(Na nossa meio preguiçosa onda de reprises (e propaganda, claro!) aqui, vai mais este - lembrando que qualquer semelhança - por mais metafórica que seja - com fatos, situações e pessoas (e por mais que estas defendam práticas violentas de repressão e, por algum estranho motivo, ao mesmo tempo, se revoltem com iniciativas artístico-culturais) reais e atuais é mera coincidência (embora talvez sua publicação agora não?...) - o texto abaixo foi publicado em 2014, na coletânea de contos "Histórias Reais de Amigos Imaginários (e Vice-Versa)"... - ah, sim, creio que talvez importante mencionar também: não, o livro em questão não teve apoio da Lei Rouanet, nem de nenhuma outra lei; só de amigos e parentes mesmo!)
"Onde se queimam livros, cedo ou tarde acabam queimando pessoas..."
(Heinrich Heine)
- Mão na cabeça,
vagabundo!
- Olha aí,
capitão: caderninho de poesia...
- Preso em
flagrante, hein, vagabundo!? Poesia, hein??
- Hã?... Eu estava
aqui só escrevendo... não sabia que...
- Não sabia o quê? Não sabia
que é o primeiro passo, malandro? Não sabia que a poesia é a porta de entrada??
- Porta de entrada
para o quê, chefia?...
PLAFT!
- Ai!
- Tá te fazendo,
malandro? Vê aí o que tá escrito, Serjão... lê aí...
- Humm...
- Vê se ele cita a
polícia aí...
- Não, capitão...
não...
- Bom, vê se ele
preparava então alguma rima pra polícia...
- Hum... tipo o
quê, capitão?
- Hum... não
sei... olha aí, Serjão!... sei lá... “polícia”... “polícia”...
- Milícia, chefia?
PLAFT!
- Ai!
- Tá chamando a
gente de miliciano, é, malandro?
- “Delícia”. Achei
aqui, capitão...
- Ôpa! Olha aí...
temos provas agora!... lê, lê o resto aí, Serjão.
- “Tuas mãos pelo
meu corpo... o mundo absorto... no teu seio eu navego... numa tarde de
delícia”...
- Olha aí!
Atentado ao pudor, no meio da rua!
- E a rima,
capitão? Tá faltando a rima...
- É verdade. Cadê
a rima, malandro? Onde ia entrar a rima aqui??
- Não tem rima...
é um poema que...
PLAFT!
- Ai!
- Tá tirando a
gente pra ignorante, malandro? Acha que a gente não entende de poesia, é??
- Não, não é
isso... é que...
- Olha essa outra,
capitão: “Teu corpo é meu castelo... meu porto seguro... quando ouço tua
voz...”
- “Meu mastro fica
duro”? Mais atentado ao pudor aí??
- Não. “O inimigo
pede trégua”...
- O quê??
- É... por que não
usou “égua” ou algo assim antes então?
PLAFT!
- Ai! Pô, por que essa
agora?
- Nem sabe fazer
poesia, vagabundo!... Ah, tamo perdendo tempo aqui... nem é poeta nada,
Serjão...
Jogam o caderninho
nele e vão embora.
Ele fica imóvel
ainda por um tempo ali escorado na árvore, observando eles se irem.
Em seguida, pega o
caderno e a caneta e volta a buscar a rima que tanto procurava o dia inteiro e
que estava quase lhe chegando antes de ser interrompido...
“Fictícia?”