A Máfia.
Costuma-se muitas vezes designar certas organizações
criminosas como entidades abstratas, intangíveis, algo grande demais para
nossos reles olhos mortais, quando, na verdade, o modo operativo dessas
organizações, como não poderia deixar de ser, desenvolve-se também como um
trabalho operário de formiguinhas no dia-a-dia, no comércio - seja lá do que for - que pode estar acontecendo nesse
exato momento ao nosso lado, enfim, é algo que faz parte também do nosso pequeno cotidiano,
embora obviamente ninguém nos conte isso e a gente muitas vezes não faça também
lá muita força para ver.
Da autoria do italiano Roberto Saviano, Gomorra é uma
excelente leitura, não somente pela fluidez de seu texto, mas especialmente por
apresentar um panorama das entranhas do mundo mafioso – mais especificamente da
Camorra, a máfia napolitana e a mais violenta da Itália – de um modo como
talvez não tivesse sido feito até então.
Napoli é uma das cidades mais belas, mais pobres, e mais
violentas da Itália – e mesmo da Europa – , com altas taxas de desemprego e
poucas perspectivas para os jovens que resolvem lá permanecer ao invés de
partir para uma Roma, uma Milão ou algum outro centro do norte do país com mais possibilidades, o que facilita o recrutamento das formiguinhas.
Saviano, natural da cidade, traça um retrato de partes da sua
juventude caminhando lado a lado e vendo passar diante de si fatos e
personagens que fazem parte da história desse mundo obscuro para a maioria.
O autor narra minúcias sobre o
contrabando no porto de Napoli, principal porta de entrada na Europa para produtos "sem
procedência comprovada" (cerca de 60% da mercadoria que ali
desembarca invade a Itália e o resto da Europa sem submeter-se aos
tradicionais “empecilhos” alfandegários). Prédios no entorno do porto que são comprados e em seguida têm seus interiores completamente "esvaziados", tendo inclusive suas paredes divisórias derrubadas, transformam-se em verdadeiros esqueletos, para simplesmente servir de depósito
para a mercadoria que chega pelo mar.
Passeia pelos fedorentos lixões clandestinos improvisados em certas zonas da Campania (a região da qual Napoli é capital) e para onde é levada grande parte do lixo tóxico de toda Europa, envenenando vidas ao redor, entre as quais as dos próprios chefões que lucram com tal negócio.
Expõe ainda o chocante treinamento militar ao qual são
submetidos adolescentes recrutados pelo Sistema:
meninos que são vestidos com coletes à prova de bala e em seguida atingidos por disparos à queima-roupa no peito,
para acostumarem-se com a situação e perderem o medo diante do perigo.
Mas, ao mesmo tempo que visualizamos detalhes e minúcias do seu modus operandi, sim, ela talvez seja ainda grande demais para
os nossos olhos – e nossa mente: costuma-se pensar em máfia como um fenômeno
perdido lá no sul da Itália, quando seus tentáculos estão espalhados
assustadoramente através de suas conexões econômicas não só por todo aquele
país, como por boa parte da Europa, Estados Unidos, e outros tantos pontos
desse nosso mundão velho de meu Deus – inclusive, veja só você, que surpresa, nosso belo
Brasil varonil (anos atrás, um dos antigos chefões, Antonio Bardellino, foi morto no Rio de
Janeiro, e outro, Tommaso Buscetta , preso em São Paulo, por exemplo).
E você pensa num mafioso como um tiozão sentado na sua
poltrona com um charutão pendendo da boca e pose de Marlon Brando,
capangas com metralhadora ao redor, e, sim, talvez ele não fuja completamente desse
estereótipo, mas o importante é saber que ele não é só isso, ele também é o político
no congresso, e ele é o empresário trocando favores com esse político... e ele
é parte de um ciclo que infelizmente talvez nunca tenha fim.
Interessante, por sinal, falar no estereótipo do Poderoso
Chefão (o clássico filme, a propósito, é baseado no livro IL Padrino, do italiano Mario Puzo) pois, costuma-se pensar no mesmo, assim como em outros gângsters, como
inspirados na máfia “real”, quando, na maioria das vezes, pelo contrário, o que
acontece é que esses, os mafiosos da vida real, é que costumam inspirar-se nos
filmes de gângsters e copiar certo modo de agir, falar, vestir-se. Certo chefe de determinado
clan, conta por exemplo Saviano, mandou certa feita que se construísse no hall
de entrada de sua casa uma réplica perfeita da escadaria da casa de Tony Montana, de Scarface, aquela do tiroteio insano de
Al Pacino.
Roberto Saviano, após ver Gomorra transformar-se num sucesso
de público e crítica, vendendo milhões de exemplares do livro na Itália e em
todo o mundo, vive hoje sob escolta permanente em algum lugar desconhecido
longe de sua terra natal - afinal está, logicamente, jurado de morte pela máfia.
(por Diego T. Hahn)
Nenhum comentário:
Postar um comentário