quarta-feira, 14 de março de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 3" (por Diego T. Hahn)


Carlos Silva é representante de alguma empresazinha aí e se acha uma grande peça do tabuleiro! 
O pior é que vejo dezenas assim todos os dias. Há também os empresários de meia tigela que se acham os novos Eikes Batistas ou Abilios Dinizes, mas não passam de uns presunçosos pés rapados de espírito (talvez só tenham mesmo do primeiro o instinto de subir a qualquer custo e só não estejam também enrolados com alguma lava-jato da vida porque não têm sequer a “competência” de chegar a um nível tão alto de malandragem)... 
É uma alegria quando aparece, por exemplo, um seu Antônio da vida, ou um João de Almeida.

João de Almeida é representante também de uma empresa de sei lá eu o quê – porque na verdade nunca dou muita bola para com o que ou para quem trabalham, só fico às vezes sabendo pelos meus colegas que se atêm muito a esses detalhes e costumam referir-se a eles por “o Carlos Silva da Petrobras” ou algo assim – , mas é um sujeito gente boa, de bem com a vida, que tá sempre batendo um papo informal e interessante ali pela recepção.

- E aí, seu Marco? Tudo beleza? E a mulherada?

- Ah, seu João, o senhor sabe como é... sempre prestigiando as beldades, né!? Porque não dá pra parar...

- Mas sai daí, guri; tu tem cara é de matador de dragão! Mas, bueno, um dia desses temos que ir juntos numa casa de diversão aí... tu que sabe das coisas vai me mostrar onde é o lugar bom aí da cidade...

- Claro, com o maior prazer.

Grande pessoa o seu João de Almeida. Não tá nem aí pra nada. Só quer saber de cumprir o horário dele e depois sair para algum bar para espairecer. Costuma voltar no meio da madruga meio torto. Como sou turnante – como explicado no capítulo anterior, dependendo do dia posso trabalhar de manhã, de tarde, de noite, ou na madrugada – acompanho bem os hábitos e horários de alguns hóspedes e cruzo com eles em diferentes momentos do dia, ao que sempre me largam aquela:

- Mas tu por aqui ainda? Tu dorme aqui, é??...

E a verdade era que sim, eu dormia mesmo lá. Isto é, eu morava no apê dos coroas, que ficava perto dali, mas dormia de vez em quando ali no hotel também – e não, não me refiro aos horários nos quais estava de folga; mas durante o maldito expediente mesmo: na madrugada, quando estava deveras cansado, costumava desligar as portas automáticas da entrada e me jogar em algum sofá do hall de entrada e dormir feito um anjo, deixando o mensageiro encarregado de me avisar se algo acontecesse.

No entanto, não foi uma nem duas vezes que, depois de um tempo de sono, acordei com um barulho de pancadas em vidro e notei o colega também apagado roncando em um outro sofá, enquanto lá fora, visivelmente irritado, algum hóspede batia incessantemente na porta, querendo entrar. E lá ia eu rastejando enquanto calçava os sapatos, gravata torta e cara toda amassada com listras de sofá na bochecha e na testa, forjando o mais próximo de um sorriso que eu conseguia naquela madrugada e, enquanto na passada dava um soco no mensageiro ainda em coma, abrindo a porta para o sujeito, saudando-o e fazendo algum comentário amigável tipo “Ué, voltando cedo hoje!... Não rendeu a noite?”. E percebia então aqueles grandiosos homens de negócios, emburrados, indo se recolher, com a visível sensação de fracasso, às suas celas, o que deixava aquele reles proletário da calada da noite um pouco menos chateado de ter seu precioso sono repentinamente interrompido.

Já nos turnos da manhã, quando não havia a possibilidade da soneca, eu procurava me encher do cafezinho preto que havia à disposição – teoricamente dos hóspedes – na recepção para sobreviver ao batente, e preencher os imensos vazios de movimento trocando uma ideia com Severo, aquele meu colega jurássico, que costumava vir frequentemente até a recepção conversar comigo, tendo como assunto favorito a proposta de alguma “sociedade” entre nós, para cairmos fora do hotel e montarmos juntos um negócio. Às vezes ele sugeria uma lanchonete ou um bar, às vezes uma quadra de futebol, e ia alternando as ideias, repetindo algumas ao longo dos dias, e sempre nos empolgávamos quando começávamos a ir mais fundo naqueles devaneios, imaginando os detalhes desse nosso futuro business, e eu percebia os olhos do velho Seva brilharem como os de uma criança diante da promessa da bicicleta que seria trazida pelo Bom Velhinho no próximo dezembro.

No fundo, eu duvidava que ele fosse realmente sair dali um dia, o que me fazia às vezes pensar que talvez eu não devesse dar tanta corda, para evitar alguma possível desilusão para o sujeito mais adiante, mas, enfim, não seria eu a destruir aqueles seus sonhos, não é mesmo?, e a verdade é que eu também acabava por vezes me empolgando com aquelas ideias, embora não as visualizasse efetivamente se consolidando no horizonte. E, de qualquer forma, também percebia que aquilo parecia bastar para Severo, aquele nosso papo ali, eu lhe dando trela, considerando-o realmente um potencial grande homem de negócios...

- Fechado! – enquanto os representantes e empresários de verdade faziam o check-out após pagarem sua “fiança” e iam-se embora, apertávamos as mãos de maneira efusiva quase semanalmente, sacramentando então o “contrato” de nosso novo futuro business, que por sua vez provavelmente nunca deixaria mesmo as fronteiras daquela recepção de hotel.

(Continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário