segunda-feira, 8 de junho de 2020

Seção "Mais valem algumas palavras do próprio autor - quando este é fera, claro - do que mil resenhas" - "O Fascismo Eterno", de Umberto Eco (por Diego T. Hahn)


Este pequeno livro (nos dois sentidos: são 63 páginas, no formato pocket) do italiano Umberto Eco é um ensaio que versa sobre as características do fascismo e sua "adaptabilidade", ainda na contemporaneidade (foi publicado em junho de 1995, um quase "ontem", que, pelo seu conteúdo, porém, tem toda a cara de um "hoje").

"Um convite - um alerta - para 'não esquecer', para não dar esse mal como superado - é o que faz Umberto Eco neste O Fascismo Eterno. Para nos lembrar que o 'Ur-Fascismo', como o autor nomeia, 'ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis' ", diz a apresentação da obra na orelha da edição da Record. "O termo 'fascismo' é facilmente adaptável porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará a ser reconhecido como tal. Entre as possíveis características do Ur-Fascismo, o 'fascismo eterno' do título, estão o medo do diferente, a oposição à análise crítica, o machismo, a repressão e o controle da sexualidade, a exaltação de um 'líder' e um constante estado de ameaça."

Não vamos, portanto, ficar aqui falando sobre o vasto currículo do escritor/filósofo/semiólogo/medievalista/etc Eco (vamos resumi-lo, de maneira pop, como "o pai d´'O nome da Rosa' " e da marcante frase sobre os novos rumos da nossa comunicação: "As redes sociais da internet deram voz a uma legião de imbecis, que antes falavam só no bar e logo se calavam"), para não nos estendermos demais, e passemos imediatamente a algumas de suas mais pertinentes observações contidas nesta obra:

"Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que 'eles' não podem repetir o que fizeram. Mas quem são 'eles'?"

"O Fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário. Nem tanto por sua brandura, mas antes pela debilidade filosófica de sua ideologia."

"O Fascismo italiano convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista."

"É possível conceber um movimento totalitário que consiga reunir monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?"

"O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários rurais mais conservadores, que esperavam uma contrarrevolução."

"A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição."

"(...) O Iluminismo e a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como 'irracionalismo'."

"O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão."

"Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas."

"Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição."

"O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. Isso explica por que uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos 'proletários' estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se autoexclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria o seu auditório."

E pra fechar, em grande estilo (por assim dizer):

"Em nosso futuro, desenha-se um populismo qualitativo de tv ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como 'a voz do povo' ".

(É - como diz aquela advertência - qualquer semelhança com a realidade...)



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Seção "Mais valem algumas palavras do próprio autor - quando este é fera, claro - do que mil resenhas" - "O apanhador no campo de centeio", de J.D. Salinger (por Diego T. Hahn)



Dando sequência, pois, a nossa canastrônica terceirização literária, aqui selecionamos alguns trechos do clássico (juvenil?) de J. D. Salinger.

Ecco, entre muita reclamação (contra quase tudo) - e geralmente temperada com alguns bons palavrões - , algumas tentativas de diálogos pretensamente "filosóficos" e outros deliberadamente superficiais e até meio sem nexo ("só de bobeira", ou, "só de farra", como diz o cara), e, consequentemente, não menos toscas, algumas discussões (algumas descambando até para algumas porradas), protagonizadas pelo nosso amigo aborrecente Holden Caufield, do tipo "(...) ´Ô Ackley!´. Essa sim ele ouviu. ´Mas o que é que você tem, diabo?´, ele disse. ´Pelamordedeus, eu estava dormindo.´ ´Escuta. Como que faz pra entrar pra um mosteiro?´, eu perguntei. Eu estava meio que pensando na possibilidade. ´Tem que ser católico e tal?´. ´Certamente você tem que ser católico. Seu filho de uma puta, você me acordou só pra fazer uma pergunta patét- ´. ´Ah, vai dormir. Eu nem vou entrar pra um mosteiro mesmo. Com a sorte que eu tenho, eu provavelmente ia entrar num que só ia ter o tipo errado de monge. Tudo uns filhos da puta de uns idiotas. Ou só filhos da puta.´ "... (Que profundidade, não?...), mas, então, em meio a essas perambulações retóricas típicas da juventude meio que pelo meio do nada, eis uma preciosidade como esta que segue, da parte do seu ex-professor, sr. Antolini (copo de scotch numa mão e já meio chumbado):

"(...) Quando você superar todos os srs. Vinson, vai começar a chegar cada vez mais perto - quer dizer, se você quiser, e se for atrás, e esperar - do tipo de informação que vai te ser muito, mas muito cara. Entre outras coisas, você vai descobrir que não é a primeira pessoa da história a ficar confusa e assustada e até a sentir repulsa pelo comportamento humano. Você não está de modo algum sozinho nessa posição, vai ficar empolgado e estimulado ao descobrir. Muitos, mas muitos homens tiveram problemas morais e espirituais tão grandes quanto os que você têm agora. Pra nossa felicidade, alguns deles registraram seus problemas. Você vai aprender com eles - se quiser. Exatamente como algum dia, se você tiver algo a oferecer, alguém vai aprender alguma coisa com você. É uma reciprocidade linda. E não é educação. É história. É poesia."
Há ainda, em meio a muita coisa deveras cômica - como quando, após brigar com uma amiga-namoradinha, ele toma todas e resolve telefonar para ela, que antes da briga havia lhe pedido para podar a árvore dela para o Natal ("Tive que discar uns vinte números antes de acertar. Rapaz, como eu estava cego. (...)´Sei. Quero falaca Sally. Portantíssimo. Passaí pra ela. (...) Acorda ela! Acorda ela aê. Issomês.(...) Escuta só. Eu passo aê na vespra do Natal. Tabom? Podá desgraça darve pra você. Tabom? Tabom, hein, Sally?(...)Eles me acertaram. A gangue daquele mafioso do desenhanimado me acertou. Cê sabia? Sally, cê sabia?´ "), outros trechos mais reflexivos, tal qual aquele em que, no saguão de um cinema, analisa as meninas que por ali passam:

"(...) Tinha coisa de um milhão de meninas sentadas e de pé esperando aparecerem os sujeitos que tinham marcado com elas. Meninas de pernas cruzadas, meninas sem pernas cruzadas, meninas com pernas sensacionais, meninas com pernas asquerosas, meninas que pareciam ser meninas supimpas, meninas que pareciam que iam ser umas vacas se você conhecesse. Era uma paisagem bem bacana, se é que você me entende. De certa forma, era meio deprimente também, porque você ficava pensando o que diabos ia acontecer com todas elas. Quando elas saíssem da escola e da universidade, quer dizer. Você pensava que a maioria ali provavelmente ia casar com uns bocós. Uns caras que vivem falando de quantos quilômetros a droga do carro deles faz por litro. Uns caras que ficam putos e agem que nem criancinha se você ganha deles no golfe, ou até em algum jogo idiota como pingue-pongue. Uns caras que são malvados demais. Uns caras que nunca leem um livro. Uns caras que são chatos demais..."
... ou até mesmo comoventes, como quando começa a falar de um trabalho de escola que um colega havia lhe pedido para fazer e acaba enveredando pela memória do falecido irmão mais novo, Allie:

"(...) O negócio é que eu não conseguia pensar num quarto ou numa casa nem em nada pra descrever como o Stradlater disse que eu tinha que fazerEu nem morro muito de amores por descrever quarto e  casa mesmo. Então o que eu fiz foi que eu escrevi sobre a luva de beisebol do meu irmão Allie. Era um tema bem descritivo. Era mesmo. O meu irmão Allie tinha uma luva canhota de defensor. Ele era canhoto. Só que o negócio que era descritivo ali era que ele escreveu uns poemas nos dedos e na palma e na luva inteira. Com tinta verde. Ele escreveu os poemas pra ter alguma coisa pra ler quando estava no campo e ninguém estava rebatendo. Ele já morreu. Teve leucemia e morreu quando a gente estava lá no Maine, no dia 18 de julho de 1946. Você ia ter gostado dele. Ele era dois anos mais novo que eu, mas umas cinquenta vezes mais inteligente. A inteligência dele era um negócio sensacional. Os professores dele viviam escrevendo cartas pra minha mãe, dizendo que prazer que era ter um menino como o Allie na sala. E não estavam só mandando cascata. Era no duro. Mas não era só que ele fosse o membro mais inteligente da família. Ele também era o mais bacana, em tudo que você possa imaginar. Ele nunca ficava bravo com ninguém. Dizem que os ruivos em teoria ficam bravos bem fácil, mas o Allie nunca ficava, e o cabelo dele era bem vermelho. Eu vou te contar o tipo de cabelo vermelho que ele tinha... 
(...) Era esse tipo de cabelo vermelho que ele tinha. Mas, meu Deus, como ele era bacana. Ele ria tanto de alguma coisa que ele tinha pensado na hora do jantar que praticamente caía da cadeira. Eu estava com treze anos só, e eles iam mandar me psicanalizar e tal, porque eu quebrei todos os vidros da garagem. E eu nem posso reclamar. Não mesmo. Eu dormi na garagem na noite que ele morreu, e quebrei a droga daqueles vidros todos com a mão, só de farra. Até tentei quebrar todas as janelas da perua que a gente tinha naquele verão, mas a essa altura eu já estava com a mão quebrada e coisa e tal, e não consegui. Foi um negócio muito idiota de se fazer, isso eu não vou negar, mas eu mal sabia o que estava fazendo, e você não conheceu o Allie."

Eis, pois, nosso amigo Holden Caufield - uma espécie de projeto de Henry Chinaski adolescente (e, por conseguinte, obviamente com bem menos mulheres e bebidas e tal... mas talvez já igualmente fodido da cabeça).



segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Seção "Mais valem algumas palavras do próprio autor - quando este é fera, claro - do que mil resenhas": "Sapiens - Uma breve história da humanidade", de Yuval Noah Harari (por Diego T. Hahn)


Muita gente com quem conversei nos últimos tempos já andou lendo esta obra - mas, se não leu, e vive neste planeta Terra, você já deve ter ouvido falar dela ou visto em alguma lista de best-sellers (há um bom tempo, por sinal), assim como seus dois "irmãos", "Homo Deus" e "21 lições para o Século 21", também da autoria do israelense Harari.

Seja como for, me atrevo a dizer que todo metido a sabichão, como eu e você, deveria ler este troço (que cobre os primeiros passos bípedes da nossa espécie até chegar aos dias de hoje, passando por revoluções tecnológicas, influência de crenças, religião, dinheiro, entre outras abordagens feitas de uma maneira esclarecedora, de leitura fluida e bastante acessível, até divertida, e sem ser necessariamente superficial) para ser minimamente digno de dar palpite sobre qualquer coisa hoje em dia.

Se você não leu - e é um maldito preguiçoso (ou, pior, burro confesso, que prefere ficar, como livro de cabeceira, com a obra de algum astrólogo fanfarrão ou a biografia de algum "injustiçado" torturador de alguma republiqueta de bananas, ou algo assim) e não pensa em ler as 400 e poucas páginas do produto (porque, claro, tem muita coisa escrita ali, isso é verdade) - vou cometer uma heresia e te fazer um favor, camarada; vou de certa forma resumir a obra, simplesmente reproduzindo aqui seu épico epílogo (lembrando, porém, que se você refuta veementemente a possibilidade do evolucionismo e acredita pia e radicalmente que tudo começou com o chefe lá em cima, entediado, girando um belo dia sua varinha mágica e criando nossos velhos e bons Adão e Eva, talvez possa se desestimular rápido com toda aquela suposta "ficção" ali contida e acabe deixando pra lá - ou, enfim, sendo otimistas, pelo contrário, talvez tenha um motivo extra pra dar uma boa conferida no referido material, para pelo menos considerar uma segunda opinião - , tá ok?...):

"Epílogo - O animal que se tornou um deus

Há 70 mil anos, o Homo Sapiens ainda era um animal insignificante cuidando da sua própria vida em algum canto da África. Nos milênios seguintes, ele se transformou no senhor de todo o planeta e no terror do ecossistema. Hoje, está prestes a se tornar um deus, pronto para adquirir não só a juventude eterna como também as capacidades divinas de criação e destruição.

Infelizmente, até agora o regime dos sapiens sobre a Terra produziu poucas coisas das quais podemos nos orgulhar. Nós dominamos o meio à nossa volta, aumentamos a produção de alimentos, construímos cidades, fundamos impérios e criamos grandes redes de comércio. Mas diminuímos a quantidade de sofrimento no mundo? Repetidas vezes, os aumentos gigantescos na capacidade humana não necessariamente melhoraram o bem-estar dos sapiens como indivíduos e geralmente causaram enorme sofrimento a outros animais.

Nas últimas décadas, pelo menos fizemos algum progresso real no que concerne à condição humana, com a redução da fome, das pragas e das guerras. Mas a situação de outros animais está se deteriorando mais rapidamente do que nunca, e a melhoria no destino da humanidade ainda é muito frágil e recente para que possamos ter certeza dela.

Além disso, apesar das coisas impressionantes de que os humanos são capazes de fazer, nós continuamos sem saber ao certo quais são nossos objetivos e, ao que parece, estamos insatisfeitos como sempre. Avançamos de canoas e galés a navios a vapor e naves espaciais - mas ninguém sabe para onde estamos indo. Somos mais poderosos do que nunca, mas temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder. O que é ainda pior, os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses por mérito próprio, contando apenas com as leis da física para nos fazer companhia, não prestamos contas a ninguém. Em consequência, estamos destruindo os outros animais e o ecossistema à nossa volta, visando a não muito mais do que nosso próprio conforto e divertimento, mas jamais encontrando satisfação.

Existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?"


terça-feira, 31 de dezembro de 2019

(Ainda - mas nunca o bastante) sobre mestres, despedidas e homenagens (por Diego T. Hahn)


Bem, como houve um período, alguns anos atrás, aqui no blog em que entramos numas meio "fúnebres", com uma sequência de postagens que fazia o mesmo parecer mais um obituário do que um espaço propriamente literário (embora com uma sensação de que eram "necessárias" e justas as homenagens feitas então - e, no fim das contas, em última instância, a "culpa" era mesmo da vida... ou, mais coerentemente, do seu oposto), havíamos dado um tempo nessas...

Mas, desde o final do ano passado, ainda que tenha resistido à época (com o pensamento meio vago de "não banalizar" a questão e fazer tão somente uma homenagem "silenciosa", em pensamento), me dou conta agora, passado quase exatamente um ano, que meu pretenso "eu escritor" estava ainda, lá no fundo, com essa dívida com um Mestre (e que, ainda que ninguém leia ou nada signifique para mais ninguém, esse gesto sempre vale quando é "de coração", como se diz - e talvez assim, de alguma forma, isso chegue mesmo ao próprio homenageado, em alguma dimensão especial desse universão velho sem porteira). E captei isso esses dias quando, coincidentemente, ao folhear um livro de crônicas de coletivo de autores santa-marienses de alguns anos atrás ("Tudo haver", de autoria do Athos Miralha da Cunha, do Orlando Fonseca, do Pedro Brum Santos e do Humberto Gabbi Zanatta) leio lá, em uma crônica do último: "Padre Otávio Ferrari nunca vai ler estas linhas. Ao menos neste mundo (...) Ele já nos deixou há alguns meses na sua natal Nova Palma"...

Ah, os sinais (pra quem gosta de acreditar - ou da ideia de acreditar - nos sinais)...

Então, parafraseando-o, Mestre Zanatta também nunca vai ler estas linhas - ao menos não neste mundo - , mas segue uma singela (e creio que necessária) homenagem a ele, que nos deixou, como dito antes, há quase exato um ano, em um relato do nosso contato nos últimos anos.

Contato que começou com um convite para a "patronagem" da nossa 1ª Feira do Livro de Nova Palma, que deveria ser realizada em 2015... fomos eu, então assessor de Cultura do município, e a Secretária de Educação à época, Neusa, à casa do compositor de "Tropa de Osso" - e, mais especialmente para nós, do Hino de Nova Palma - fazer o convite pessoalmente, ao que fui surpreendido já na recepção com o reconhecimento por parte dele (até então nunca havíamos conversado diretamente, além de ao telefone para marcar essa visita), que disse, brincando, "sim, tu me substituíste no livro dos colorados lá"... (ele se referia à terceira parte de uma trilogia de contos e crônicas com o tema Inter escritos por autores santa-marienses e à qual eu participei com três textos - Zanatta havia participado da segunda parte alguns anos antes) - correndo o risco da "heresia", pois, mas não perdendo a piada, respondi: "É, e, olha, mesmo saindo o camisa 10, o substituto conseguiu cumprir a missão e a equipe manteve o nível, hein!" (Acho que ganhei a simpatia dele, que sorriu de canto de boca, especialmente por essa "molecagem"...).

A famigerada feira não saiu naquele ano, mas no ano seguinte lá estava Zanatta na Câmara de Vereadores de Nova Palma, homenageando o município no mês de aniversário do mesmo ao presenteá-lo com um belo videoclipe do hino municipal (cujo autor da letra é ele mesmo, composto em 2010 em parceria com Evandro Zamberlan, autor da música). E encantou a todos os presentes o "Zanattinha", ao discursar falando sobre a história de Nova Palma e sua gente (e mostrando, surpreendentemente, tanto ou mais conhecimento de ambos do que grande parte da própria gente do município)...

Como o hino municipal foi o tema do concurso fotográfico de 2017, durante a premiação do certame lá estava novamente Zanatta na Câmara de Nova Palma no julho seguinte, desta vez mais sendo homenageado do que homenageando - mas novamente dando seu show de oratória e carisma, para deleite da plateia.

Brincávamos com ele, "pô, tu de novo por aqui, Zanatta!?", pois três meses depois, outubro de 2017, finalmente aconteceu a 1ª Feira do Livro de Nova Palma (da qual ele já era patrono há uns dois anos...)... "Mestre Zanatta", como eu o chamava, abriu a feira emblematicamente percorrendo o salão paroquial e tocando sineta, lançou um livro (produzido, em parceria com outro mestre, o Byrata, em tempo recorde especialmente para o evento) intitulado "Palmas para Nova Palma", prestigiou os dois dias de feira, da manhã à noite, e ao final da mesma, entregou uma palmeira-real para a Secretária de Educação de então, Inês, e para a equipe organizadora do evento como presente-símbolo (em referência ao nome do município).
A sua ideia era ainda em 2018 trabalhar o livro que homenageava Nova Palma junto às escolas do município, mas, como se diz, "fomos nos enrolando" com outros afazeres, e Zanatta acabou adoecendo pelo meio do ano - em outubro, ao contatá-lo ao telefone, ele, já em delicado repouso em casa após uma temporada no hospital (e dois meses antes de seu falecimento), me falava ainda sobre seu desejo de começar, talvez no mês seguinte, a atividade pela escola da comunidade de origem quilombola do Rincão Santo Inácio...

Não deu...

Mas, ainda antes disso, mais uma vez, Zanatta "deu um jeito" de estar entre nós em Nova Palma, ainda que indiretamente, em 2018 - com menção no protocolo do evento que abria em julho o aniversário do município com o desejo de melhoras (e, infelizmente, posteriormente, em dezembro, com a declaração por parte do Prefeito André do luto oficial de 3 dias...).

Como não poderia deixar de ser, com essa ligação quase "astral" com a cidade, Zanatta obviamente não poderia deixar de estar com a gente na 2ª Feira do Livro, realizada neste 2019, quando sua família recebeu como homenagem a sineta com a qual ele abriu simbolicamente a 1ª edição da feira dois anos antes e com a interpretação pelos músicos nativistas e velhos parceiros seus, Antônio Gringo, Evandro Zamberlan e Sérgio Rosa, de algumas de suas composições, como "Não podemo se entregá pros home" e "América Latina", além da já citada "Tropa de Osso", e, claro, do Hino Municipal de Nova Palma.

Enfim. Já faz um ano que faz uma falta danada por essa parceria, mas, em termos mais amplos, que falta ainda mais brutal faz um assim em tempos de burrificação em massa e atentados sistemáticos (e, o mais incrível, apoio a esses atentados!) contra a educação, a cultura e o humanismo. Nós, soldados, resistimos, vamos avante - mas meio "órfãos", pois que falta faz um general como o Zanattinha nessa batalha!...

Mas, ao mesmo tempo, olhando, e me valendo do clichê (pois não, brincadeiras à parte, cada um tem o seu lugar, mas ninguém substitui à altura os verdadeiros mestres - aqueles que fogem exatamente dos clichês) da metade cheia do copo, foi pouco mas precioso tempo, no qual tivemos ao menos a sorte de conhecer um pouco melhor essa grande figura e dividir algumas boas histórias e lições, que ficarão na memória e ajudarão sempre a lembrar de continuar lutando a boa luta, na esperança de que "talvez um dia não existam aramados/ nem cancelas nos limites das fronteiras...".
Ah, e, como se não bastasse por aqui o emocionante hino, cada vez que ressoa, a nos lembrá-lo, também a sua/nossa palmeira-rei cresce firme e forte em frente à Prefeitura Municipal, mais um símbolo vivo para não nos deixar esquecer - e até fazer sorrir, pelas histórias que vão adiante.

Obrigado (ainda que em atraso), Mestre - e um bom ano novo a todos!


sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Tradicional reprise de fim de ano: "Papai Noel não existe" (por Diego T. Hahn)


(Misturando a tradicional preguiça de fim de ano, ritmo já meio de férias, e, bem, a temática pertinente - a propósito, tirem as crianças da sala (ao menos, aquelas alfabetizadas e ainda "crentes"...)! - , vamos encerrar 2019 aqui no De Letra com uma re-re-reprise; como de costume, no entanto, com pontuais novas edições (com um cópia e cola, também novamente editado, até desta introdução - mas, enfim, duvido que algum dos 4 leitores do blog lembre mesmo do ano passado) - texto que, não custa nem um pouco re-re-re-reprisar também, foi selecionado no ano de 2013 para a coletânea dos melhores do Prêmio Sesc de Crônicas "Rubem Braga", de Brasília/DF - obrigado, obrigado!... E Feliz Natal - atrasado - e tudo o mais!)

Não lembro bem do exato momento em que esse fato se deu - o que me parece estranho, já que é de certa forma um "divisor de águas" (entre aspas, pois um dos daqueles chavões rechaçados pelos grandes literatos - e esta observação entre parênteses para já imediatamente pedir a absolvição aos mesmos, ou ao menos um indulto de Natal): agora você é um mocinho, não é mais tão ingênuo, não acredita mais em tudo que te dizem, sabe que há muito mais coisas por trás das coisas por trás de todas as coisas, e às vezes as pessoas só querem te iludir e...

Bem, enfim, você entendeu: é um "momento-chave" (consideremos que recebi o indulto...). Pois, como dizia, não lembro bem do exato momento em que descobri – ou me contaram – que o bom velhinho não existe, ao menos não aquele bom velhinho, que bom velhinho de verdade mesmo é o vovô e ele não dirige um trenó voador e sim um Monza 87 e tem como animal de estimação um protocolar cãozinho e não um bando de renas. Não lembro, aliás, se descobri por conta própria ou se alguém me contou, mas não creio que tenha restado algum trauma da revelação; ao menos não tenho registrado conscientemente na memória algum "choque" decorrente de tal descoberta...

Penso nisso, no entanto, agora, ao sentir essa melancolia, essa nostalgia, essa tristeza misturada com alegria inundar meu peito, ao flagrar o palhaço, ainda todo maquiado, fora do picadeiro, fumando um cigarro e esbravejando algum palavrão em protesto contra alguma coisa que o incomoda ou contra as agruras da vida em geral, com um tom de voz e uma carranca totalmente diversos daqueles impostados naqueles mágicos momentos de alguns instantes atrás no decorrer do show.

Esse palhaço fora do picadeiro é a vida crua e real. Ele é a revelação que Papai Noel não existe mais uma vez sendo jogada na minha cara, depois de tantos anos.

Não só ele, na verdade, como qualquer artista em geral, quando o vemos “do lado de fora”, falando de qualquer futilidade do cotidiano, como a gente, nos dá uma certa sensação de “pertencimento” ao mundo, uma sensação de que a nossa vida não tem nada de excepcionalmente banal – ela é banal como todas as outras, mesmo aquelas das estrelas – e ao mesmo tempo de desilusão.

Pois sim. No fim das contas, é isso: vivemos de ilusão.

É como ver o ídolo do nosso time indo embora depois de anos de clube e jogando no rival, beijando a camisa adversária como um dia beijou a nossa; é como ver os erros de gravação de um filme; é como perceber que talvez não haja nada além dos erros de gravação.

Mas ainda assim vivemos e continuamos nos alimentando de ilusão. Por mais racionais e duros que sejamos, invocamos vez em quando nos nossos íntimos aquele resquício de magia que tem um quê de infantilidade – ou vice-versa – lá no fundo do peito. Apesar de termos certeza de que tudo isso aqui se resume tão somente a células, carne e barro vagando a esmo pelo espaço, olhamos da janela para o céu estrelado na calada da noite e nos permitimos viajar longe por alguns instantes, solitariamente, em segredo, sem que ninguém mais saiba, naquela nossa nave particular, buscando por um algo mais lá nos confins do universo – ou mesmo em alguma outra dimensão só nossa.

E assim, quando voltamos, por mais desgastados, ranzinzas e céticos que sigamos, continuamos rindo do palhaço – e, de vez em quando, nos flagramos até mesmo dando uma olhada meio de relance, como quem não quer nada, para a chaminé em meio à ceia de Natal.


terça-feira, 12 de novembro de 2019

Seção "Mais valem algumas palavras do próprio autor - quando este é fera, claro - do que mil resenhas": "Pergunte ao Pó", de John Fante (por Diego T. Hahn)


"(...) alguma perturbação da paz, algo vago e inominável infiltrando-se em minha mente. (...) Procurei, senti os dedos da mente tateando, mas não chegando a tocar no que estava lá me aborrecendo..."

"(...) Aquilo requeria alguma meditação. (...) Isto é mau, Arturo. Você leu Nietzsche, você leu Voltaire, deveria saber. Mas o raciocínio não ajudava. Eu podia me livrar daquilo por meio do raciocínio, mas não era o meu sangue. Era o meu sangue que me mantinha vivo, era o meu sangue que corria por meu corpo, dizendo-me que aquilo era errado. Fiquei sentado ali e entreguei-me ao meu sangue, deixei que me levasse nadando até o mar profundo dos meus primórdios."

"(...) Eu estava errado. Cometera um pecado mortal. Podia equacioná-lo matemática,
filosófica, psicologicamente: podia prová-lo por uma dúzia de maneiras, mas estava
errado, pois não havia como negar o ritmo quente e compassado da minha culpa."


quinta-feira, 19 de setembro de 2019

2ª Feira do Livro de Nova Palma acontece nos dias 24 e 25 de setembro


Na terça e na quarta-feira da próxima semana (24 e 25 de setembro) acontece a segunda edição da Feira do Livro de Nova Palma/RS.
Desenho feito pelo artista Marcel Jacques na ocasião da 1ª Feira do Livro de Nova Palma

Após a edição de 2017, realizada no Salão Paroquial do município, o evento, bianual, acontecerá este ano no Clube Guarani e tem como Patrono o autor Carlos Alberto Bellinaso, membro da Academia Santa-Mariense de Letras, e como Autor Homenageado o nova-palmense José Carlos Buzanello, Mestre e Doutor em Direito, com diversas obras ligadas à área publicada.
Contando com duas bancas de livreiros, na programação há bate-papo com autores regionais voltados para diferentes faixas etárias, oficinas de origami e de produção de haicais, apresentações artísticas das escolas do município baseadas em obras literárias, além de apresentações do grupo de capoeira e da Oficina de Artes Circenses (duas atividades que vêm sendo desenvolvidas ao longo dos últimos meses com alunos das escolas nova-palmenses), apresentação teatral do Projeto "Despertando a Formação Inteligente por meio da Leitura", e exibição do documentário "80 anos do Superman", produzido pelo santa-mariense Luiz Abel de Oliveira, proprietário de loja de revistas em quadrinhos, que conversa ainda com o público sobre a produção do filme e sobre histórias em quadrinho em geral.
Na noite de terça-feira, acontecerá ainda uma homenagem ao Patrono da primeira edição da Feira, Humberto Gabbi Zanatta, falecido no final de 2018, contando com familiares do autor, que terá também composições suas (como "Tropa de Osso", "América Latina", "Cria enjeitada" e o Hino de Nova Palma) interpretadas pelos músicos nativistas Antônio Gringo e Evandro Zamberlan.

Programação completa e mais informações sobre a Feira do Livro de Nova Palma podem ser obtidas no site da Prefeitura Municipal (http://www.novapalma.rs.gov.br/) e na página do facebook da mesma (https://www.facebook.com/prefeituranovapalma ).

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Diogo Khan, o vegano - conclusão


(Pois continuando então... se não leu o texto anterior, por favor, leia, para pegar o contexto - que não quero levar patadas à toa, tá ok?) 

Veja bem, amigo leitor, que, nessa análise, D.K. nem incluiu no questionário outras questões que começaram a vir-lhe também à cabeça, intrigando-o cada vez um pouco mais a respeito do suposto messianismo do atual líder da nação, como, por exemplo, projetos de abrandamento das punições ao trabalho escravo (Chupa, Isabel!), 
de defesa de mais mineração e agropecuária em terras indígenas (um alô de qualquer maneira mais uma vez aqui para quem se emocionou com "Dança com Lobos" e "A Missão", talkey?), 

da negação da existência da fome no Brasil (Betinho, seu COMUNISTA mentiroso!...), da extinção de áreas de preservação e do aumento exponencial do desmatamento no país (malditos VEGANOS!), da extinção de multa para quem não usa cadeirinha para crianças no carro ("no meu tempo" criança não usava cadeirinha e tá todo mundo aí, vivo e forte! - a não ser, claro, os que tiveram o azar de sofrer um acidente e voar pela janela... mas aí, bom, é muito azar, né?) e do aumento na pontuação máxima na carteira de motorista (ah, pra mim que tenho grana, o que me interessa a multa? Posso pagar várias dessas! O problema são os pontos, com essa maldita INDÚSTRIA DA MULTA COMUNISTA, que acaba me limitando, não me permitindo tocar a 140 - azar de quem não pode pagar as multas e tem que dirigir feito tartaruga... bando de pobretões!), 
"Bala pra criançada! Êbaaaa!!"

do aumento de número de munições a ser vendidas individualmente por ano, de 50 para 5 mil (ah, claro que "algumas" vão se desviar e cair nas mãos do tráfico e dos milicianos... mas, isso já acontece mesmo, né? E vão ser só "algumas" a mais... e além do mais, não é uma questão de segurança, e sim de liberdade, entende? - O quê? Não??), do desejo de ministro do STF "terrivelmente evangélico" (claro, boa também - estado laico é coisa de COMUNISTA e ATEU! Vamos trocar a Constituição pela Bíblia de uma vez!!... - sim, tem lá também o capítulo "Apocalipse", e daí?... o que você quer dizer com isso?), 
das observações (talvez confiando demasiadamente no efeito inverso de memes engraçadinhos de redes sociais e quadros de programas de humor duvidoso dos quais herdou o "mítico" apelido e o ajudaram a se eleger) beirando (ou transbordando?) certo preconceito com o povo nordestino (chamando-o de "paraíbas" - bem, talvez seja isso o livrar-se do "politicamente correto"... aí está, ok -  mais uma promessa sendo cumprida então), das confissões (confiando talvez demasiadamente também no apoio irrestrito de seus seguidores - os quais convenceu com discurso de nova política e boa fé, e aos poucos vai convencendo a defendê-lo e relativizar suas ações mesmo quando age de modo aparentemente contrário) de intenções de nepotismo ("Por que vou negar um filé mignon pra um filho?...", sobre a indicação de um dos pimpolhos para a árdua missão de assumir a embaixada brazuca na terra do Tio Sam)...
Enfim, não, D.K. não queria entrar nessas curiosas questões, queria simplesmente um parecer sobre as declarações do A.S.N.O. de cunho aparentemente contraditório em termos de humanismo.

As respostas? Em geral todas eram meio parecidas (tergiversando a respeito da concordância com tais pronunciamentos): "Ah, ele tava só brincaaando!..." (Opa! Que bom: era tudo uma grande "stand-up comedy"... glu glu, nhé nhé! Vamos refazer as eleições!...), ou "ah, ele não quis dizer isso..." (???), ou "ah, distorcem completamente as sábias palavras de plena tolerância e amor dele! Maldita língua portuguesa COMUNISTA!!", ou, ignorando uma das solicitações feitas antes das "entrevistas", de se ater estrita e racionalmente ao conteúdo, "ah, por que tu não vai fazer um questionário sobre o Lula, que tá preso, D.K., seu COMUNISTA!?" (nessa hora, de qualquer forma, D.K. se adianta dizendo que não, não quer ir pra Venezuela nem pra Coreia do Norte, que lá deve ser mesmo terrível!... D.K. quer ir pros states - não sabe fritar hamburguer, mas sabe fazer um belo miojo e cozinhar ovo... porém, infelizmente, além da limitação culinária, lhe falta também no currículo o pré-requisito mais básico para o cargo, "filho do presidente", é verdade, que lapso!).
Mas, voltando à sua pesquisa, D.K. analisou essas respostas, e pensou: bem, são supostamente pessoas "de bem"... Estudadas. Algumas têm não só curso superior, mas mesmo mestrado, doutorado etc... algumas são, além de tudo, fervorosas religiosas - a maioria, cristãos convictos (isto é, em teoria seguem a doutrina de bondade e humanismo do velho J.C. ...). Emocionam-se, sim, quando assistidas em filmes, com questões humanistas (como com a covardia contra minorias, como negros e índios) e de defesa de animais e da natureza em geral (seriam também todos eles veganos, no fim das contas?)... D.K. continuava confuso...

Então, mesmo considerando a possibilidade de que eles relevem um pouco em prol de um suposto projeto de melhora financeira e (mais suposto ainda) combate à corrupção, ainda assim, como aceitar tais declarações como "normais" (por parte de qualquer ser humano - e, óbvio, mais ainda, por parte de um cristão fervoroso, e mais ainda, de um cristão fervoroso e, simplesmente, PRESIDENTE DA REPÚBLICA)? - afinal, onde está a falha, onde está o bug no sistema, MEUDEUSDOCÉU??... Como D.K. não consegue compreender, chegar no nível, quase religioso mesmo, de adoração - e submissão - deles?...
D.K. persistiu, prosseguiu na sua análise: até entendeu a eleição do A.S.N.O. por todo o contexto daquele momento (apesar de detectar também ali, disfarçado em meio à justa indignação contra a corrupção, um extravasar de um ancestral preconceito por parte da classe média-alta), mas, em questão de alguns minutos - bastando LER e manter a CABEÇA ABERTA - começou a mudar sua ideia a respeito do iluminismo do mestre supremo, e, ele, D.K., que estudou para se qualificar e ser alguém melhor (em todos os sentidos) e entender melhor as coisas e ajudar de alguma forma o mundo e as pessoas, especialmente (ainda que não tenha pretensões de heroísmo, mas simplesmente de humanismo - é, ei-lo de novo!, é um bombardeio, sim, mas D.K. acredita que é um bombardeio necessário e que nunca será demais) as mais necessitadas e indefesas, sempre que possível (e querendo o mesmo para sua filha - e para os filhos dos outros, portanto não compactuando, por exemplo, também com a bizarra ideia da relativização do trabalho infantil), passou a se entristecer (no sentido mais literal da palavra) com a defesa incondicional de ideias e personalidades que atentam contra os direitos mais básicos das pessoas e com a revelação de que talvez, no fundo, todos nós, primos dos macacos (a não ser para os criacionistas, claro - estes, primos dos terraplanistas), sejamos infelizmente meio assim: o que importa é uma casa pra morar, um trabalho pra trabalhar e comida pra comer e que se dane o resto - e o resto é só ilusão.
D.K. conclui, tentando ainda buscar alguma lição, algum fundamento, no meio desse apocalipse humanístico (que é também uma espécie de apocalipse zumbi como nos filmes, transformando boa parte da população em mortos-vivos, dizimando cérebros), que de alguma forma, talvez, pelo contrário, para purgar exatamente aos poucos certas ideias que sempre bailaram no fundo (ou não tão fundo assim) da mente de nosso povo supostamente "cordial" e fazer certas pessoas rever suas certezas - e talvez, ao mesmo tempo mais ceticamente, todos nós acabarmos mesmo com certas ilusões, de um lado e de outro - , infelizmente tivéssemos mesmo que passar por tudo isso...
                              "É claro; eu LEIO, camarada! Mas sinto muito - o meu você não vai ganhar..."

No fim das contas, e voltando ao ponto de partida - pois essa vida é feita de ciclos, e, seja como for, de um modo ou de outro, tudo passa (D.K. vê um resquício de otimismo aparecer, ao lembrar que outras pessoas também percebem e se chocam com o absurdo show de horrores que vem se desenrolando ao redor), tudo realmente passará (caramba, TEM que passar!!) - , apesar de percebendo (rapidamente) que o líder máximo não é realmente nenhuma mente muito avançada, D.K. ao menos percebeu também uma coisa em comum entre eles dois, talvez a única - o novo messias TAMBÉM é vegano: 

Sim, pois tudo indica que a sua dieta é composta basicamente de um delicioso pasto.



segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Diogo Khan, o vegano

Pois é; Diogo Khan - aquele meu amigo, sabe? -  recentemente fez essa descoberta: apesar de curtir um bom churrasco, um bom bifezinho - de preferência mal-passado, sangraaanndo mesmo (claro, como bom VERMELHO que é!) - não é que o cara esses dias se descobriu... VEGANO??...
Mas, claro, Diogo Khan não descobriu sozinho isso sobre si mesmo; não, ele não teria condições cognitivas para tanto... ele foi levado a esse auto-conhecimento graças à sabedoria, à iluminação, ao poder supremo e clarividente, de um ser superior: nosso infalível e mítico presidente da república, o qual Diogo Khan dia desses viu explicando didaticamente que "só quem se importa com a questão do Meio Ambiente são os veganos, que comem vegetais"...

Caramba, mas é claro; como Diogo Khan ainda não havia se dado conta disso??

Diogo Khan é mesmo um burro, um jumento, não tem a inteligência suprema de nosso líder; Diogo Khan acredita em aquecimento global, em vacinas, em terra redonda girando ao redor do sol e outros absurdos do gênero... enfim, Diogo Khan, se importa também com a questão do Meio Ambiente. Vegano. Diogo Khan COMUNISTA e VEGANO.
Seja como for, dia desses, um pensamento leva a outro pensamento que leva a outro pensamento, e, enquanto comia, como bom vegano, um bifezinho à parmegiana, Diogo Khan ficou pensando em seus amigos e familiares que seguem de maneira inconteste o líder máximo da nação, o abençoado pela inteligência superior que graças a sua iluminação divina lhe esclareceu a respeito do seu veganismo, e não conseguiu, no entanto, compreender algumas outras "questõezinhas", levando em conta a clara preocupação sempre demonstrada por esses conhecidos com questões de cunho humanista e de respeito ao próximo (muitos deles cristãos atuantes) e aos animais e à natureza como um todo, que destoavam, porém (talvez se pudesse dizer que eram mesmo diametralmente opostas?) de certas manifestações (de caráter um tanto quanto duvidoso?) do ilibado gênio ao qual hoje dirigem suas energias, preces e louvações... D.K. (abreviatura de Diogo Khan a partir de agora - para facilitar) começou a lembrar, e então logo elencar tantas outras declarações do A.S.N.O. (abreviatura de Abençoado Supremo, Nosso Oráculo, como ele começou a chamá-lo - para ser mais preciso) e estas não lhe traziam a iluminação que aquela sobre o veganismo havia trazido. Mas por quê? POR QUE com ele não acontece essa iluminação que com a maioria ao seu redor acontece?? (Além, claro, do fato de ele ser COMUNISTA... e vegano) Ele queria tanto ter também um ídolo do gênero, infalível, e que o tocasse forte no coração, transmitindo toda sua sabedoria e que o inspirasse com suas frases de incentivo que nos levam a um novo patamar na história da humanidade!!
Mas não adiantava... D.K. olhava para aquelas declarações e não compreendia (é, D.K. é meio limitado mesmo - precisa ler e refletir bastante, a respeito de tudo, antes de afirmar suas posições categoricamente... cara chato, não?)...

Seja como for, D.K. prosseguiu então com seu experimento - resolveu pois elencá-las, as tais afirmações, por escrito, e entrevistar esses seus chegados (com duas perguntas, simplesmente, a respeito de cada uma: "O que você acha dessa declaração?" e "Isso representa o que você pensa (das coisas, das pessoas, do mundo), isto é, você CONCORDA com tal afirmação?", rogando aos entrevistados que por gentileza deixassem de lado contextos políticos e se ativessem ao simples e direto conteúdo das duas questões, sem usar subterfúgios, tergiversando por terrenos periféricos e clicheísticos como "ameaça comunista" ou citando alguma espécime de molusco, que estaria enclausurado em algum OUTRO experimento, pelo sul do país... - sim, todos bem sabemos disso, mas não tem relação com a questão proposta aqui, ok? Foco... Foco!) para entender como eles haviam sido iluminados por aquelas sábias e benevolentes palavras, as quais costumavam chancelar com sua defesa intransigente diante de qualquer questionamento (e com as quais D.K. supunha que eles considerariam iluminar por consequência, através do exemplo, as novas gerações - seus filhos, e, enfim, as crianças como um todo... D.K., curioso como sempre - com sua mania absurda de pensar, de imaginar possibilidades - ao vislumbrar isso, já cogita imediatamente um novo experimento, no qual estudaria como, em pleno 2019, seria passada essa nova filosofia em termos humanistas  para as crianças... mas isso fica para outra hora - ou, bem, esperamos que não - , vamos por partes).
Ei-las, pois, algumas (esclarecendo que D.K. fez uma espécie de seleção, um top 8, por questões de espaço) pérolas de sabedoria, em termos humanitários, do atual líder da nação (a propósito de iluminismo e novas gerações, uma advertência: não queremos ser preconceituosos aqui, mas, só por precaução, por ora, tirem as crianças da sala, talkey?):

"Quilombolas não servem nem para procriar..." (Bem, o A.S.N.O., homem muito atento aos critérios científicos e aos números, certamente deve ter dados a respeito - já D.K. admite que não, não tem... então vamos respeitar o método racional do homem, certo? Ele tem experiência de 30 anos de vida pública - pode admitir não saber nada de economia e de leis (ninguém pode saber tudo, né?), mas certamente deve saber algo de "biologia étnica". Passemos à questão seguinte, desmembramento desta primeira)
                                        "E aí; vai procriar ou não?... Tem que procriar, tá ok?"

"Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada." (Respeitando ainda toda a sociologia do A.S.N.O. e grande parte de seus seguidores, que costumam reproduzir tal afirmação, esta D.K. teve que humildemente contestar: no município onde trabalha há uma comunidade quilombola - e, embora como em qualquer situação haja os que trabalham e os que não trabalham (como, por exemplo, na própria Câmara dos Deputados - há parlamentares que passam décadas e décadas sem apresentar nada de útil à sociedade, e mesmo sem aprender sobre questões básicas concernentes ao cargo... e consumindo beeeem mais do dinheiro público do que os duzentos ou trezentos reais do auxílio que eventuais quilombolas desocupados consomem), D.K. confirma que naquela comunidade muitos dos homens trabalham, sim, e bastante, em geral nas lavouras da região; e muitas de suas mulheres também, em geral como empregadas domésticas - mas também em outros afazeres, como numa agroindústria local...)

"Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo" (Bem, D.K. ainda não tem condição de afirmar se sua filha será gay ou não, mas afirma desde já que não preferiria ela morta em um acidente - de qualquer maneira, gostaria de passar a palavra para pais que perderam filhos assim para saber a opinião deles...)
"Se um casal homossexual vier morar do meu lado, isso vai desvalorizar a minha casa! Se eles andarem de mão dada e derem beijinho, desvaloriza". (D.K. mais uma vez admite sua ignorância - desta vez sobre o mercado de imóveis relacionado à sexualidade da vizinhança - , mas promete contatar alguns amigos corretores para verificar a afirmação do J.U.M.E.N.T.O....ôps, digo, do A.S.N.O.) 

"...haitianos, senegaleses, bolivianos e tudo que é escória do mundo que, agora, está chegando os sírios também. A escória do mundo está chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problema demais para resolver" (Ôpa, um salve aí para quem chorou por aquela imagem do menininho sírio, imigrante, morto afogado em uma praia quando chegava na Turquia, talkey!?...)
"Em memória do (torturador) Brilhante Ustra..." (Bem, D.K. não vai dar uma de hipócrita aqui: confessa ser fã também do filme "O Albergue", por exemplo... e quem nunca, certo? - só talvez ter um livro do Ustra de cabeceira seja meio que demais... quem sabe alguma coisa do Orwell - 1984?... - , ou simplesmente de História, também, presidente?...)
Sobre o massacre de cerca de 60 detentos no Pará: "Pergunta para as vítimas dos que morreram lá o que eles acham... depois vem perguntar pra mim" (Claro, por que perguntar a opinião do presidente numa bobagem dessas, né? Deixa que as facções mais fortes eliminem as mais fracas, e os ladrões de galinha no meio disso, e se fortaleçam cada vez mais - assim pelo menos haverá somente uma forte organização e não um meio difuso, tá entendendo?... crime organizado? Aaahh... bobagem, né!?... E banalização do crime de homicídio, que extravasa para fora das cadeias? Ah, mais "bobagem sociológica"...  Bandido bom é bandido morto, e ponto final - tá com peninha, leva pra casa!!)

E, claro, a cereja no bolo: "Se o presidente da OAB quiser saber como o pai dele morreu, um dia eu conto pra ele..." (Bem, essa não precisa comentário, certo?... - aliás, melhor guardá-la para um outro texto aí, que fala de um estudo que está sendo realizado pelo D.K. sobre falta de empatia/psicopatia em cargos públicos importantes).
Enquanto mastigava seu bife à parmegiana, D.K., o vegano, ao reler tudo isso acima, ficou  ainda mais intrigado pensando a respeito e analisando as reações dos entrevistados e suas respostas...

(Continua - é, mesmo considerando que provavelmente já estamos desatualizados com essa lista, de qualquer forma, dolorosamente, continua...)


segunda-feira, 3 de junho de 2019

Seção "Mais valem algumas palavras do próprio autor - quando este é fera, claro - do que mil resenhas": "Na pior em Paris e em Londres", de George Orwell (por Diego T. Hahn) - Parte 2


Seguindo com o nosso engodinho (mas, veja bem, um de catega, ok?...) aqui no De Letra, separamos mais um trecho da referida obra do referido autor do título desta nossa nova e fantástica (pois, quer coisa melhor nesta vida de escritor do que colocar caras como George Orwell a escrever pra mim? - caramba, não sei como eu não tinha pensado nisso antes!) seção do blog - este trecho, no caso, que trata de um dos raros momentos de diversão na vida de Orwell naqueles tempos de penúria da juventude, vai também, transposto aqui, de bônus como uma espécie de "tributo" particular do blogueiro bodegueiro a velhas noitadas com velhos camaradas nos velhos tempos da juventude (bem, na verdade, nem tão velhos para alguns que ainda resistimos bravamente...), com algumas das nuances e dos marcantes e nostálgicos/divertidos "ciclos" pelos quais se passa(va) ao longo de algumas dessas aventuras noturnas (pois, guardadas todas as devidas proporções, contextos históricos e situações sócio-econômicas, no fim das contas às vezes a noite é sempre a velha noite, com todos seus clássicos personagens, e eternos comédias e dramas...):


Com trinta francos por semana para gastar em bebida, eu podia participar da vida social do bairro. Tínhamos algumas noites animadas, aos sábados, no pequeno bistrô do térreo do Hôtel des Trois Moineaux.

O salão de piso de tijolo, de uns cinco metros quadrados, estava apinhado, com vinte pessoas e um ar turvo de fumaça. O barulho era ensurdecedor, pois todos ou falavam aos gritos ou cantavam. Às vezes, era apenas um vozerio confuso; outras vezes, todos
irrompiam a cantar a mesma canção — a “Marselhesa”, a “Internacional” ou “Madelon”, ou “Les fraises et les framboises”. Azaya, uma jovem camponesa robusta e pesada, que trabalhava catorze horas por dia numa fábrica de vidros, cantava uma canção sobre “Elle a perdu son pantalon, tout en dansant le Charleston”.

 Sua amiga Marinette, uma garota magra e morena da Córsega, de uma virtude obstinada, amarrava os joelhos juntos e dançava a danse du ventre. O casal Rougier entrava e saía, filando drinques e
tentando contar uma longa e complicada história sobre alguém que certa vez os havia enganado sobre uma armação de cama. R., cadavérico e silencioso, estava sentado em seu canto,  embebedando-se quieto. 

Charlie, bêbado, meio que dançava e cambaleava com um copo de absinto falsificado em uma das mãos gordas, beliscando os seios das mulheres e declamando poesia. Havia gente jogando dardos e dados por bebida. O espanhol Manuel arrastava as garotas até o bar e esfregava o copo de dados na barriga delas para ter sorte. 

Madame F. ficava no bar e enchia rapidamente chopines de vinho
pelo funil de peltre, com um pano de prato úmido sempre à mão, porque todos os homens do salão tentavam arrastar a asa para ela. Duas crianças, filhas bastardas do pedreiro Louis, ficavam sentadas no canto bebendo juntas um copo de sirop. Todos estavam muito felizes, cheios da certeza de que o mundo era um bom lugar, e nós, um grupo notável de pessoas.

Durante uma hora, o barulho dificilmente diminuía. Então, por volta da meia-noite, ouvia-se um grito penetrante de “Citoyens!”, e o som de uma cadeira que caía. Um operário loiro, de faces vermelhas, erguera-se e batia com uma garrafa na mesa. Todos
paravam de cantar e a notícia corria pelo bistrô: “Sshh! Fureux está começando!”. 

Fureux era uma criatura estranha, um canteiro limusino que trabalhava sem parar durante toda a semana e caía numa espécie de paroxismo bêbado aos sábados. Havia perdido a memória e não conseguia se lembrar de nada anterior à guerra, e a bebida o teria destruído se Madame F. não tivesse cuidado dele. Nas tardes de sábado, por volta das cinco horas, ela dizia para alguém: “Ache Fureux antes que ele gaste seu salário”, e depois que o capturavam ela pegava o dinheiro dele, deixando o suficiente apenas para
uma boa bebedeira. Uma vez, ele escapou e, andando cego de bebida pela Place Monge, foi atropelado por um carro, ficando seriamente ferido.

A coisa esquisita em relação a Fureux era que, embora fosse comunista quando sóbrio, ficava violentamente patriota quando bêbado. Começava a noite com bons princípios comunistas, mas depois de quatro ou cinco litros se tornava um chauvinista feroz,
denunciava espiões, desafiava os estrangeiros para a briga e, se não o impedissem, jogava garrafas. Era nesse ponto que fazia seu discurso — pois fazia um discurso patriótico todos os sábados à noite. E ele era sempre o mesmo, palavra por palavra:

“Cidadãos da República, há algum francês aqui? Se há franceses aqui, ergo-me para lembrá-los — para lembrá-los, na verdade, dos dias gloriosos da guerra. Quando olhamos para aquele tempo de camaradagem e heroísmo — olhamos, na verdade, para aquele tempo de camaradagem e heroísmo. Quando lembramos dos heróis que estão mortos — lembramos, na verdade, dos heróis que estão mortos. Cidadãos da República, fui ferido em Verdun...”
Nesse ponto, tirava uma parte da roupa e mostrava o ferimento adquirido em Verdun.

Ouviam-se gritos de aplauso. Achávamos que nada no mundo poderia ser mais engraçado do que esse discurso de Fureux. Ele era um espetáculo bem conhecido no bairro; as pessoas costumavam vir de outros bistrôs para vê-lo iniciar seu ataque.
Formava-se um conluio para atormentar Fureux. Com uma piscadela para os outros, alguém pedia silêncio e sugeria que ele cantasse a “Marselhesa”. Ele cantava bem, com uma bela voz de baixo e patrióticos ruídos gorgolejantes no fundo do peito quando
chegava ao “Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons!”. 

Lágrimas sinceras rolavam por suas faces; bêbado demais, não percebia que todos riam dele. Então, antes que terminasse, dois operários fortes o pegavam pelos braços e o seguravam, enquanto
Azaya, fora do alcance dele, gritava “Vive l’Allemagne!”. O rosto de Fureux ficava roxo diante dessa infâmia. Todos no bistrô começavam a gritar juntos “Vive l’Allemagne! À bas la France!”, enquanto Fureux lutava para pegá-los. Mas de repente ele estragava a diversão. Seu rosto ficava pálido e lúgubre, seus membros claudicavam e, antes que alguém pudesse impedir, vomitava sobre a mesa. Então Madame F. o levantava como um
saco e o carregava para a cama. De manhã, ele reaparecia, quieto e civilizado, e comprava um exemplar de L’Humanité.

A mesa era limpa com um pano, Madame F. trazia mais garrafas de litro e pães e nos dedicávamos a beber a sério. Ouviam-se mais canções. Um cantor itinerante chegava com seu banjo e cantava canções em troca de cinco soldos. Um árabe e uma garota do
bistrô mais adiante na rua executavam uma dança em que ele brandia um falo de madeira pintada do tamanho de um pau de macarrão. Havia agora intervalos na algazarra. As pessoas começavam a falar de seus casos de amor, da guerra, da pesca de
barbo no Sena, sobre a melhor maneira de faire la révolution, e a contar histórias.

Charlie, novamente sóbrio, monopolizava a conversa e falava sobre sua alma durante cinco minutos. As portas e janelas eram abertas para refrescar o salão. A rua esvaziava-se e, ao longe, podia-se escutar o solitário carrinho do leite descendo o Boulevard St.
Michel. O ar lançava um golpe gelado em nossa testa e o vinho africano grosseiro ainda tinha um gosto bom; ainda estávamos felizes, mas reflexivos, e o clima de gritaria e hilaridade tinha acabado.

Por volta da uma da manhã não estávamos mais felizes. Sentíamos que a alegria da noite definhava e pedíamos apressadamente mais garrafas, mas Madame F. já estava pondo água no vinho e o gosto já não era o mesmo. Os homens ficavam agressivos. As garotas eram violentamente beijadas, mãos eram enfiadas em seus peitos e elas iam embora antes que o pior acontecesse. O pedreiro Louis estava bêbado e latia enquanto engatinhava pelo chão, fingindo ser um cachorro. Os outros se cansavam dele e o chutavam quando passava. As pessoas agarravam os braços umas das outras e começavam longas confissões desconexas, e ficavam bravas quando não lhes davam atenção. 

O grupo se reduzia. Manuel e um outro homem, ambos jogadores, iam para o bistrô árabe do outro lado da rua, onde o carteado continuava até o dia claro. Charlie tomava emprestados trinta francos de Madame F. e desaparecia, provavelmente para um bordel. Os homens começavam a esvaziar os copos, diziam rapidamente “’sieurs, dames!”, e iam dormir.

Por volta da uma e meia, a última gota de prazer já havia evaporado, deixando apenas dores de cabeça. Percebíamos que não éramos habitantes esplêndidos de um mundo esplêndido, mas um bando de trabalhadores mal pagos, miseráveis e tristemente
bêbados. Continuávamos a beber vinho, mas apenas por hábito, e a coisa parecia subitamente nauseante. A cabeça inchava como um balão, o chão balançava, a língua e os lábios estavam manchados de roxo. Por fim, não fazia mais sentido continuar com aquilo. Vários homens saíam para o quintal atrás do bistrô e vomitavam. 

Arrastávamo-nos para a cama, caíamos meio vestidos e ficávamos ali por dez horas. Quase todas as minhas noites de sábado eram assim. No total, as duas horas em que nos sentíamos perfeita e freneticamente felizes pareciam valer a dor de cabeça subsequente. Para muitos homens do bairro, solteiros e sem um futuro em que pensar, a bebedeira semanal era a única coisa que fazia a vida valer a pena.