segunda-feira, 3 de junho de 2019

Seção "Mais valem algumas palavras do próprio autor - quando este é fera, claro - do que mil resenhas": "Na pior em Paris e em Londres", de George Orwell (por Diego T. Hahn) - Parte 2


Seguindo com o nosso engodinho (mas, veja bem, um de catega, ok?...) aqui no De Letra, separamos mais um trecho da referida obra do referido autor do título desta nossa nova e fantástica (pois, quer coisa melhor nesta vida de escritor do que colocar caras como George Orwell a escrever pra mim? - caramba, não sei como eu não tinha pensado nisso antes!) seção do blog - este trecho, no caso, que trata de um dos raros momentos de diversão na vida de Orwell naqueles tempos de penúria da juventude, vai também, transposto aqui, de bônus como uma espécie de "tributo" particular do blogueiro bodegueiro a velhas noitadas com velhos camaradas nos velhos tempos da juventude (bem, na verdade, nem tão velhos para alguns que ainda resistimos bravamente...), com algumas das nuances e dos marcantes e nostálgicos/divertidos "ciclos" pelos quais se passa(va) ao longo de algumas dessas aventuras noturnas (pois, guardadas todas as devidas proporções, contextos históricos e situações sócio-econômicas, no fim das contas às vezes a noite é sempre a velha noite, com todos seus clássicos personagens, e eternos comédias e dramas...):


Com trinta francos por semana para gastar em bebida, eu podia participar da vida social do bairro. Tínhamos algumas noites animadas, aos sábados, no pequeno bistrô do térreo do Hôtel des Trois Moineaux.

O salão de piso de tijolo, de uns cinco metros quadrados, estava apinhado, com vinte pessoas e um ar turvo de fumaça. O barulho era ensurdecedor, pois todos ou falavam aos gritos ou cantavam. Às vezes, era apenas um vozerio confuso; outras vezes, todos
irrompiam a cantar a mesma canção — a “Marselhesa”, a “Internacional” ou “Madelon”, ou “Les fraises et les framboises”. Azaya, uma jovem camponesa robusta e pesada, que trabalhava catorze horas por dia numa fábrica de vidros, cantava uma canção sobre “Elle a perdu son pantalon, tout en dansant le Charleston”.

 Sua amiga Marinette, uma garota magra e morena da Córsega, de uma virtude obstinada, amarrava os joelhos juntos e dançava a danse du ventre. O casal Rougier entrava e saía, filando drinques e
tentando contar uma longa e complicada história sobre alguém que certa vez os havia enganado sobre uma armação de cama. R., cadavérico e silencioso, estava sentado em seu canto,  embebedando-se quieto. 

Charlie, bêbado, meio que dançava e cambaleava com um copo de absinto falsificado em uma das mãos gordas, beliscando os seios das mulheres e declamando poesia. Havia gente jogando dardos e dados por bebida. O espanhol Manuel arrastava as garotas até o bar e esfregava o copo de dados na barriga delas para ter sorte. 

Madame F. ficava no bar e enchia rapidamente chopines de vinho
pelo funil de peltre, com um pano de prato úmido sempre à mão, porque todos os homens do salão tentavam arrastar a asa para ela. Duas crianças, filhas bastardas do pedreiro Louis, ficavam sentadas no canto bebendo juntas um copo de sirop. Todos estavam muito felizes, cheios da certeza de que o mundo era um bom lugar, e nós, um grupo notável de pessoas.

Durante uma hora, o barulho dificilmente diminuía. Então, por volta da meia-noite, ouvia-se um grito penetrante de “Citoyens!”, e o som de uma cadeira que caía. Um operário loiro, de faces vermelhas, erguera-se e batia com uma garrafa na mesa. Todos
paravam de cantar e a notícia corria pelo bistrô: “Sshh! Fureux está começando!”. 

Fureux era uma criatura estranha, um canteiro limusino que trabalhava sem parar durante toda a semana e caía numa espécie de paroxismo bêbado aos sábados. Havia perdido a memória e não conseguia se lembrar de nada anterior à guerra, e a bebida o teria destruído se Madame F. não tivesse cuidado dele. Nas tardes de sábado, por volta das cinco horas, ela dizia para alguém: “Ache Fureux antes que ele gaste seu salário”, e depois que o capturavam ela pegava o dinheiro dele, deixando o suficiente apenas para
uma boa bebedeira. Uma vez, ele escapou e, andando cego de bebida pela Place Monge, foi atropelado por um carro, ficando seriamente ferido.

A coisa esquisita em relação a Fureux era que, embora fosse comunista quando sóbrio, ficava violentamente patriota quando bêbado. Começava a noite com bons princípios comunistas, mas depois de quatro ou cinco litros se tornava um chauvinista feroz,
denunciava espiões, desafiava os estrangeiros para a briga e, se não o impedissem, jogava garrafas. Era nesse ponto que fazia seu discurso — pois fazia um discurso patriótico todos os sábados à noite. E ele era sempre o mesmo, palavra por palavra:

“Cidadãos da República, há algum francês aqui? Se há franceses aqui, ergo-me para lembrá-los — para lembrá-los, na verdade, dos dias gloriosos da guerra. Quando olhamos para aquele tempo de camaradagem e heroísmo — olhamos, na verdade, para aquele tempo de camaradagem e heroísmo. Quando lembramos dos heróis que estão mortos — lembramos, na verdade, dos heróis que estão mortos. Cidadãos da República, fui ferido em Verdun...”
Nesse ponto, tirava uma parte da roupa e mostrava o ferimento adquirido em Verdun.

Ouviam-se gritos de aplauso. Achávamos que nada no mundo poderia ser mais engraçado do que esse discurso de Fureux. Ele era um espetáculo bem conhecido no bairro; as pessoas costumavam vir de outros bistrôs para vê-lo iniciar seu ataque.
Formava-se um conluio para atormentar Fureux. Com uma piscadela para os outros, alguém pedia silêncio e sugeria que ele cantasse a “Marselhesa”. Ele cantava bem, com uma bela voz de baixo e patrióticos ruídos gorgolejantes no fundo do peito quando
chegava ao “Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons!”. 

Lágrimas sinceras rolavam por suas faces; bêbado demais, não percebia que todos riam dele. Então, antes que terminasse, dois operários fortes o pegavam pelos braços e o seguravam, enquanto
Azaya, fora do alcance dele, gritava “Vive l’Allemagne!”. O rosto de Fureux ficava roxo diante dessa infâmia. Todos no bistrô começavam a gritar juntos “Vive l’Allemagne! À bas la France!”, enquanto Fureux lutava para pegá-los. Mas de repente ele estragava a diversão. Seu rosto ficava pálido e lúgubre, seus membros claudicavam e, antes que alguém pudesse impedir, vomitava sobre a mesa. Então Madame F. o levantava como um
saco e o carregava para a cama. De manhã, ele reaparecia, quieto e civilizado, e comprava um exemplar de L’Humanité.

A mesa era limpa com um pano, Madame F. trazia mais garrafas de litro e pães e nos dedicávamos a beber a sério. Ouviam-se mais canções. Um cantor itinerante chegava com seu banjo e cantava canções em troca de cinco soldos. Um árabe e uma garota do
bistrô mais adiante na rua executavam uma dança em que ele brandia um falo de madeira pintada do tamanho de um pau de macarrão. Havia agora intervalos na algazarra. As pessoas começavam a falar de seus casos de amor, da guerra, da pesca de
barbo no Sena, sobre a melhor maneira de faire la révolution, e a contar histórias.

Charlie, novamente sóbrio, monopolizava a conversa e falava sobre sua alma durante cinco minutos. As portas e janelas eram abertas para refrescar o salão. A rua esvaziava-se e, ao longe, podia-se escutar o solitário carrinho do leite descendo o Boulevard St.
Michel. O ar lançava um golpe gelado em nossa testa e o vinho africano grosseiro ainda tinha um gosto bom; ainda estávamos felizes, mas reflexivos, e o clima de gritaria e hilaridade tinha acabado.

Por volta da uma da manhã não estávamos mais felizes. Sentíamos que a alegria da noite definhava e pedíamos apressadamente mais garrafas, mas Madame F. já estava pondo água no vinho e o gosto já não era o mesmo. Os homens ficavam agressivos. As garotas eram violentamente beijadas, mãos eram enfiadas em seus peitos e elas iam embora antes que o pior acontecesse. O pedreiro Louis estava bêbado e latia enquanto engatinhava pelo chão, fingindo ser um cachorro. Os outros se cansavam dele e o chutavam quando passava. As pessoas agarravam os braços umas das outras e começavam longas confissões desconexas, e ficavam bravas quando não lhes davam atenção. 

O grupo se reduzia. Manuel e um outro homem, ambos jogadores, iam para o bistrô árabe do outro lado da rua, onde o carteado continuava até o dia claro. Charlie tomava emprestados trinta francos de Madame F. e desaparecia, provavelmente para um bordel. Os homens começavam a esvaziar os copos, diziam rapidamente “’sieurs, dames!”, e iam dormir.

Por volta da uma e meia, a última gota de prazer já havia evaporado, deixando apenas dores de cabeça. Percebíamos que não éramos habitantes esplêndidos de um mundo esplêndido, mas um bando de trabalhadores mal pagos, miseráveis e tristemente
bêbados. Continuávamos a beber vinho, mas apenas por hábito, e a coisa parecia subitamente nauseante. A cabeça inchava como um balão, o chão balançava, a língua e os lábios estavam manchados de roxo. Por fim, não fazia mais sentido continuar com aquilo. Vários homens saíam para o quintal atrás do bistrô e vomitavam. 

Arrastávamo-nos para a cama, caíamos meio vestidos e ficávamos ali por dez horas. Quase todas as minhas noites de sábado eram assim. No total, as duas horas em que nos sentíamos perfeita e freneticamente felizes pareciam valer a dor de cabeça subsequente. Para muitos homens do bairro, solteiros e sem um futuro em que pensar, a bebedeira semanal era a única coisa que fazia a vida valer a pena.