Aos pés dos gaúchos
Os gaúchos têm uma
relação de muito afeto e zelo com seus pertences. Não que outros povos sejam
relapsos com seus bens, mas os sul-riograndenses conseguem demonstrar muito de
sua personalidade através de seus adereços. Os calçados que vestem, por
exemplo. Dependendo do modelo, da marca, da cor que calçam, podem expor suas
características, seus sentimentos, seu jeito de ser.
Comecemos observando um
dos símbolos do Rio Grande do Sul, a alparcata. Este rústico calçado – cruza de
um triângulo amoroso entre um mocassim, uma sandália de pano e um rolo de corda
– é usado por aqueles que gostam de ser elogiados e admirados, por cultivarem
as tradições gaúchas. Porém, existe uma grande diferença entre quem usa a
alparcata fechada – com a parte traseira no lugar certo – e quem a deixa com o
calcanhar do calçado sob os pés. O primeiro pode ser considerado um gaúcho
moldado aos costumes da cidade grande. Veste-se tradicionalmente – aos fins de
semana –, com bombachas apertadas, camisa pólo, boina com etiqueta de grife e,
claro, alparcata fechada. Intitula-se gaúcho nato, conhecedor das raízes. Mas,
questionado sobre seu gosto musical, sai cantando: “Créu, créu, créu...”. O
segundo vivente tem outros atributos. Não se importa com a beleza da bombacha,
mas sim com o tamanho. Quanto mais larga melhor. Geralmente, a faca está
embainhada na guaiaca, mas isso depende do lugar em que se encontra, pois arma
branca é proibida. Queria ter vivido no tempo das revoluções, assim a adaga
seria companheira inseparável. Chapéu é item indispensável no dia-a-dia, assim
como a alparcata arrastando a parte de trás por onde quer que vá. Ou uma boina
feita pela avó, que, mesmo nos dias de mais calor, só saem da cabeça para
limpar o rosto encharcado de suor. Gosta do Teixeirinha e toma chimarrão o dia
inteiro. À noite tem insônia, pois tem de ir ao banheiro várias vezes para
destilar a água quente do dia anterior. Mas os dois são gaúchos. Cada qual com
suas peculiaridades e modos de ser.
Outro calçado que é visto
frequentemente nos pés dos gaúchos é a bota. O ato de vestir um par de botas
tem um significado especial aqui no sul. Não se trata de um calçado qualquer,
mas sim de um resgate das origens do homem do Rio Grande. Na história do
Estado, a bota foi trazida por bandeirantes que por aqui permaneceram quando
descobriram as maravilhas que estavam escondidas nesta terra. Ela aparece como
coadjuvante, mas está lá, nos pés dos guerreiros farrapos. Por isso, os homens,
quando as vestem, se sentem realçados, também guerreiros. Só falta uma espada à
tira colo e um uniforme com divisas para saírem cantarolando o hino do Rio
Grande. Sim, por que a maioria dos gaúchos sabe o hino do Estado de cor. Eu
também sei. As duas partes, inclusive.
Também há diferenças
entre os dois gaúchos e suas botas. O da alparcata fechada, o da cidade grande,
sempre anda com as botas bem lustrosas, cheirando a Nuggett. Se pudesse
inventava uma bota com amortecedor. Seus pés ficam inchados e murchos depois de
um longo tempo com o calçado de cano longo. Já o rural coloca as botas pela
manhã e só as retira quando vai se deitar. O bico da bota é mais gasto que o
restante, de tanto tropeçar voltando para casa depois de dezesseis rodadas de
bocha e muito vinho. As botas sofrem ainda mais quando o moço vai ao baile. O
solado esfrega sua cara no chão, arrastado salão afora. As pisadas da prenda
machucam ainda mais aquele couro surrado. De volta para casa, as companheiras
têm um descanso merecido após tantos xotes e bugios.
Aos domingos, a velha
guerreira é posta de lado pelo bagual. Na missa, o gaúcho gosta de se
apresentar bem vestido, então pega a caixa de cima do armário e vislumbra
aquela maravilha, digna de um fazendeiro de estância. Lustrosa, com cheiro de
nova. Igual as botas do gaúcho urbano, mas o campeiro só as usa aos domingos. O
barulho do salto no assoalho da igreja transforma o rapaz em celebridade, para
onde todos os olhares se voltam quando o piso ecoa aqueles passos gaúchos. Ao
fim da missa, as botas retornam às suas caixas de papelão frias e escuras para,
dali a sete dias, deleitarem-se novamente com a luz do dia e o badalar dos
sinos.
Mas, engana-se quem pensa
serem somente os homens afetuosos por seus calçados. As gaúchas também
valorizam, e muito, o que carregam aos seus pés. Ainda mais se o salto agulha
foi adquirido em uma loja chique. Bom, aí parece que umas simples Havaianas se
transformam em artigo de luxo aos olhos femininos. E realmente se transformam.
Aliás, falando em salto agulha, até hoje é uma incógnita como as mulheres
conseguem se equilibrar de forma tão graciosa sobre aqueles saltos tão finos.
Fariam sucesso em um circo, pois o rapaz da corda bamba passaria vergonha ao
ver a destreza e maestria com que desfilam com seus sapatos de bico igualmente
fino. Tão fino que recebem, vulgarmente, o apelido de “sapato de matar barata
nos cantos”. Coitada das baratas, não tem culpa nenhuma da luta das mulheres quererem
se fazer bonitas umas às outras. Sim, pois mulher não se veste para o marido, e
sim para causar inveja nas amigas. Deus o livre se alguém aparecer com o mesmo
calçado ou roupa em alguma festa ou evento. É motivo de beicinho e vontade de
ir embora. Coitados dos maridos, pois sabem que terão que fazer uso novamente
do cartão de crédito para renovar o estoque de calçados da esposa. Isso quando
elas não usam a conta bancária do cônjuge para compras ocultas. Por que será
que as mulheres insistem em esconder dos esposos alguma nova aquisição que
estava em oferta? Detalhe: elas nos dizem sempre que o produto estava em oferta
e não podiam perder aquela oportunidade única. Não se preocupem meninas,
sabemos que todos os quarenta e três pares de sapatos que possuem são
extremamente necessários.
A afeição dos gaúchos e
gaúchas por sua alparcata, sua bota, seu salto agulha, é uma herança genética.
E isso se prolongará ainda por muitos anos. Seja qual for o modelo, a cor, a
marca, o estilo ou o tamanho, o calçado nos faz parceria em todos os momentos.
Nossas chuteiras são cúmplices das vitórias e derrotas no futebol. Nossas
pantufas nos aquecem os pés antes de dormir. Nossos tênis de corrida nos
amortecem quando queremos entrar em forma. A eles devemos o nosso saber andar,
pois, sem eles, teria sido muito mais escorregadio e doloroso aprender.
Que nossos calçados nos
levem ainda a muitos outros caminhos. Que possamos ser companheiros de jornada,
mesmo que nossos rumos se afastem. Se não puder ser em nossos pés, que seu
abrigo seja acalanto para os pés que vagam descalços. E se, um dia, não for
possível mais calçá-los, se seu solado não aguentar mais se segurar sozinho, se
seu cadarço deixar somente o coração apertado, que se renovem as esperanças.
Que alguma alma bondosa o triture em pedaços, sem dó nem piedade. Mas que o
transforme mais uma vez em calçado, para que outros pés sintam a tênue força
que move o passo dos gaúchos ruma a novas estâncias e novas amizades.
(Juliano Lanius)
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