começou a papear com uma garota que andava por ali. Ela sorriu. 
Pois papo vai, papo vem, ele contou que era médico, pápápá, e trocaram telefones... alguns dias depois, chegaram a sair juntos para uma cervejinha e ele contando das cirurgias de transplante de coração que costumava fazer, não era fácil, mas era recompensador, sabe... e os olhos da menina brilhavam...

Nos dias seguintes, entre um carro manobrado e outro, o camarada se demonstrava empolgado quando pela recepção, contando sem parar da sua nova conquista, sem se importar de ser sacaneado pelos colegas, que diziam que ele estava ficando apaixonadinho.

Difícil para ela, no entanto, deve ter sido compreender a cena que viu quando certa vez passava por acaso em frente ao hotel: lá estava o “doutor” na rampa da garagem, de uniforme do hotel todo suado e carregando as malas de algum hóspede recém chegado e que lhe dava um tremendo esporro por um motivo qualquer e ele só balbuciava “sim, senhor, sim, senhor...”.

Depois disso, apesar do óbvio fim do romance e da nossa apreensão pela provável queda no astral do colega, surpreendentemente, entre suas missões pela garagem, ele continuaria vindo à recepção com frequência empolgadamente redobrada para conferir no computador detalhes sobre operações de ponte de safena, procedimentos como cateterismo e coisas do gênero, mostrando que, por mais platônico que talvez fosse, parecia realmente ter encontrado um novo amor nessa vida.


(Continua)

quinta-feira, 3 de maio de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 5" (Por Diego T. Hahn)



- Mas eu disse para não tocarem no meu carro!

- Sim, senhor; mas o senhor quis estacionar por conta própria e acabou ocupando a vaga de dois veículos... e, como o hotel está lotado, nós tivemos que remanejá-lo e...

- Não me interessa. Eu disse para NÃO MEXER no meu carro!

- Certo, então o senhor terá que deixar seu automóvel na rua...

- Como é???

Eu falava ponderadamente, sem alterar a voz, com o sujeito, que, por sua vez, bradava e gesticulava tal qual um chimpanzé envenenado, aparentemente cada vez mais irritado com a minha argumentação, mas eu não podia deixar pra lá, ainda que a treta a princípio não fosse minha – ele havia começado aquele esporro para cima do mensageiro, que era quem havia manobrado o carro dele e que agora ali na recepção baixara a cabeça, encabulado, após até tentar explicar que “é que... senhor... eu... hã... o carro... tinha que...”, mas diante da pressão do cara não conseguira articular nada.

Cara, a questão é que, em situações assim, eu sentia-me na obrigação de contra-atacar.

Se a bronca era diretamente comigo, eventualmente eu até deixava passar, mas algumas vezes os hóspedes abusavam moralmente de alguns dos meus colegas que não tinham as “ferramentas”, ou mesmo disposição, para defender-se e confrontá-los adequadamente (ou o que eu julgava ser adequadamente), como eu aparentemente tinha (ou acreditava ter)... mas a verdade é que, de certa forma, poder-se-ia dizer que no fundo, numa conotação social e/ou intelectual, eu talvez pertencesse mesmo também à “tribo” dos hóspedes, embora estivesse apartado deles por um balcão - era como um membro deslocado do bando - , e, embora me entendesse bem com eles, era um "estranho no ninho" entre meus colegas, os “bárbaros”, como o próprio mensageiro Jorge costumava brincar, dizendo que eu parecia uma espécie de espião, fingindo-me inocente ali na recepção em meio àqueles check-ins e check-outs, enquanto preparava algum grande plano maquiavélico para conquistar o mundo ou algo assim...

Bem, não, não havia plano algum – não além daquele de simplesmente conquistar era o meu troquinho – mas devido àquela “pilha” toda – e a maior carga dela, confesso, vinha de mim mesmo – eu realmente acreditava ter aquela obrigação de ao menos lhes infligir, aos malditos hóspedes, derrotas supostamente (ao menos nas minhas utópicas suposições, quando criava um filme na minha cabeça) épicas, tal qual o fizeram – ou ao menos tentaram – os personagens do De Niro em “A missão”, do Tom Cruise em “O último samurai”, ou o do Kevin Costner em “Dança com lobos”... 
Quase todos eles se deram mal, é verdade, provavelmente eu também me daria, mas, que diabos, como bom camarada não podia fugir àquela luta!...

Fosse como fosse, e por mais que o confrontasse, o tal palhaço continuou estacionando o carro sozinho e ocupando espaço que poderia ser usado por outros carros e causando confusão na garagem, mas ao menos, como consolo, o dono do hotel, que acompanhava de longe a discussão, veio até mim na recepção depois que o cara se foi e, ao que eu esperava um esporro complementar (ou mesmo um golpe de misericórdia), me surpreendeu dizendo apenas: “Nem dá trela; o cara é um babaca mesmo...”, mostrando que o sujeito devia ser realmente um tremendo babaca.

Voltando às origens, quando pelo contrário raramente tinha contatos do gênero – na verdade, quase nenhum contato em geral – e tudo era mais tranquilo, logo no meu primeiro mês no hotel já me tinham colocado para trabalhar na madruga e foi na calada da noite que conheci o sorrateiro Zeca. Ele era então o mensageiro mais antigo lá depois do Severo e sabia tudo do hotel. Sabia, por exemplo – mostrando que conhecimento também enche mesmo barriga – , onde ficava guardada na noite a chave da cozinha do restaurante – local sagrado e de acesso supostamente proibido para nós. E lá pelas tantas, balançando-a entre os dedos, vinha até mim e perguntava:

- E aí, o que vai querer para hoje, véio?...

Eu, então meio constrangido – novato, ainda em fase de teste, não querendo entrar de cúmplice naquele ataque à despensa, mas também não querendo descartar completamente uma oportunidade de preencher o vazio do buraco negro que costumava assolar meu estômago naquelas ocasiões – , dizia que não sabia, até tentava desconversar, dizendo que "estava tranquilo" (numa tímida e duvidosa recusa), enquanto seguia teclando algo no computador sem sequer olhar pro cara... ele, porém, não se fazia de rogado e dava então as sugestões do dia – ou melhor, da noite:

- Batata frita, lasanha ou omelete? – e lá se ia preparar nossa janta das três horas, sem esperar eu responder. Voltava com uma latinha de refri pra cada um. 

O sujeito era mesmo um grande fanfarrão. Volta e meia levava consigo também uma viola, com a qual alegrava parte das nossas madrugas, e por vezes também um videogame. Nessas noites, o tempo voava. Ficávamos jogando futebol, estirados no sofá, na sala em frente ao bar, onde havia uma telona, e eu pensava “bem, daqui a pouco faço as duas ou três coisas que tenho para fazer”, que me tomavam menos de meia hora naquelas madrugadas, e aí quando nos dávamos conta, caramba, eram já cinco e meia! – o turno trocava às seis – e saltávamos do sofá e eu ia correndo imprimir os arquivos que tinha para imprimir e carimbar os arquivos que tinha para carimbar e tal, e ele zarpava para garagem ajeitar os carros... é, aquelas partidas eram duras e acirradas! Concentrados, perdíamos totalmente a noção do tempo. 
Mas o que importa é que, apesar de Zeca ser o dono do campinho – o videogame era dele – eu ganhava a maioria das partidas, para seu desespero – eu ria sarcasticamente ao ouvir com frequência o mensageiro que estava assumindo o turno no início da manhã perguntando para o meu rival “Por que essa cara de bunda hoje, mano?”...

Zeca não durou muito lá, depois que eu entrei. Não por revolta por aquelas derrotas, mas logo arranjou um emprego melhor e eu perdi meu cozinheiro noturno – e o companheiro de viola, e as partidas de futebol no videogame... O mensageiro que o substituiu não tinha a mesma audácia, e na verdade nenhum outro depois dele, ao passo que a partir dali tive que procurar outros entretenimentos para aquelas longas noites nas quais, posso jurar, ainda chegava a farejar por vezes feito um cão faminto ao longo dos meses seguintes o cheiro de lasanha ou omelete se aprochegando nas imediações da recepção ali pelas três da madruga - logo no entanto tornando à realidade e melancolicamente voltando a mastigar minha pastelina e sugar meu toddyinho então levados de casa.

(Continua)