- Mas eu
disse para não tocarem no meu carro!
- Sim,
senhor; mas o senhor quis estacionar por conta própria e acabou ocupando a vaga
de dois veículos... e, como o hotel está lotado, nós tivemos que remanejá-lo e...
- Não me
interessa. Eu disse para NÃO MEXER no meu carro!
- Certo,
então o senhor terá que deixar seu automóvel na rua...
- Como é???
Eu falava ponderadamente, sem alterar a voz, com o sujeito, que, por sua vez, bradava e gesticulava tal qual um chimpanzé envenenado, aparentemente cada vez mais irritado com a minha argumentação,
mas eu não podia deixar pra lá, ainda que a treta
a princípio não fosse minha – ele havia começado aquele esporro para cima do
mensageiro, que era quem havia manobrado o carro dele e que agora ali na recepção baixara a cabeça, encabulado, após até tentar explicar que “é
que... senhor... eu... hã... o carro... tinha que...”, mas diante da pressão do cara não conseguira
articular nada.
Cara, a
questão é que, em situações assim, eu sentia-me na obrigação
de contra-atacar.
Se a bronca era diretamente comigo, eventualmente eu até deixava passar, mas algumas
vezes os hóspedes abusavam moralmente
de alguns dos meus colegas que não tinham as “ferramentas”, ou mesmo disposição,
para defender-se e confrontá-los adequadamente (ou o que eu julgava ser adequadamente), como eu aparentemente tinha (ou acreditava ter)... mas a verdade é que, de
certa forma, poder-se-ia dizer que no fundo, numa conotação social e/ou intelectual, eu talvez pertencesse mesmo também à “tribo” dos hóspedes, embora estivesse apartado deles por um balcão - era como um membro deslocado do bando - , e, embora me entendesse bem com eles, era um "estranho no ninho" entre meus colegas, os “bárbaros”, como o próprio mensageiro
Jorge costumava brincar, dizendo que eu parecia uma espécie de espião, fingindo-me inocente ali na
recepção em meio àqueles check-ins e check-outs, enquanto preparava algum
grande plano maquiavélico para conquistar o mundo ou algo assim...
Bem, não,
não havia plano algum – não além daquele de simplesmente conquistar era o meu troquinho – mas devido àquela “pilha” toda – e a maior carga dela, confesso, vinha de mim
mesmo – eu realmente acreditava ter aquela obrigação de ao menos lhes infligir, aos malditos
hóspedes, derrotas supostamente (ao menos nas minhas utópicas
suposições, quando criava um filme na minha cabeça) épicas, tal qual o
fizeram – ou ao menos tentaram – os personagens
do De Niro em “A missão”, do Tom Cruise em “O último samurai”, ou o do Kevin
Costner em “Dança com lobos”...
Quase todos eles se deram mal, é verdade, provavelmente
eu também me daria, mas, que diabos, como bom camarada não podia fugir àquela
luta!...
Fosse como
fosse, e por mais que o confrontasse, o tal palhaço continuou estacionando o carro sozinho e ocupando espaço
que poderia ser usado por outros carros e causando confusão na garagem, mas ao menos, como consolo, o dono do hotel,
que acompanhava de longe a discussão, veio até mim na recepção depois que o cara se foi e, ao que eu esperava um
esporro complementar (ou mesmo um golpe de misericórdia), me surpreendeu dizendo apenas: “Nem dá trela; o cara é um babaca mesmo...”, mostrando que o sujeito devia ser realmente um tremendo babaca.
Voltando às
origens, quando pelo contrário raramente tinha contatos do gênero – na verdade,
quase nenhum contato em geral – e tudo era mais tranquilo, logo no meu primeiro
mês no hotel já me tinham colocado para trabalhar na madruga e foi na calada da
noite que conheci o sorrateiro Zeca. Ele era então o mensageiro mais antigo lá
depois do Severo e sabia tudo do hotel. Sabia, por exemplo – mostrando que
conhecimento também enche mesmo barriga – , onde ficava guardada na noite a
chave da cozinha do restaurante – local sagrado e de acesso supostamente proibido para nós. E
lá pelas tantas, balançando-a entre os dedos, vinha até mim e perguntava:
- E aí, o
que vai querer para hoje, véio?...
Eu, então
meio constrangido – novato, ainda em fase de teste, não querendo entrar de cúmplice naquele ataque à despensa,
mas também não querendo descartar completamente uma oportunidade de preencher o
vazio do buraco negro que costumava assolar meu estômago naquelas ocasiões – ,
dizia que não sabia, até tentava desconversar, dizendo que "estava tranquilo" (numa tímida e duvidosa recusa), enquanto seguia teclando algo no computador sem sequer
olhar pro cara... ele, porém, não se fazia de rogado e dava então as sugestões
do dia – ou melhor, da noite:
- Batata
frita, lasanha ou omelete? – e lá se ia preparar nossa janta das três horas,
sem esperar eu responder. Voltava com uma latinha de refri pra cada um.
O sujeito era mesmo um grande fanfarrão. Volta e meia levava consigo também uma viola, com a qual alegrava parte das nossas madrugas, e por vezes também um videogame. Nessas noites, o tempo voava. Ficávamos jogando futebol, estirados no sofá, na sala em frente ao bar, onde havia uma telona, e eu pensava “bem, daqui a pouco faço as duas ou três coisas que tenho para fazer”, que me tomavam menos de meia hora naquelas madrugadas, e aí quando nos dávamos conta, caramba, eram já cinco e meia! – o turno trocava às seis – e saltávamos do sofá e eu ia correndo imprimir os arquivos que tinha para imprimir e carimbar os arquivos que tinha para carimbar e tal, e ele zarpava para garagem ajeitar os carros... é, aquelas partidas eram duras e acirradas! Concentrados, perdíamos totalmente a noção do tempo.
Mas o que importa é que, apesar de Zeca ser o dono do campinho – o videogame era dele – eu ganhava a maioria das partidas, para seu desespero – eu ria sarcasticamente ao ouvir com frequência o mensageiro que estava assumindo o turno no início da manhã perguntando para o meu rival “Por que essa cara de bunda hoje, mano?”...
O sujeito era mesmo um grande fanfarrão. Volta e meia levava consigo também uma viola, com a qual alegrava parte das nossas madrugas, e por vezes também um videogame. Nessas noites, o tempo voava. Ficávamos jogando futebol, estirados no sofá, na sala em frente ao bar, onde havia uma telona, e eu pensava “bem, daqui a pouco faço as duas ou três coisas que tenho para fazer”, que me tomavam menos de meia hora naquelas madrugadas, e aí quando nos dávamos conta, caramba, eram já cinco e meia! – o turno trocava às seis – e saltávamos do sofá e eu ia correndo imprimir os arquivos que tinha para imprimir e carimbar os arquivos que tinha para carimbar e tal, e ele zarpava para garagem ajeitar os carros... é, aquelas partidas eram duras e acirradas! Concentrados, perdíamos totalmente a noção do tempo.
Mas o que importa é que, apesar de Zeca ser o dono do campinho – o videogame era dele – eu ganhava a maioria das partidas, para seu desespero – eu ria sarcasticamente ao ouvir com frequência o mensageiro que estava assumindo o turno no início da manhã perguntando para o meu rival “Por que essa cara de bunda hoje, mano?”...
Zeca não
durou muito lá, depois que eu entrei. Não por revolta por aquelas derrotas, mas logo arranjou um emprego melhor e eu
perdi meu cozinheiro noturno – e o companheiro de viola, e as partidas de
futebol no videogame... O mensageiro que o substituiu não tinha a mesma audácia, e na verdade nenhum outro
depois dele, ao passo que a partir dali tive que procurar outros entretenimentos para aquelas longas noites nas quais, posso jurar, ainda chegava a farejar por vezes feito um cão faminto ao longo dos meses seguintes o cheiro de lasanha ou omelete se aprochegando nas imediações da recepção ali pelas três da madruga - logo no entanto tornando à realidade e melancolicamente voltando a mastigar minha pastelina e sugar meu toddyinho então levados de casa.
(Continua)
Nenhum comentário:
Postar um comentário