terça-feira, 14 de maio de 2019

Seção "Mais valem algumas palavras do próprio autor - quando este é fera, claro - do que mil resenhas": "Na pior em Paris e em Londres", de George Orwell (por Diego T. Hahn)


Algumas considerações:

1) Primeiramente uma errata retroativa: humildemente, creio que erramos (ou, errei) em outras "seções" do blog, ao chamá-las de "sessão" (ah, a bela última flor do Lácio!)... mas, enfim, antes tarde do que nunca (embora, procurando agora nos arquivos, eu não tenha achado a palavra, nem de um jeito nem de outro... então, talvez fosse só impressão - mas, que seja, corrijamos também nossas impressões e até mesmo, o suprassumo da humildade e do perfeccionismo, erros que talvez nunca tenhamos cometido!)

2) Esta seção, pois, não é sacanagem com nenhum "resenhador" - profissa ou amador - , porque é legal mesmo treinar a própria escrita, exercitá-la em textos "comentativos" (e tem mesmo gente muito boa por aí), mas, porra, quer coisa melhor que algumas linhas, por exemplo, do próprio Orwell, ao invés do meu blá blá blá pseudo-literário sobre o livro do cara? (Além do que, aaaaahh... a velha preguiça, né!?...)

3) Então, vamos lá - resumidamente, o livro, o primeiro lançado por Orwell, narra suas peripécias após largar um emprego na Polícia Imperial Britânica na Birmânia (antiga colônia inglesa) e, desempregado e antes de se dar bem como escritor, viver por um tempo nas capitais francesa e inglesa em situação de quase miséria total, entre mendigos, dormindo de albergue em albergue e se alimentando por dias só de pão e chá. Vamos publicar nos próximos dias então alguns fragmentos dessa obra, que, segundo reza a lenda, só veio à luz do sol, graças ao apoio de uma gaúcha, Mabel Fierz, crítica literária filha de ingleses, com a qual Orwell (ou, Arthur Blair, o nome verdadeiro do cara) se envolveu na juventude, e a qual se encantou com o talento do bicho. Neste excerto aqui, Orwell faz uma análise sobre a vida dos mendigos (mais especificamente uma reflexão sobre o que a sociedade em geral pensa dos mendigos - e como eles são, ou eram - naqueles tempos, anos 30 - , na realidade):

"Vale a pena dizer alguma coisa sobre a posição social que os mendigos ocupam, pois quando se convive com eles e se descobre que são seres humanos comuns, não se pode deixar de ficar admirado com a curiosa atitude da sociedade com relação a eles.

 As pessoas parecem achar que existe uma diferença essencial entre mendigos e “trabalhadores” comuns. Acham que eles constituem uma raça à parte: a dos vagabundos, como os criminosos e as prostitutas. Os trabalhadores “trabalham”, os mendigos não “trabalham”; são parasitas, inúteis por natureza. 

Dá-se por certo que um mendigo não ganha a vida do modo como um pedreiro ou um crítico literário ganham as suas. Ele não passa de uma excrescência social, só tolerada porque vivemos numa época humana, mas ele é essencialmente desprezível.

Contudo, se observarmos de perto, vemos que não há uma diferença essencial entre o modo de vida de um mendigo e o de inúmeras pessoas respeitáveis. Os mendigos não trabalham, diz-se. Mas, então, o que é trabalho? Um operário braçal trabalha brandindo uma picareta. Um contador trabalha somando números. Um mendigo trabalha ficando ao relento em qualquer tempo, ganhando varizes, bronquite crônica etc. É um ofício como outro qualquer, bastante inútil, é verdade — mas muitos ofícios respeitáveis também são inúteis. E, como tipo social, o mendigo se sai bem na comparação com muitos outros. Ele é honesto, se comparado com os vendedores da maioria dos medicamentos patenteados; de altos princípios, se comparado com o dono de um jornal dominical; amável, se comparado com um comerciante que vende a crédito com preços extorsivos. Em resumo, é um parasita, mas um parasita razoavelmente inofensivo.

Raramente extrai mais da comunidade do que uma vida indigente, e paga por isso com um sofrimento incessante, o que poderia justificá-lo, de acordo com nossos padrões éticos. Não creio que exista algo num mendigo que o coloque numa categoria diferente
da das outras pessoas ou que dê à maioria dos homens modernos o direito de desprezá-lo.

Surge então a questão: por que os mendigos são desprezados? Pois o são, universalmente. Acredito que seja pela simples razão de que não conseguem ganhar o suficiente para levar uma vida decente. Na prática, ninguém se importa se o trabalho é útil ou inútil, produtivo ou parasita; a única exigência é que seja lucrativo. Afinal, em toda a conversa moderna sobre energia, eficiência, serviço social e coisas assim, o sentido não é senão “ganhe dinheiro, ganhe-o legalmente e ganhe muito”? O dinheiro se transformou na grande prova de virtude. Nessa prova, os mendigos são reprovados e, por isso, são desprezados. Se fosse possível ganhar dez libras por semana mendigando, a mendicância se transformaria imediatamente numa profissão respeitável. 

Observado de forma realista, um mendigo é apenas um homem de negócios que ganha a vida do jeito que dá, como outros homens de negócios. Não vendeu sua honra — não mais do que a maioria das pessoas modernas. Ele apenas cometeu o erro de escolher um negócio no qual é impossível enriquecer."