sexta-feira, 1 de março de 2019

"Poesia para quem precisa" (por Diego T. Hahn)


(Na nossa meio preguiçosa onda de reprises (e propaganda, claro!) aqui, vai mais este - lembrando que qualquer semelhança - por mais metafórica que seja - com fatos, situações e pessoas (e por mais que estas defendam práticas violentas de repressão e, por algum estranho motivo, ao mesmo tempo, se revoltem com iniciativas artístico-culturais) reais e atuais é mera coincidência (embora talvez sua publicação agora não?...) - o texto abaixo foi publicado em 2014, na coletânea de contos "Histórias Reais de Amigos Imaginários (e Vice-Versa)"... - ah, sim, creio que talvez importante mencionar também: não, o livro em questão não teve apoio da Lei Rouanet, nem de nenhuma outra lei; só de amigos e parentes mesmo!)


"Onde se queimam livros, cedo ou tarde acabam queimando pessoas..."
(Heinrich Heine)


- Mão na cabeça, vagabundo!

- Olha aí, capitão: caderninho de poesia...

- Preso em flagrante, hein, vagabundo!? Poesia, hein??

- Hã?... Eu estava aqui só escrevendo... não sabia que...

- Não sabia o quê? Não sabia que é o primeiro passo, malandro? Não sabia que a poesia é a porta de entrada??

- Porta de entrada para o quê, chefia?...

PLAFT!

- Ai!

- Tá te fazendo, malandro? Vê aí o que tá escrito, Serjão... lê aí...

- Humm...

- Vê se ele cita a polícia aí...

- Não, capitão... não...

- Bom, vê se ele preparava então alguma rima pra polícia...

- Hum... tipo o quê, capitão?

- Hum... não sei... olha aí, Serjão!... sei lá... “polícia”... “polícia”...

- Milícia, chefia?

PLAFT!

- Ai!

- Tá chamando a gente de miliciano, é, malandro?

- “Delícia”. Achei aqui, capitão...

- Ôpa! Olha aí... temos provas agora!... lê, lê o resto aí, Serjão.

- “Tuas mãos pelo meu corpo... o mundo absorto... no teu seio eu navego... numa tarde de delícia”...

- Olha aí! Atentado ao pudor, no meio da rua!

- E a rima, capitão? Tá faltando a rima...

- É verdade. Cadê a rima, malandro? Onde ia entrar a rima aqui??

- Não tem rima... é um poema que...

PLAFT!

- Ai!

- Tá tirando a gente pra ignorante, malandro? Acha que a gente não entende de poesia, é??

- Não, não é isso... é que...

- Olha essa outra, capitão: “Teu corpo é meu castelo... meu porto seguro... quando ouço tua voz...”

- “Meu mastro fica duro”? Mais atentado ao pudor aí??

- Não. “O inimigo pede trégua”...

- O quê??

- É... por que não usou “égua” ou algo assim antes então?

PLAFT!

- Ai! Pô, por que essa agora?

- Nem sabe fazer poesia, vagabundo!... Ah, tamo perdendo tempo aqui... nem é poeta nada, Serjão...

Jogam o caderninho nele e vão embora.

Ele fica imóvel ainda por um tempo ali escorado na árvore, observando eles se irem.

Em seguida, pega o caderno e a caneta e volta a buscar a rima que tanto procurava o dia inteiro e que estava quase lhe chegando antes de ser interrompido...

Fictícia?”