Curioso Joseph Conrad ser o primeiro cara
a ser resenhado duas vezes aqui no blog (a primeira vez, inclusive, foi na
primeira resenha do De Letra, com Os duelistas). Curioso, no caso, porque nem
é um dos meus autores preferidos - e, na verdade, só li mesmo esses dois livros
do sujeito (ou seja, ele tem 100% de aproveitamento por aqui!).
Um dos livros com a quantidade de versões da capa mais
legais que já encontrei por aí (embora esta acima esteja meio "fora de foco", foi talvez uma das mais interessantes que achei e assim decidi por incluí-la também na rela).
Curioso também, pelos estilos empregados em cada um, parecerem os acima referidos livros terem sido escritos por autores totalmente diversos (Os duelistas é, digamos, mais light, mais direto, sem tanto rebuscamento, ao contrário da densidade de O coração das trevas - se bem que isso possa se dever, claro, tanto ao conteúdo de um e de outro, quanto a questões referentes a edição, tradução, etc).
A respeito disso, vale dizer que Conrad era polaco e só foi morar na Inglaterra (posteriormente naturalizando-se inglês) lá pelos vinte e poucos anos, quando ainda não falava uma palavra sequer do idioma bretão... e, ainda assim - e talvez por isso mesmo -, superou-se e tornou-se um exímio conhecedor e artista daquela língua.
Embora o mais do que centenário livro - sua publicação data do longínquo 1902 - seja um clássico, foi mais também pela sua curiosidade que
decidi resenhá-lo, por assim dizer, aqui (e por ser um dos últimos livos resenháveis que li), já que certamente, assim como Conrad, e apesar de um bom e
envolvente livro, não ter se tornado um dos meus favoritos.
Inevitável, claro, mencionar que Francis Ford Coppola se baseou no livro para filmar
Apocalypse Now, adaptando a realidade da obra de Conrad que se passava no Congo
colonizado para a Guerra do Vietnã.
A respeito do filme (que, a propósito, na minha humilde avaliação, uma raridade nesse tipo de comparação, chega a ser melhor que o livro), embora Brando, interpretando Kurtz – de
certa forma, mais uma vez o poderoso chefão –, ainda que só apareça no final,
seja o eixo central do filme, e Martin Sheen - sim, o pai do sequelado Charlie, que, diga-se de passagem, protagonizou também outro clássico de guerra, Platoon - o protagonista, quem
definitivamente marca presença, ainda que só apareça em determinado trecho – ao meu ver, igualmente, nas melhores sequências –, é Robert Duvall, com seu coronel
surfista e suas frases épicas, tais quais “Vietcongues não surfam!” e “Adoro o
cheiro de napalm pela manhã”.
Obviamente revi o filme após terminar de
ler o livro, para verificar se teria e qual seria a nova impressão sobre a obra
cinematográfica (e o resultado foi realmente positivo e, entre outras coisas, foi
interessante perceber a relação feita por Coppolla entre Vietnã e o Congo
colonizado do livro quanto à justificativa de “ajudar a humanizar e trazer
progresso à região” – típica ação que podemos dizer, inclusive, se perpetua e segue atual, já que tal justificativa
– esfarrapada? – segue sendo usada em eventuais incursões imperialistas mundo afora).
Impossível, no entanto, não começar a ler
o livro tendo já visto o filme anteriormente, já na expectativa de encontrar
Kurtz. Não sei ao certo, mas talvez isso, ainda que sutilmente, tenha
prejudicado (ou teria ajudado?) de alguma maneira a leitura.
O fato, de qualquer forma, é que é uma leitura densa. Quem narra a
história é o marinheiro inglês Marlow, contando sua experiência no Congo, na
época que a Bélgica colonizava o país africano. Encarregado de subir o rio (que, embora não identificado por Conrad, presume-se seja o rio Congo, também conhecido como rio Zaire) numa
expedição a bordo de um precário barco para buscar Kurtz, o genial agente da companhia que explorava a região e que,
diziam, havia enlouquecido no posto mais avançado da empresa e, apesar de
seguir com suas enormes remessas de marfim, havia se tornado um problema.
E, no mais, em meio a tudo isso, temos canibais famintos, decapitações, rituais pagãos, frequentes e controversas menções ao tal cara lá no fim do caminho que não aparece nunca - até aparecer - e um barquinho a deslizar, no azul, azul do mar (bem, não tão azul, e muito menos mar, mas você entendeu - e eu não podia perder a deixa).
"Dei ordens para que a âncora, que havíamos começado a puxar, fosse jogada outra vez. Antes que ela parasse de correr com seu retinido surdo, um grito, um grito muito alto, como que de infinita desolação, soou lentamente através do ar opaco. E cessou. Um clamor de lamentação, modulado em selvagens dissonâncias, encheu nossos ouvidos. O fenômeno era tão inesperado que meus cabelos arrepiaram-se sob o meu boné. Não sei o que causou nos demais; para mim era como se a própria neblina tivesse gritado, tão repentinamente, e aparentemente vindo de todos os lados ao mesmo tempo, despertando aquele tumultuoso e triste clamor."
" 'Eles atacarão?', murmurou uma voz apavorada. ' Seremos todos massacrados em meio a este nevoeiro', murmurou outra. As faces contraíam-se de tensão, as mãos tremiam levemente, os olhos esqueciam-se de piscar"
" 'Pega elis', ele disparou, abrindo os seus olhos avermelhados e mostrando os seus dentes afiados - 'Pega elis. Dá elis pra nóis'. 'Pra vocês, hein?', perguntei; 'O que vocês fariam com eles?' 'Comia elis', falou secamente, e, apoiando seu cotovelo no gradil, olhou através da neblina com um ar de grande dignidade e uma atitude de profunda reflexão."
Críticos costumam dividir-se, questionando a mensagem central do livro, se uma espécie de libelo anticolonialista ou simplesmente uma representação racista da África - Conrad, que, diga-se de passagem, era também marinheiro, havia visitado e viajado pelo Congo na época da dominação belga.
Para se ter uma ideia da densidade do produto, procurando informações, críticas, etc, sobre o livro na internet, achei até
mesmo tese de universidade sobre ele.
O que creio, particularmente, possa restar basicamente de questionamentos ao cabo da leitura, após todas as reflexões que
já foram feitas e são conhecidas, e sem forçar lá muito a barra com maiores
análises psico-antropológicas e tal - e talvez já forçando um pouco - , é:
- Precisamos mesmo chutar o balde, mergulhar fundo de verdade, abandonando todas nossas defesas - físicas e psíquicas -, ir realmente até o limite, para descobrirmos nosso real potencial – ou, em outras palavras,
para simplesmente conhecermos verdadeiramente quem somos (e, por tabela, o que realmente nos
rodeia nesse mundão de meu Deus) – ? (Como diria o Capitão Willard no filme de Coppolla, justificando
sua presença no Vietnã: “Eu não saberia quem sou numa fábrica em Ohio!”)
- E seria o ser humano essencialmente selvagem por natureza (sendo que a nossa
sociedade civilizada só consegue mascarar relativamente isso)?
E para não dizer que não dei voz ao principal personagem da história - Kurtz - aqui, eis sua mais curta e emblemática sentença, na qual ele talvez sintetize as respostas e resuma essa loucura toda:
"O horror... O horror".