terça-feira, 29 de outubro de 2013

Pelos sebos da vida: "Os vagabundos iluminados", de Jack Kerouac (por Diego T. Hahn)


Correndo o risco de ser chamado de herege por algum fã mais exaltado da geração beat e mais especificamente de Kerouac, começo este texto dizendo que me identifiquei ainda mais com este livro do que com “On the Road” (alguns outros experts da área ainda afirmam que "Visions of Cody" é que é sua melhor obra).

Os dois livros, na verdade, "Os vagabundos..." e "Pé na Estrada" (que é como "On the road" foi batizado por aqui - em Portugal, ganhou o engraçado nome de "Pela estrada fora", o que pode ter induzido alguns papais lusitanos a comprarem a obra no além-mar para seus pitocos, imaginando tratar-se de algum conto da carochinha)  se assemelham bastante, ao meu ver: o protagonista, e seu amigo “estranho” (como se houvesse algum personagem dos livros de Kerouac que pudesse parecer “não-estranho” aos olhos dos “normais”), zanzando pra lá e pra cá pelos States (com o plus de desta vez zanzarem também pelos "tetos" da América, em frenéticas escaladas pelos altos montes do país), em meio a muita bebedeira e filosofia. Japhy Rider é um perfeito Dean Moriarty. E no fim desta obra, tal qual no final daquela sua mais famosa, é ao suposto alter ego de Neal Cassady que Ray Smith/ Kerouac faz referência - e (uma espécie de) reverência - em memória ao olhar para (ou lá do alto) o céu da América.

A diferença aqui é que há uma abordagem, de certa forma, mais espiritual da coisa toda. O budismo permeia a obra, pela qual Smith e Rider fanfarroneiam em busca da iluminação, em meio aos seus bikkhus invisíveis. Tremendos bodsatvas!

Bem, Kerouac, como se sabe, é um tipo de leitura que não dá margem para meios termos: ou você o ama ou o odeia. 
E já estava mesmo na hora de abordar alguém dessa turma por aqui...

Truman Capote, por exemplo, avaliava assim seu estilo: “Isso não é literatura, isso é datilografia”. PAM!

Por outro lado, o pai dos beats influenciou caras como Jim Morrison, Bob Dylan, Charles Bukowski, Hunter Thompson, (o recentemente finado) Lou Reed, Neil Young... que tal?

Dois diferentes amigos meus, não tão famosos quanto os senhores acima citados, nos últimos tempos também me falaram de On the Road com pareceres distintos: Alexandre torceu o nariz, fez uma cara feia e disse que não gostou... Diogão mandou-me um sms: “Acabei de ler On the Road. É de arrepiar!”

Para quem nunca leu nada seu, nem "O Viajante Solitário", "Big Sur",  "O livro dos sonhos", nada, nem uma linha, enfim, é virgem de Kerouac mesmo e nem sabe direito de quem ou do que estamos falando, bem, difícil missão "traduzi-lo", mas, em bom (ou não tão bom assim) português, trata-se mais ou menos do seguinte, para dar uma breve ideia: 
O cara (1922 - 1969) foi um dos precursores - é, ao menos, o representante maior - de uma linha de escrita - associada também a uma geração de escritores "malditos" - cujo estilo (se dá para dizer assim) consistia (se dá para dizer assim também, visto que críticos afirmam faltar certa consistência nela) em uma prosa fluida, solta, livre de preocupações formais, com personagens - e autor - aparentemente em um eterno brainstorm, disparando e emendando pensamentos sobre pensamentos, concatenando-os, ou misturando-os ainda a outros, em longas e ininterruptas sequências (diz-se que Kerouac escreveu "On the Road", por exemplo, em três semanas abaixo de muito café - sim, café - e colou com fita as folhas umas às outras formando um imenso "folhão" para não ter que parar de datilografar para trocá-las), num ritmo por vezes quase "alucinado", sem pontos, às vezes sem vírgulas - em outras, com um monte delas - , num, como é chamado, “fluxo de consciência”, como se colocando no papel o que quer que vagasse pela cachola naquele exato momento, sem freios, e sem maiores reflexões pseudo-psicológicas além do que está ali na frente e da sensação que aquilo lhe emite, como simplesmente registrando e repassando detalhada e freneticamente para o leitor tudo o que se vê, ouve e se sente, e assim, nessa toada maluca, sendo milimetricamente descritivo (chegamos a sentir o cheirinho de suas refeições, improvisadas com o que havia à mão ou em algum boteco de beira de estrada - onde costumava comer sempre um bom bife -, feitas meio às pressas em meio a uma viagem e outra) e ao mesmo tempo conseguindo extrair poesia em meio a essa prosa doida toda, conversando com os animais e as flores e as coisas e o mundo como um todo.

Ou resumindo ainda mais, de outra forma: trata-se em geral de viagens (Jack e seus amigos eram uma espécie de "mochileiros" - embora uns mochileiros bem mais "crus" que esses da geração hostel que estamos acostumados a ver hoje; normalmente viajavam com um livro e uma garrafa nas mãos - e sem mochila), filosofia de bar e álcool.
Ou seja, para os "inquietos" é mesmo quase impossível não se inspirar e sentir  o "chamado" da estrada lá fora ao ler Kerouac.

E neste temos como bônus ainda a dupla montanhismo/ budismo.

Particularmente, comecei "Os vagabundos..." a mil, dei uma travada lá pelo meio (embora não consiga avaliar exatamente se foi o próprio livro que perdeu fôlego por ali ou se foi a mania que adquiri há algum tempo de ler dez livros ao mesmo tempo que me tirou um pouco do foco), e retomei com tudo do meio para o fim.

"Enquanto isso, no topo da montanha, onde as estrelas acenavam sobre as árvores, alguns casais davam escapadelas para ficarem se agarrando ou levavam garrafões de vinho e violões lá para cima e organizavam festinhas separadas no nosso barraco. Foi uma noite ótima. O pai de Japhy afinal chegou, depois do trabalho, e era um sujeito pequeno mas corpulento e durão, igualzinho a Japhy, começando a perder os cabelos, mas totalmente cheio de energia e maluco igual ao filho. Imediatamente começou a dançar mambos enlouquecidos com as garotas enquanto eu batucava em uma lata como maluco. "Vai lá, cara!" Nunca se viu um dançarino mais frenético: ficava lá inclinando o corpo para trás até quase cair, mexendo o quadril na direção da garota, suando, ansioso, sorrindo, contente, o pai mais maluco que eu vi na vida. Havia pouco tempo, no casamento da filha, ele aparecera na recepção ao ar livre correndo de quatro no meio das pessoas com uma pele de tigre nas costas, mordendo os calcanhares das senhoras e latindo. Ali, pegou uma garota de quase um metro e oitenta de altura chamada Jane e a rodopiou deum lado para o outro e quase derrubou a estante de livros. Japhy ficava indo de uma seção à outra da festa com um enorme garrafão na mão, o rosto brilhando de felicidade. Durante um tempo, a festa da sala fez esvaziar o convescote da fogueira e logo Psyche e Japhy protagonizavam uma dança tresloucada, então Sean deu um salto e a fez rodopiar e ela ameaçou desmaiar e caiu bem entre Bud e eu sentados no chão batucando (Bud e eu que nunca tínhamos garotas e ignorávamos tudo aquilo) e ficou lá um segundo deitada no nosso colo. Fumamos nossos cachimbos e continuamos a batucar. Polly Whitmore ficou pela cozinha ajudando Christine coma comida e até preparou ela mesma uma fornada de biscoitos deliciosos. Percebi que estava sozinha porque Psyche estava lá e Japhy não era dela de modo que me aproximei para agarrá-la pela cintura mas ela olhou para mim com tanto medo que não fiz nada. Parecia morta de medo de mim. Princess estava lá com um namorado novo e também ficou amuada em um canto. Perguntei a Japhy: "Que diabos você vai fazer com todas essas garotas? Não vai me dar uma?". "Pode pegar a que você quiser. Hoje à noite, estou neutro." "

Ah, sim, montanhismo, bebidas, filosofia, budismo e... claro, mulheres.

Principal nome da geração beat, vi recentemente uma entrevista sua - datada creio que lá do final dos ano 60, aparentando já estar meio de "ressaca" da coisa toda - na qual explicava que a expressão havia sido cunhada originalmente em função dos negros e pobres oprimidos da América (beat=batidos, amassados), ou algo assim, mas também mesclando-se com o sentido de beatitude e do ritmo frenético do jazz. No entanto, dizia que achava que o termo com o qual se costumava definir os autores daquela geração, os "beatniks", havia se tornado “pejorativo” e já não lhe agradava mais.

De qualquer forma, beato seja, Jack, você, seus beatniks, e todos os outros vagabundos iluminados deste mundo - por colocarem, de um jeito ou de outro, um pouco de (doida) poesia nessa zona toda.

 

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