quinta-feira, 4 de abril de 2019

"Meu amigo Diogo Khan, vermelho, do contra, versus as milícias sociais" (por Diego T. Hahn)


Bem, pessoal, o caso é que eu tenho esse amigo, sabe, vamos chamá-lo, digamos, de, hum, Diogo Khan... é, isso, Diego, digo, Diogo Khan.

Pois bem, pois o Diogo Khan jura que, até para evitar mal-estar com familiares e amigos - e um pouco, é verdade, por medo das tais "milícias sociais" - , durante os últimos estranhos meses (e até anos) evitou falar em política mais “diretamente”, quando escrevia a respeito (porque o Diogo Khan é "metido a escritor", sabe; desses intelectualóides da vida, que dizem que valorizam a literatura e que, portanto, ainda têm costume de ler, se informar, pesquisar, e às vezes também escrever, procurando ser o mais ponderado possível) em meio a algum texto tentava sempre usar de metáforas e humor, e sem apontar muito diretamente dedo, sem nominar ou partidarizar a coisa... mas, como dizem, "para que os maus triunfem, basta que os bons não façam nada" (claro, como dizem também, isso é relativo, ninguém é totalmente bom ou totalmente mal, essa linha por vezes é tênue, e todos acreditamos ser os bons e que os maus são “os outros”; então, qual o critério do Diogo Khan para essa seleção? Simples, numa palavra, segundo ele: humanismo)

Olha, caras, o Diogo Khan, humanista, mas, antes de tudo, humano, confessa humildemente, então, que andou sendo um tanto quanto hipócrita esses últimos dias/semanas/meses... ele dizia que, embora não tivesse votado nele e fosse contrário à maioria de seus princípios, fazer o quê?, agora torcia para que esse novo governo desse certo, e tal... 

...mas, balela: é tudo mentira! - eu venho agora aqui desmascarar o Diogo Khan.

 Pois após começar a caminhar para uma espécie de depressão em função do que lê diariamente nos comentários dos leitores de sites de notícias e jornais (sim, ele também é meio masoquista), Diogo Khan decidiu ser sincero: claro que ele torce para que o Brasil melhore – e logo (amanhã; ou, ainda melhor, hoje!) – , que diminuam os crimes (especialmente os violentos), que a corrupção diminua, que a qualidade vida em geral melhore, torce sim para que o Brasil melhore, mas, ele sente muito, mas é impossível para ele torcer por esse governo.

Por quê?

Porque ele é comunista, claro! Só pode. Assim como a Globo, a ONU, a Veja, o Faustão, o Paulo Coelho, o Facebook, Marine Le Pen, o Roger Waters, o Bono Vox, a Alemanha, o Museu do Holocausto, em Israel (os dois últimos – com sua pouca experiência no ramo, não é mesmo –  por mencionarem o óbvio, apesar de que parte da sábia, culta e instruída população brasileira tenha repentinamente começado a discordar: que o nazismo foi uma ideologia de extrema direita - alguns "milicianos sociais" brasileiros, que, contraditoriamente defendem mudança de embaixada para Jerusalém, chegam a negar ainda o próprio Holocausto, quando cerca de 6 milhões de judeus foram mortos pelo agora também comunista Adolf Hitler)...

E, claro, também pela sua natureza do contra; "se hay gobierno, soy contra", recita Diogo Khan, que às vezes se sente mesmo uma espécie de "exército de um homem só" - por mais que no fundo as suas posições se inclinem ligeiramente, claro, para um lado - , um estranho perdido na "terra de ninguém" (aquela zona de guerra, cheia de arames farpados, entre as trincheiras, sabe?), entre as barricadas dos dois extremados lados (mas, como um dos lados parece atualmente mais extremado e extremista, e de lá as balas e bombas zunem à sua volta com mais violência, é contra este que D.K. se opõe mais incisivamente no momento...).

Mas, brincadeiras à parte, mais especialmente pelo singelo fato de acreditar que não basta uma economia melhorar para a vida em geral melhorar – que a "vitória" deste governo seria, de certa forma, a vitória da falta de humanismo, seria a prova de que os fins simplesmente justificam mesmo os meios (não importa o que você diga ou faça, quem você desrespeite, o quanto você deturpe a História - se a economia estiver girando e todo mundo com emprego, ganhando bem, tudo bem)... 

Diogo Khan, pobre sonhador, prega que é preciso mais: é preciso a valorização, veja você, da educação, da cultura, da ciência (vale a ilustração de Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, que por outro lado dizia: "Quando ouço a palavra cultura, saco logo meu revólver..."). Sem isso, por mais que a economia esteja relativamente bem, ele acha impossível que se dê "o salto".

Se não tiver isso, portanto, não lhe serve. Embora não, não o considere um "vilão" (para Diogo Khan não há vilões e nem heróis nessa história - mas ele só não gosta dos que nem ao menos tentam raciocinar com parcimônia, por conta própria, e dos que desrespeitam os fracos e oprimidos) não basta, no entanto, para Diogo Khan a figura do empresariozão legalzão "botando banca" porque está fazendo a economia girar e se gabando de automaticamente gerar empregos.

Isso é bom, sim - melhor ainda para o empresariozão, claro, que por vezes anda de jatinho e passa férias na Suíça (sim, Diogo Khan também é meio invejoso e queria também ganhar bilhões e passar férias na Suíça... mas, quem mandou ler e estudar, né?) - mas não lhe basta. Diogo Khan quer é a tal qualidade de vida – plena, no seu todo: não só um troco no bolso; ele quer o tal humanismo (cristão? Onde estão os cristãos nessa hora?? Estão todos na Igreja?), quer mais sensibilidade, quer empatia... e, claro, se possível, também um pouco de poesia (olha aí, por sinal, até rimou!).

Diogo Khan diz que até torceria por este governo se o líder dele se penitenciasse, humildemente, fosse mais “humano”, não se escondendo atrás da tropa de choque de seus milhões de votos e, claro, das famigeradas "milícias sociais", e pedisse perdão por todas as vergonhosas asneiras que já disse (e, claro, que parasse de produzir diariamente outras tantas – como, por exemplo, defender a tal escola sem partido e ao mesmo tempo contraditoriamente tentar mudar a História, sugerindo adaptar livros de educação para sua ideologia)...

Torceria por este governo se os seus seguidores (S.S. - sigla de "seus seguidores", taokey?) admitissem - como alguns raríssimos conhecidos meus realmente já o fizeram, ainda que em off - : "cara, realmente, votei nesse cara, apesar do currículo e da inteligência no mínimo duvidosos dele, porque achava que não havia opções, achava que era o menos pior, para não deixar os comunistas (?) continuarem lá, para a criminalidade diminuir no país pois ele sem dúvida é um novo John Wayne tupiniquim que nos salvará dos malfeitores, para os aliens não invadirem o Brasil também (pois ele é um dos homens de preto, sem dúvida) etc... mas realmente, não posso admitir a defesa de determinadas posições anti-humanistas. É, não definitivamente não posso mesmo me permitir isso. Não posso entregar meu cérebro – e minha alma – assim de bandeja... por NENHUMA ideologia que não seja totalmente correta, em termos de honestidade e humanismo."

Torceria por este governo, se os S.S., que se emocionaram há tempos atrás com o drama dos índios (brazucas e norte-americanos, respectivamente) em "A Missão" e "Dança com Lobos", por exemplo, com o drama dos negros em "12 anos de escravidão", e dos gays em "Filadélfia", choraram com "A lista de Schindler", "O menino do pijama listrado" e "A vida é bela", e claro vibraram com o combate ao poder paralelo das milícias cariocas e suas influências no meio político e empresarial retratado em "Tropa de Elite 2", se dessem conta das suas contradições atuais e dissessem: não, realmente, não posso admitir tal tratamento de exclusão para certos grupos/povos/etnias tão sofridos (muito menos em prol de gente que quer por vezes simplesmente manter ou avançar mais um palmo de terra, para a compra de mais uma caminhonete último modelo...), nem a deturpação da História (ainda mais a História mundial!), nem dar meu aval indireto, relativizando a destruidora influência das famigeradas milícias urbanas - um mal que corrói todo o "sixtema" de maneira ainda pior que o tráfico de drogas, pois o corrói por dentro, prejudicando o trabalho dos bons agentes da lei.

Enfim, que seguissem o apoiando, okey, mas que deixassem de idolatrar a mediocridade (no sentido literal da palavra, de medianidade, taokey?), por vezes alçada, através do “humor” das "milícias sociais", provavelmente para sua própria surpresa, a salvadores da pátria (porra, nesse caso, Diogo Khan diz que ainda preferia o Sassá Mutema, então, caramba!... pois assim agradaríamos a gregos e troianos: um sujeito tosco no cargo mais alto do país e uma filha de militares – a professorinha Maitê – como primeira-dama; que tal?).

Porra, é pedir demais uma hora dessas um presidente de uma república do tamanho do Brasil com um mínimo de inteligência ("Ele sente-se poderoso, ele é um mito sem dizer nada, sem pensar nada. E ele foi incensado para isso. Sem esforço nenhum se tornou um líder depois de 28 anos de uma legislatura medíocre" - declaração do renomado jurista Miguel Reale Jr, que, claro, deve ser também "comunista"... apesar de ter sido um dos mais ativos propositores do impeachment de Dilma Rousseff), minimamente articulado (que, como diria um outro filósofo, não astrólogo, "quem não se comunica se trumbica"), que não entre em polêmicas desnecessárias, que não incentive o louvor a um tempo sombrio em que se dava choques em bebês e se espancava artistas em teatros (você que é fã da lendária atriz Marilia Pêra, por exemplo - ainda mais agora que ela já se foi, provavelmente - , sabia que ela chegou a ser despida e espancada em um camarim durante a ditadura? E também o foi o ator André Valli, o Visconde de Sabugosa do Síto do Pica-Pau Amarelo? Caramba, os caras bateram no Visconde de Sabugosa e você dá "vivas" para eles! Conforme documento da ONU referente ao assunto no Brasil de hoje, por sinal, "tentativas de revisar a História e justificar ou relevar graves violações de direitos humanos do passado devem ser claramente rejeitadas por todas as autoridades e pela sociedade como um todo...(...)comemorar o aniversário de um regime que trouxe tamanho sofrimento à população brasileira é imoral e inadmissível em uma sociedade baseada no Estado de Direito" - se tem algo contra esse trecho, proteste contra a comunista Organização das Nações Unidas, endereço: Nova York, USA, talkey?), que não seja adepto do totalitarismo, independente de esquerda e direita (o nosso atual, por exemplo, se dizia fã de Hugo Chavez, sabia? E tal qual o ex-presidente venezuelano, cogitava há pouco fazer como aquele, aumentar o número de ministros do STF - esse STF que você quer que seja dissolvido - , ele queria aumentar o número de ministros da casa - claro, passando a contar com o controle dela, através de sua grande quantidade de indicações...mas parece que a ideia, inacreditavelmente, "não pegou bem", assim como a ideia de unir Ministérios de Agricultura e Meio Ambiente, e transferir embaixada em Israel - bem, neste último caso, ficou de lambuja ao menos um "corajoso" desafio de um dos filhotes - nas "milícias sociais", claro - ao Hamas - porque, claro, tudo que precisamos hoje é uma guerra internacional contra outros extremistas, especialistas em bombas etc), disposto a governar para TODOS os conterrâneos, a apaziguar ânimos, a RESOLVER problemas, e não a CRIÁ-LOS, de forma boba, a todo momento, como um adolescente na internet? 
Ou teremos mesmo que sempre  aturar caricaturas e personagens no cargo mais alto do país?...

Ah, mas eles na verdade são nós, caro amigo... olhe ao redor: ele lá em cima é a sua voz – e cada vez que você ecoa essa voz, ela ganha mais força (e pensa menos – pois você isenta ele disso; você dá o seu apoio incondicional de torcedor).

Estranhos tempos, filosofa Diogo Khan: tempos em que, ao invés de seres humanos que fazem descobertas científicas e tecnológicas ,como o Professor Pardal, e trabalhos humanitários, por vezes voluntários, serem exaltados, o são grandes empresários, interessados muitas vezes unicamente na realidade em reproduzir a caixa-forte do Tio Patinhas (e que por vezes têm histórico de sonegação, evasão de divisas etc, enquanto pregam patriotismo com a camisa da Seleção - da Seleção de Patópolis?), por automaticamente gerarem empregos (sim, fator muito importante, sem dúvida, para um mínimo de bem-estar das pessoas e para a nossa economia girar e tal, quem seria maluco de dizer que não? – mas Diogo Khan, pobre idealista, ainda continuará idolatrando - além do finado Fernandão, é claro -  é quem trabalha, por vezes de maneira voluntária, como dito antes, para melhorar não meramente o salário (e não o próprio), mas as condições sociais em geral, culturais, de educação, das pessoas... como diria Belchior, cita ele: “... amar e mudar as coisas me interessa mais...”).

Tempos em que, ao invés de se ouvir a voz de pensadores e cientistas, portanto, se ouve a voz de astrólogos – e terraplanistas...
Enquanto isso, quando até velhos lobos (essa é uma daquelas metáforas, embora bem óbvia – creio eu) protestam, as ovelhinhas seguem na sua toada de manada, olhos fechados, induzidas a reproduzir um passado obscuro recauchutado como um presente de futuro... Prova de que o gado age como gado – sem iniciativa própria, seja para pensar ou para se movimentar, tendo sempre que ser "tocado" por alguém mais esperto – é que só nos últimos anos boa parte da população (inclusive classe média-alta, supostamente mais instruída) se revoltou contra o Molusco, o Luladrão, o Luizinho Nove Dedos, quando, já no longínquo 2005, era claríssimo o seu envolvimento no escândalo do mensalão e esse mesmo Diogo Khan - que apesar de vermelho não é uma ovelhinha cega - na época bradava indignado que o mesmo podia até estar melhorando as condições de vida da população mais pobre e o escambau (assim como admite algumas iniciativas razoáveis no governo de hoje, mais particularmente na área econômica), mas devia ser apeado de lá pois obviamente estava envolvido naquela maracutaia... e onde estava o gado então? Ah, mas a economia estava boa (aqueles empresários patriotas estavam ganhando bem, muito bem!) então não tinha ninguém para puxar a boiada... pobre exército de um homem só, Diogo Khan não tem $ (e nem "milícias sociais") para bancar revoluções - e também infelizmente não é jedi para mudar as coisas só com a força do pensamento (e mais infelizmente ainda também não tem um sabre de luz nas mãos - ah, como Diogo Khan queria um sabre de luz hoje em dia para enfrentar a "Primeira Ordem"*!)...

*Ver "Star Wars - O despertar da Força": a Primeira Ordem é uma ditadura militar autocrática, surgida das cinzas do Império, 30 anos após a saída de cena deste... (ah, sim: qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, claro)

Ah, mas claro, no fundo é tudo um jogo de cena e o Diogo Khan só podia era estar defendendo esses "rebeldes", esses vagabundos vermelhos: humanista uma ova; ele é um patife comunista, não é mesmo!? É, é isso aí; e viva a Guerra Fria – em pleno Brasil de 2019!

Diogo Khan até gostaria mesmo de descer, mas só não pede para pararem o mundo, pois, óbvio, todo mundo sabe: o mundo não se move; a Terra, claro, é plana (Chupem essa, Copérnico, Galileu e turma de burros atrasados - e viva esse nosso genial Brasil "do futuro"!)


sexta-feira, 1 de março de 2019

"Poesia para quem precisa" (por Diego T. Hahn)


(Na nossa meio preguiçosa onda de reprises (e propaganda, claro!) aqui, vai mais este - lembrando que qualquer semelhança - por mais metafórica que seja - com fatos, situações e pessoas (e por mais que estas defendam práticas violentas de repressão e, por algum estranho motivo, ao mesmo tempo, se revoltem com iniciativas artístico-culturais) reais e atuais é mera coincidência (embora talvez sua publicação agora não?...) - o texto abaixo foi publicado em 2014, na coletânea de contos "Histórias Reais de Amigos Imaginários (e Vice-Versa)"... - ah, sim, creio que talvez importante mencionar também: não, o livro em questão não teve apoio da Lei Rouanet, nem de nenhuma outra lei; só de amigos e parentes mesmo!)


"Onde se queimam livros, cedo ou tarde acabam queimando pessoas..."
(Heinrich Heine)


- Mão na cabeça, vagabundo!

- Olha aí, capitão: caderninho de poesia...

- Preso em flagrante, hein, vagabundo!? Poesia, hein??

- Hã?... Eu estava aqui só escrevendo... não sabia que...

- Não sabia o quê? Não sabia que é o primeiro passo, malandro? Não sabia que a poesia é a porta de entrada??

- Porta de entrada para o quê, chefia?...

PLAFT!

- Ai!

- Tá te fazendo, malandro? Vê aí o que tá escrito, Serjão... lê aí...

- Humm...

- Vê se ele cita a polícia aí...

- Não, capitão... não...

- Bom, vê se ele preparava então alguma rima pra polícia...

- Hum... tipo o quê, capitão?

- Hum... não sei... olha aí, Serjão!... sei lá... “polícia”... “polícia”...

- Milícia, chefia?

PLAFT!

- Ai!

- Tá chamando a gente de miliciano, é, malandro?

- “Delícia”. Achei aqui, capitão...

- Ôpa! Olha aí... temos provas agora!... lê, lê o resto aí, Serjão.

- “Tuas mãos pelo meu corpo... o mundo absorto... no teu seio eu navego... numa tarde de delícia”...

- Olha aí! Atentado ao pudor, no meio da rua!

- E a rima, capitão? Tá faltando a rima...

- É verdade. Cadê a rima, malandro? Onde ia entrar a rima aqui??

- Não tem rima... é um poema que...

PLAFT!

- Ai!

- Tá tirando a gente pra ignorante, malandro? Acha que a gente não entende de poesia, é??

- Não, não é isso... é que...

- Olha essa outra, capitão: “Teu corpo é meu castelo... meu porto seguro... quando ouço tua voz...”

- “Meu mastro fica duro”? Mais atentado ao pudor aí??

- Não. “O inimigo pede trégua”...

- O quê??

- É... por que não usou “égua” ou algo assim antes então?

PLAFT!

- Ai! Pô, por que essa agora?

- Nem sabe fazer poesia, vagabundo!... Ah, tamo perdendo tempo aqui... nem é poeta nada, Serjão...

Jogam o caderninho nele e vão embora.

Ele fica imóvel ainda por um tempo ali escorado na árvore, observando eles se irem.

Em seguida, pega o caderno e a caneta e volta a buscar a rima que tanto procurava o dia inteiro e que estava quase lhe chegando antes de ser interrompido...

Fictícia?”





domingo, 23 de dezembro de 2018

"Papai Noel não existe" (por Diego T. Hahn)


(Misturando preguiça de fim de ano, ritmo já meio de férias, e, bem, a temática pertinente - a propósito, tirem as crianças da sala (ao menos, aquelas ainda "crentes"...)! - , vamos encerrar 2018 aqui no De Letra com uma reprise - texto que, não custa nem um pouco reprisar também, foi selecionado no ano de 2013 para a coletânea dos melhores do Prêmio Sesc de Crônicas "Rubem Braga", de Brasília/DF - obrigado, obrigado!... E Feliz Natal e tudo o mais!)

Não lembro bem do exato momento em que esse fato se deu - o que me parece estranho, já que é de certa forma um "divisor de águas": agora você é um mocinho, não é mais tão ingênuo, não acredita mais em tudo que te dizem, sabe que há muito mais coisas por trás das coisas por trás de todas as coisas, e às vezes as pessoas só querem te iludir e...

Bem, enfim, você entendeu: é um "momento-chave". Pois, como dizia, não lembro bem do exato momento em que descobri – ou me contaram – que o bom velhinho não existe, ao menos não aquele bom velhinho, que bom velhinho de verdade mesmo é o vovô e ele não dirige um trenó voador e ele tem como animal de estimação um protocolar cãozinho e não um bando de renas. Não lembro, aliás, se descobri por conta própria ou se alguém me contou, mas não creio que tenha restado algum trauma da revelação; ao menos não tenho registrado conscientemente na memória algum "choque" decorrente de tal descoberta...

Penso nisso, no entanto, agora, ao sentir essa melancolia, essa nostalgia, essa tristeza misturada com alegria inundar meu peito, ao flagrar o palhaço, ainda todo maquiado, fora do picadeiro, fumando um cigarro e esbravejando algum palavrão em protesto contra alguma coisa que o incomoda ou contra as agruras da vida em geral, com um tom de voz e uma carranca totalmente diversos daqueles impostados naqueles mágicos momentos de alguns instantes atrás no decorrer do show.

Esse palhaço fora do picadeiro é a vida crua e real. Ele é a revelação que Papai Noel não existe mais uma vez sendo jogada na minha cara, depois de tantos anos.

Não só ele, na verdade, como qualquer artista em geral, quando o vemos “do lado de fora”, falando de qualquer futilidade do cotidiano, como a gente, nos dá uma certa sensação de “pertencimento” ao mundo, uma sensação de que a nossa vida não tem nada de excepcionalmente banal – ela é banal como todas as outras, mesmo aquelas das estrelas – e ao mesmo tempo de desilusão.

Pois sim. No fim das contas, é isso: vivemos de ilusão.

É como ver o ídolo do nosso time indo embora depois de anos de clube e jogando no rival, beijando a camisa adversária como um dia beijou a nossa; é como ver os erros de gravação de um filme; é como perceber que talvez não haja nada além dos erros de gravação.

Mas ainda assim vivemos e continuamos nos alimentando de ilusão. Por mais racionais e duros que sejamos, invocamos vez em quando nos nossos íntimos aquele resquício de magia que tem um quê de infantilidade – ou vice-versa – lá no fundo do peito. Apesar de termos certeza de que tudo isso aqui se resume tão somente a células, carne e barro vagando a esmo pelo espaço, olhamos da janela para o céu estrelado na calada da noite e nos permitimos viajar longe por alguns instantes, solitariamente, em segredo, sem que ninguém mais saiba, naquela nossa nave particular, buscando por um algo mais lá nos confins do universo – ou mesmo em alguma outra dimensão só nossa.

E assim, quando voltamos, por mais desgastados, ranzinzas e céticos que sigamos, continuamos rindo do palhaço – e, de vez em quando, nos flagramos até mesmo dando uma olhada meio de relance, como quem não quer nada, para a chaminé em meio à ceia de Natal.

domingo, 7 de outubro de 2018

"A Profecia: Esquecendo a lição de Optimus Prime, Marco Véio rumo ao Planalto..." (ou "Só a Arte salva") (por Diego T. Hahn)


Cara, o que eu queria dizer é mais ou menos o seguinte: eu posso não ser um mito, ok... maaass... ando nuns delírios de ser mesmo uma espécie de profeta (bem, como o nosso país é talvez o mais democrático do mundo – aparentemente qualquer um pode ser presidente, independentemente dos delírios – , por que não já começar a pensar em um corrida ao Planalto baseado então nesse meu novo status??...)

O caso é que há alguns (3?4?...) anos, logo após a explosão da revolução pós-pós-pós-digital, com a proliferação dos smartphones que curiosamente geraram não uma maravilhosa onda de informação como seria de se supor (meio que utopicamente, agora vejo, é verdade...) mas sim primeiramente uma insuportável onda de popularização dos tais dos memes, que pipocavam (e continuam pipocando) pra lá e pra cá, eu (que não tinha – e, acredite, continuo não tendo – face ou mesmo o tal do uáts) olhava para a galera em alguns encontros, churrascos, ou simplesmente no dia a dia, e observava – fora a brincadeira inicial do “profeta”, não queria dar uma de visionário às avessas, mas há coisas que só você olhando de fora para entender - cada um no seu aparelhinho, dando risadinhas e se cutucando e mandando uns para os outros os videozinhos e imagens engraçadas durante duas horas seguidas – e me mostravam e eu às vezes até me esforçava, para não parecer tão "dissonante", mas em geral não conseguia entender qual era a graça daquelas piadinhas toscas ou daquelas imagens bizarras (em sua maioria, coisas nada inéditas, ou no máximo um pouco curiosas às vezes, vá lá, mas que haviam por algum motivo atingido uma aura, um status pop... Lembra, por exemplo, do Marco Véio? Um dos involuntários “precursores” dessa nova onda descerebrada – e, diabos, era um tal de taca le pau pra cá, taca le pau pra lá, taca le pau pra todo lado!... e eu só ia abaixando a cabeça, procurando não ser atingido... fazer o quê?).

Ah, mas que sujeito chato sou eu também, que não acha nada engraçado, praia, macaco, tobogã, Marco Véio, eu acho tudo isso um saco, admito!...

Mas, cara, seja como for, noves fora minha chatice em termos de humor, já ali senti que havia algo muito errado em curso aqui por estas nossas bandas. Sim, era possível se perceber que uma burrificação em massa estava em franco processo na nossa sociedade tupiniquim moderna. De alguma forma, a tecnologia, que havia avançado inacreditavelmente, possibilitando fantásticas alternativas de crescimento em termos de informação e comunicação, estava de alguma forma gerando uma terrível involução cognitiva (ou seja, os telefones estavam mesmo mais inteligentes – mas nós, cada vez mais burros...). Mas havia também algo mais (começo aqui ligeiramente então também meus delírios "sociológicos"): não era para eles a questão puramente da graça do meme em si; mas uma certa sensação de "pertencimento" também: o não sentir-se sozinho neste mundo; o fazer parte de um "time" - nem que seja o time dos memes...

Agora devo dizer – se você ainda não tinha sacado –, prepare-se: meio através de “metáforas”, mas este texto é sim sobre política.

Porque tenho a teoria que ali foi o começo de tudo - ou, o começo do fim... (da picada?...)

Eeee... corta!

 Bem, já que estou sendo deveras pretensioso com minhas teses, vamos agora a uma singela análise sociológica do brasilian (supostamentis) sapiens – ou seja, eu, tu, ele(não?)/ela, nós, vós, eles/elas... Por que não? (Isto é, por que não além do fato de eu não ter um diploma de sociologia? Bobagem... Já que todo mundo – ou ao menos todo o mundo facebookiano – atualmente é especialista em tudo, por que também não eu, pô? Só porque não rezo também para o Deus Zuckerberg? Rá! Vocês – quatro ou cinco leitores deste blog – vão ter que me engolir do mesmo jeito!...)

Pois bem... a tese, lá vai (ok, se quiser passar para uma parte mais “divertida”, e “metafórica”, pode pular para 4 parágrafos adiante!):

O caso é que o brasileiro, independente da classe social (e mesmo, caramba, do grau de instrução – inclusive, de acordo com pesquisa feita pelo instituto britânico Ipsos Mori, o brasileiro é o segundo povo no mundo (perdendo só para o sul-africano) com a visão mais distorcida da própria realidade... bem, a proliferação das famigeradas fake news, mesmo entre gente facebookiana/uatsápiana teoricamente instruída, só corrobora isso, não é mesmo?), parece transitar entre a falta de "cultura" e o medo, o que acaba gerando uma espécie de hipocrisia crônica nesse nosso povo – e, claro, diferente do que muitos pensam, uma gente em termos gerais deveras preconceituosa/egoísta.

Falta de cultura, pois educação, de melhor ou pior qualidade, até é oferecida em nosso país, todo mundo teoricamente tem acesso a ela, mas a questão é que percebe-se que mesmo aqueles que têm o acesso à melhor não conseguem dar “o salto” que só a reflexão verdadeira (através da famigerada "cultura" – o pensar de formas diferentes...), é capaz de permitir (então, se você engole todas as bobagens que lhe repassam no facebook e no uatsáp, sinto muito, mas não adianta nada sua formação superior, sua pós, seu mestrado, seu doutorado... você é instruído, mas burro).

E o medo é o medo mais primordial, da violência, sim, mas também o medo de parecer fraco, medo de admitir-se fraco (medo de admitir a fraqueza de não saber determinado assunto, por exemplo, que talvez seja o mais pertinente nesta avaliação... melhor ter certeza de tudo, não é mesmo, ainda que possa não ser a verdade verdadeira?), mascarando-o portanto com agressividade, ou seja, com mais violência, ou ainda, procurando "virar o jogo" não com argumentos mas com a sua tradicional "ginga" e "malemolência", com sarcasmo, ironia, através da  velha e boa malandragem (criticada mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo, de certa forma, cultuada em nosso país – afinal, quem prefere, por exemplo, no dia a dia a convivência com o chato certinho ao invés do charmoso cara comunicativo e engraçado, ainda que este resvale um pouquinho para o “lado negro da força”?) e do politicamente incorreto, que, pois bem, é exatamente mais engraçado – e másculo!

Pois a propósito de chato certinho – e agora pulando diretamente para a área das “artes” – , lembro de uma história em quadrinhos da minha infância, dos Transformers, em que o Optimus Prime, chefe dos “mocinhos”, disputava com Megatron, líder dos malvadões, uma partida de uma espécie de videogame, era uma realidade virtual na qual os avatares dos dois se enfrentavam para decidir a guerra entre autobots e decepticons (para evitar mais destruição e mortes), e Optimus vencia Megatron, que devia então ser destruído na vida real com o simples apertar de um botão. Mas então, para surpresa de todos, Optimus diz que não pode ser assim pois trapaceou, pois puxou uma espécie de cano naquela realidade virtual, fazendo cair no abismo e morrer uma porção de pequenos seres que viviam ali... para incredulidade dos seus próprios comandados – e minha também, óbvio – Optimus dizia que ele é que devia ser destruído por ter matado aquelas criaturas que não existiam na realidade, e Megatron seguiria em frente, forte, belo e mau. Meio burrico, pragmaticamente falando, me parecia, mas, ao mesmo tempo, exemplo máximo de lisura e cavalheirismo que já vi, ao menos na ficção, e, bem, ainda que nem perto disso – furo sinal vermelho de madrugada, com a justificativa de não dar mole pra violência, colei muito durante os anos de estudante, já menti pra caramba nessa vida, ainda que sob a justificativa de “mentiras sinceras” etc – procurei de uma forma ou outra nortear ética e moralmente minha vida a partir de então de acordo com o mais próximo possível daquela lição de Optimus Prime.

E, buscando esse exemplo do líder dos Autobots, procuro sempre questionar carinhas que vêm com enfáticas opiniões, no mínimo polêmicas, mas supostamente engraçadas ou revolucionárias (ao menos nas cabeças deles...), se seriam eles capazes de defender essas ideias, que defendem ali no churrasco ou no futebol em meio aos outros carinhas (acredito que mais procurando reforçar a “moral” deles do que propriamente emitir uma opinião realmente sincera sobre o assunto), em um microfone, em um auditório diante de um público variado e desconhecido? E, talvez o principal, o fariam, defenderiam essas ideias, para um filho pequeno deles?...

Mas, com licença, a propósito de artes e voltando à tese, só que pulando dos quadrinhos para o cinema, o brasileiro mostra então toda sua hipocrisia mesmo, esta forjada sem que ele se dê conta através do medo e da falta de cultura, quando se sensibiliza por exemplo em situações bem retratadas na telona ou na telinha – diante do sofrimento de certas minorias, por exemplo (e nem vou adentrar na temática da Segunda Guerra aqui, para não "ferir sentimentos"...); o brasileiro emociona-se com filmes como “Dança com Lobos” e “A Missão”, mas, curiosamente, ignora, ou relativiza a questão, quando HOJE, na vida REAL, certos indivíduos que estão no poder ou marchando rumo a ele no país demonstram total desrespeito, por exemplo, pelos povos indígenas, e por outros grupos em situação de vulnerabilidade - sinto muito, mas não consigo evitar: minha "formação" obtida através da ficção também não me permite jamais voltar-me contra os "fracos e oprimidos"... (não, também não quero fazer o papel, mas, bem, talvez o que nos falte seja mesmo um Kevin Costner “vira-casaca” no que resta de nossas aldeias, não é mesmo?...)

Mas por falar em filmes, algo na atual situação do nosso país também me remete ao penúltimo Star Wars, o tal Despertar da Força... caramba, depois de tudo aquilo que passamos, com a vitória final dos rebeldes sobre o Império em O Retorno de Jedi, 30 anos depois (!) há uma sombria Primeira Ordem, querendo reimplementar aquele regime, com tudo o que se passou parecendo ter sido esquecido! (hey, criaturas facebookianas, assim como eu não quero acabar num calabouço por escrever textos como esse aqui, vocês também não querem levar porrada após terem seus textões debulhados por uns tiozinhos mal-humorados num porão, né? Não é 13, nem 17; é 2018, porra!!)... – o problema aqui, no entanto, é o risco de um desses grupos se apossar da ideia de que, tal qual naquele filme, seu messiânico Luke Skywalker também está “isolado” e sem nada poder fazer no momento (portanto, perdão, George Lucas! – Deixemos as guerras lá nas estrelas, já que temos a nossa própria aqui, entre elas...)

Pois ainda no terreno da ficção científica – agora me empolguei! – , às vezes sinto nos últimos dias também  inacreditavelmente estar vivendo um daqueles sombrios futuros alternativos de alguns filmes, como “Efeito Borboleta”, ou “De volta para o Futuro 2” (caramba, nossa mãe está prestes a casar com o imbecil do Biff, cara!! Vocês tão entendendo isso???)...

Seguindo em frente nas citações cinéfilas, para finalmente chegar na minha “profecia” (não comigo, mas pode também fazer a relação com o anticristo do filme de mesmo nome aí com o seu adversário político, seja ele qual for... tá valendo – já que já se joga, por exemplo, o nazismo/fascismo de um lado pro outro mesmo, com direito inclusive a contestações de brazucas a contextualização feita institucionalmente pelo governo da própria Alemanha, veja você!): há um tempo atrás, pensando nesse medo de se falar a verdade e de se falar sobre coisas realmente importantes, refletir realmente sobre elas, mascarando isso através do “humor” que me parecia proliferar como uma peste com os tais memes pela internet, cheguei a escrever, falando sobre a “burrificação” que vinha acontecendo através da tecnologia, que me parecia que haviam dado ferramentas poderosíssimas a primatas, parecia o monólito diante dos homens-macacos (ver Kubrick)... como dito antes, a tecnologia evoluindo absurdamente, a comunicação teoricamente sendo facilitada como jamais imaginado, mas cognitivamente o brasileiro involuindo abruptamente... e foi, e foi, e foi... até que uma geração cresceu, foi forjada, através da linguagem que prima nessas novas tecnologias, através especialmente do humor desses memes, que virou o norte deles – como talvez a lição do Líder Optimus tenha sido um dia para mim... assim, eles baseiam-se a respeito do que realmente importa através do que é simplesmente mais engraçado, cool, do que está em voga na rede, de quem faz mais barulho, ou até mesmo simples e masculamente politicamente incorreto... isso dá até votos, veja bem. Você não precisa de uma plataforma de governo. Você não precisa de propostas. Você não precisa sequer saber falar. Você pode dar simplesmente declarações “engraçadas” (ou “diferentes de tudo que está aí”) – batendo em minorias, que seja... Você tem que gerar “memes”. Você tem que “mitar”, como eles dizem hoje em dia. Só assim você chegará ao coração deles.

Artes? Para quê? Ler? Quem lê hoje em dia? Notícias, jornais? Para que, se tem o face e o uáts para nos dar as últimas e mais importantes da nossa bolha – e, especialmente, saciar nossa sede de pertencimento e homogeneidade – ?...

Então, aonde chegamos? A uma disputa entre uma Gang 90 e as Absurdettes (e me parece que estamos mesmo fadados a ficar “perdidos na selva...” aqui por estes nossos pagos) que a meu ver nem deveria estar participando dela – talvez devesse estar se refundando, ensaiando mais, corrigindo as distorções dos acordes dos últimos shows, talvez até mesmo mudando o nome da banda, enfim, revendo conceitos musicais etc – e um Exército de um Homem Só (mil perdões, caro Scliar, por essa associação! Mas sei que neste caso posso contar ao menos com o seu senso de ironia...), com a diferença que o Capitão (!) Birobidjan (além de ser um fiel e revolucionário seguidor dos preceitos do velho Marx, claro), após seus lunáticos discursos, recebia o aplauso entusiasmado tão somente de pequenos homenzinhos imaginários... e não, como acontece insanamente com esse “nosso” atual, inacreditavelmente ovação de um grande número de gente de verdade!

A "solução", para mim? Ainda que não o melhor dos mundos, pareceria-me bem óbvia (embora provavelmente tarde...): procurar algum caminho pelo meio – e, no fim das contas, o principal, o que nos resta, seguir nosso caminho de evolução através – além claro do básico estudo e informação, filtrada, ponderada – das artes (leitura, cinema, teatro...), buscando novas ideias ou adaptar/refrescar nossas novas velhas ideias.

Mas, como aparentemente a nova arte realmente valorizada em nossos tempos é o meme... fazer o quê, pode seguir tacando le pau, Marco Véio, se quiser – só, por favor, não pros meus lados, ok, amigão??...


sexta-feira, 24 de agosto de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Final" (Por Diego T. Hahn)


Algumas semanas depois, contudo, aquela desleixada sequência acabaria me custando mesmo o emprego: eu continuava não engraxando o bendito sapato, pecado capital mor na empresa, além de aparecer sempre com o cabelo desgrenhado, barba por fazer e gravata torta... Eles ainda me abordaram algumas vezes, tentando me convencer a mudar o comportamento, mas, após mais algum tempo, percebendo que aquela situação era um trem descarrilado ainda em alta velocidade, me chamaram para fazermos um tal “acordo”. Pagariam tudo a que eu tinha direito e eu saía numa boa, sem treta jurídica etc.

Topei. Parecia-me justo.

Após oficializar o desligamento da empresa com a assinatura dos documentos no setor de RH, saí então triunfal pela porta principal do hotel naquele dia, orgulhoso, com a sensação do dever cumprido (embora menos pelo efetivo cumprimento do dever  e mais por essa oficialização da demissão), piscando e acenando com a cabeça para os ex-colegas que, eu percebia, me observavam com uma certa admiração no percurso pelo corredor da recepção – ou talvez fosse impressão minha, graças ao meu estado de espírito leve, e na verdade eles me olhassem era com “pena”... Severo, ao menos, eu via que certamente tinha um ar um pouco triste – talvez pela perda do seu “sócio”.

Fosse como fosse, ao chegar à escadaria que levava a calçada, ao mundo “lá fora”, desamarrei o nó da gravata e a puxei do pescoço. Desci os degraus vagarosamente e, ao chegar lá embaixo, joguei a gravata para o alto – o mais alto possível, tão alto quanto o osso do homem-macaco de 2001 que em seguida se transformava numa nave no espaço sideral - e segui caminhando, sem olhar para trás – com aquele gesto, eu também sentia que estava dando um salto no tempo, rumo ao futuro...

Não tinha ideia do que iria fazer a seguir e aquilo deveria me atormentar, mas não naquele momento; não, naquele momento aquilo me deixava era quase eufórico: eu não tinha ideia do que iria fazer e aquilo não me importava nem um pouco naquele momento...havia tantas possibilidades! Mas, mais importante do que elas, havia simplesmente aquele momento, no qual eu era o dono do mundo. O dono do meu mundo. Um mundo de incertezas, mas um mundo novo, inexplorado, um novo velho oeste (embora com a possibilidade tanto do ouro como do faroeste) no meu horizonte, e, enfim, um mundo todo meu, ainda que talvez só por alguns dias, ou mesmo horas ou minutos, pois logo, de um jeito ou outro, a vida viria me arrebatar lá fora com mais alguma das suas. Mas naquele momento, ainda que sem Kate Winslet (e ainda que ciente do provável destino parecido da minha nau pessoal na sequência), eu era Leonardo Di Caprio de braços abertos pendurado na proa do Titanic...

Fechei os olhos e senti então aquela brisa bater no meu rosto. Abri bem o colarinho e, soltando um longo grunhido de satisfação, finalmente consegui respirar fundo e senti aquele oxigênio invadindo minhas narinas, inundando cada ponto do meu organismo; respirar fundo, como se a minha alma voltando ao corpo, como se eu finalmente despertasse de um sonho, um sonho divertido, sim, mas como se voltasse à vida depois de um longo sono; respirar fundo, enfim, como há muito não respirava.

EPÍLOGO

(Alguns meses depois... o osso que vira nave... e vira osso outra vez)

Como a vida às vezes nos apronta algumas peças e o destino é também um sujeito um tanto quanto irônico, por uma série de fatores que formariam uma longa e interessante nova história mas que não vem ao caso mencionar aqui para não nos desviarmos do nosso foco principal, estava eu outra vez numa entrevista de emprego.

Em um hotel.

- Então, Sr. Marco...  – dirigia-se a mim o gerente, aparentemente empolgado – vejo que tem boa experiência na área... fale-me pois um pouco sobre ela...

Acomodei-me melhor na cadeira.

- Bem – afrouxando ligeiramente o nó da gravata, respondi – humm, vejamos... por onde eu poderia começar?...


Fim  (...?)


(Agradecimentos: aos chefes, pela oportunidade, e especialmente aos colegas malucos e clientes *%¨#¨%@, pela inspiração!)


sexta-feira, 17 de agosto de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 10" (Por Diego T. Hahn)


Pois com o tempo então comecei a relaxar de vez. 
Chegou um ponto em que já estava de saco bastante cheio de quase tudo e todos por ali, embora por um outro lado paradoxalmente gostasse ainda de trabalhar lá, é verdade – ao menos, gostava ainda de estar lá – , gostava dos papos sem pé nem cabeça com os mensageiros, gostava das bandas de Camaro e BMW, você sabe... mas estava cansado daquele terno, por exemplo, e mais do que dele estava cansado daquela maldita gravata, aquele símbolo-mor da opressão capitalista, aquela espécie de coleira, e estava cansado da minha cara com aquela pele lisa como bunda de bebê e daqueles sapatos brilhantes e daquele meu cabelo com gelzinho bem penteado. 
Assim, comecei a relaxar e, devo dizer, logo passei a me sentir realmente bem melhor ao começar a aparecer no hotel com a barba por fazer e o cabelo meio desgrenhado, como um homem de verdade. 
E o principal de tudo: olhava-me no espelho e, pela primeira vez desde que começara a trabalhar lá, sentia que aquele era eu de verdade. 

Na madrugada, com o intuito de prosseguir nesse privilégio do conforto em detrimento das aparências, comecei a ir trabalhar de tênis: um par preto, estrategicamente, para não correr o risco de ser detectado pelas câmeras de segurança – que obviamente estavam lá, afinal de contas, não para cuidar da nossa segurança mas sim para nos vigiar (para quem acha que seja exagero: antes de eu trabalhar lá, recepcionistas da madrugada tiveram armas apontadas para suas fuças em assaltos – mais de uma vez – , mas as tais câmeras só foram instaladas anos depois, quando suspeitou-se que alguns outros colegas andavam fazendo lanchinhos noturnos na cozinha do restaurante e cochilando nos sofás da recepção...), e cuja definição não era tão clara a ponto de detectar o tipo de calçado lá no pé do vivente.

Afrouxava então a gravata, tirava o casaco do terno, e ia jogar sinuca com o mensageiro na sala de jogos.

- Tu tá louco, cara? – perguntava-me o colega, indo meio arrastado, olhando para trás em direção à recepção. – Mas, e se...

Eu lhe respondia, genericamente, que não tinha galho (o que diabos queria dizer aquilo, na prática?...) e, ao chegarmos lá, eu tirava do bolso da calça uma latinha de cerveja e a abria.

- Cara, tu tá doido! – apavorava-se ele, então passando da interrogação para a exclamação.

- Calma, meu... toma aí... – eu respondia-lhe serenamente, tentando tranquilizá-lo, e começava a contar-lhe minha história no hotel, meu “aprendizado” lá com o velho Zeca e tal, as partidas de videogame, a viola, ao que ele pouco a pouco começava a relaxar e logo estava rindo também. – Nada é tão importante assim, meu velho... – concluía eu, enquanto acertava a oito na caçapa do fundo. “Chupa que é de morango! Ajeita as bolas aí de novo, filhão...”

Depois da terceira partida (2x1 para mim – deixei ele ganhar uma para levantar a moral do magrão e não estressá-lo tanto com a participação naquela “contravenção”) o mensageiro voltava então para a recepção para conferir se estava tudo bem por lá e deparava-se com um considerável número de hóspedes do lado de fora, batendo à porta para entrar. Há quanto tempo estariam lá? Ele se apavorava novamente então. Vou perder o emprego assim, cara!...

- Tu acha outro – eu lhe dizia, pragmática e filhadaputamente.

A verdade, como eu disse antes, é que já não estava mais nem aí para nada, mas não podia mesmo envolver meus colegas nessa. Assim, comecei a chamar alguns amigos de fora para me acompanhar na sinuca nas madrugas, deixando o mensageiro lá cuidando da porta...

Nessa toada, certa noite éramos sete na sala de jogos, bebendo e fumando charutos – havia uma espessa nuvem de fumaça sobre a mesa de sinuca – e alguém fatalmente mencionou que só estavam faltando as meninas. Algum outro canalha ligou então para uma garota – enfatizando que ela devia levar as amigas junto. 
Pronto, era só o que faltava.

Logo, pois, chegaram as moças – algumas, aparentemente um tanto quanto perversas demais, devo admitir, que chegaram a preocupar até a mim um pouco pelo andamento da coisa toda... -  e então la fiesta empezó de vez (sim, a certa altura, por algum motivo que não me lembro qual, falávamos também só em portunhol por ali...). O mensageiro voltava então a ficar aterrorizado.

- Fica frio, cara... se der problema, digo que tu não tinha nada a ver... – tentei tranquilizá-lo. Em seguida, porém, deixei-o à vontade para participar da festinha, se quisesse: - qualquer coisa, é só chegar ali... viu aquela ruiva que acabou de entrar? – sorria-lhe, ao que o rosto do capeta se iluminava e logo ele estava lá com a gente, bebendo e fumando, e em seguida agarrado na tal ruiva como se fosse a última daquele espécime de cabelo vermelho do mundo, enquanto na porta da frente do hotel os hóspedes se acumulavam, furibundos.

Na tarde seguinte, chamados eu e o colega pelo gerente para “conversar”, expliquei que aqueles eram amigos meus, tentei comovê-lo dizendo que estávamos bebendo, fumando e jogando em homenagem a um outro amigo, que havia falecido no dia anterior, e tentei tirar o corpo do mensageiro fora, dizendo que ele só abandonou a recepção e foi até a sala de jogos para tentar fazer a gente baixar a bola e meus amigos irem embora – até onde soubéssemos e pudéssemos ver, na sala de jogos ao menos não havia câmeras, graças ao bom Deus dos recepcionistas e mensageiros – , ao que acabou inclusive discutindo por um longo tempo com a gente e mesmo saindo na mão com um dos caras (na noite anterior cheguei a propor para o colega enfiar-lhe a mão na cara, para a coisa ficar mais fidedigna, se fosse o caso, mas ele recusou)... o gerente absolveu o mensageiro, mas eu não escapei de uma advertência, provavelmente mais pelo fato de estar com a barba por fazer e o cabelo bagunçado. Ah, há dias não engraxava os sapatos também – até porque, como dito antes, andava indo trabalhar de tênis... – , o que percebi ter sido o que mais o deixou brabinho de toda a história.

“Aquele filho da puta!”, na sequência da tarde esbravejou também furioso para mim o mensageiro - inclusive fazendo-me ter de segurá-lo por um instante - , referindo-se ao gerente, mas não pela tremenda reprimenda que levamos e sim como reação após eu lhe contar que, ao passar ao lado da sala da gerência num momento que o cabeçudo não estava lá dentro (depois concluí que devia estar no banheiro - e não cagando ou mijando) e olhar meio de revesgueio foi possível perceber, ilustrando a tela do computador do sujeito, no máximo de zoom possível, a imagem congelada da nossa querida ruivinha do evento da madruga anterior...

(Continua)

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 9" (por Diego T. Hahn)


Pois a propósito de figuraças, tive dois outros colegas que também marcaram época nos poucos meses que ficaram com a gente no hotel - ambos tendo começado "enganando bem" e terminado sua passagem por lá de forma estrondosamente negativa.

O primeiro, Roger, era um sujeito que costumava tratar todo mundo com sorrisos e fala mansa e todo um gestual que, embora conseguisse fazer parecer natural, com o tempo percebíamos que era minuciosamente pensado e preparado, e, estrategicamente, refinou ainda mais esse tratamento com determinados hóspedes para assim garantir polpudos elogios ao seu trabalho (era o seu objetivo descarado - e quase declarado: largava algumas piadinhas às vezes deixando subentendido, nas entrelinhas, que julgava-se capaz de passar a conversa em meio mundo mesmo... e, diabos, por vezes, parecia realmente ter essa capacidade), elogios esses que inevitavelmente acabavam chegando à direção. 

Por isso, tinha relevados pelos chefes seus também constantes atrasos e as volumosas críticas que recebia de outros tantos clientes do hotel sobre falhas "operacionais" suas - esquecia de passar recados, fazer reservas etc - , sendo eventualmente apenas chamado para conversar sobre o acontecido, no que sempre acabava por convencer o gerente – ou mesmo o proprietário – da sua “inocência”. O cara era mesmo bem articulado, tinha o diabólico dom da oratória, e sabia complementá-lo com uma voz macia, um sorriso na medida certa - sem parecer muito bajulador e aparentemente jamais mau-humorado - e gesticulando também com certa graça. Além do mais – e talvez seja o que os cabeças (na verdade, nem tão cabeças realmente) mais valorizavam – o canalha estava sempre impecavelmente vestido, roupa bem passada, cabelo bem penteado, barba bem feita, sapatos lustrosos. Com aquela beca, ele dizia rindo para nós, num daqueles poucos momentos que deixava as guampinhas um pouco mais aparentes, que sabia poder mandar os hóspedes tomar no rabo, se quisesse, que se safava.

Estivesse lá e provavelmente aquele nosso ex-colega europeu faria uma outra avaliação sociológica a respeito, considerando aquela uma boa amostragem daqueles que se destacam na nossa sociedade tupiniquim como um todo, pois, nessa sua toada, Roger foi mesmo ganhando moral e chegou a ser cogitado para uma posição de chefia... antes de descobrirem, digamos, uns ilícitos seus relacionados ao caixa da recepção. 

Ainda assim, ao mandá-lo embora percebi que os chefes lamentavam por ter de fazê-lo, provavelmente pelo fato de o cara se expressar mesmo tão carismaticamente bem e tê-los (sob certo aspecto, irreversivelmente) seduzido – mas, especialmente (eu percebia que olhavam fixamente para seus pés), por aqueles sapatos tão bem lustrados, caramba!...

Já um outro colega, Johnny, também deixou sua marca lá – esta, literalmente, bem menos sutil (na fuça de um outro colega!)...

Johnny era mensageiro e certa época estávamos trabalhando juntos. No início, tal qual Roger, o cara era extremamente cuidadoso nas palavras, nos gestos, no comportamento em geral... mas pouco a pouco começou a mostrar uma outra faceta sua, um  tanto quanto curiosa.

Tudo estava em silêncio, por exemplo, ali pela recepção, só nós dois na área, eu digitando no computador, e de repente eu ouvia uma gargalhada. Daquelas de ressoar em toda a recepção.

Olhava para trás e lá estava Johnny balançando a cabeça e, referindo-se a mim, dizendo para si mesmo “esse Marcão é uma figuuuuuuuura, cara...”.

Outra situação típica dos tempos de Johnny por lá era quando passava algum ser do sexo feminino, não importando idade, cor ou tamanho, e ele largava, com um sorriso de canto de rosto, sempre outro indefectível bordão seu: “e aí; te animava, Marcão?... Hein? Hein!?” – como indagando se eu teria ânimo de encarar sexualmente a referida criatura.

Certa vez, ainda, o movimento era grande e dois mensageiros, ele, Johnny, e Luciano, trabalhavam juntos para dar conta do entra e sai de carros. Era um sobe e desce frenético da recepção para a garagem e vice-versa, para retirar os veículos dos hóspedes que estavam saindo e guardar aqueles dos que estavam chegando, e eu observava Luciano sem parar naquela via crucis, Luciano que subia, Luciano que descia, Luciano que corria de um lado para o outro, Luciano que suava feito um porco, e subia também para levar bagagens de hóspedes nos quartos, enquanto, curiosamente, Johnny caminhava lentamente pelo saguão, balançando a chave de um carro na mão e conversando tranquilamente com algum hóspede, e dava risadas – provavelmente de alguma piada que ele mesmo havia contado – , depois desaparecia por alguns minutos, ressurgia tranquilão do bagageiro, pegava um copo d´água, tomava um gole, largava um “aaaaaaahhh!” com a boca bem aberta, pegava outra chave de carro que estava sobre o balcão da recepção, ficava olhando para ela por alguns instantes, descia caminhando lentamente para a garagem, voltava perguntando de que carro era aquela chave e de repente desaparecia de novo, enquanto Luciano reaparecia da garagem se arrastando com três chaves de carros nas mãos e me perguntando onde estava a chave do Peugeot que estava trancando a saída da garagem – e, mais importante, onde diabos estava o Johnny???????!!!!!!!...

Mais tarde, quando o movimento cessara, estavam os dois lado a lado na recepção; Luciano esbaforido, camisa toda empapada e buscando o ar, enquanto Johnny assobiava e tamborilava os dedos no balcão da recepção e a certa altura, olhando para mim, passou a mão na testa como limpando o suor e largou esta: “Tchêêêê... que correriiiia, hein!?”.

Johhny começou a atrasar e faltar muito ao trabalho e, após ser cobrado por um outro mensageiro, Vander, sobre esses seus atrasos e faltas (Vander acabava tendo que ficar mais do que deveria no seu turno em função da falta de pontualidade exacerbada ou das ausências de Johnny...), protagonizou uma cena de boxe em meio a uma troca de turno logo no início da manhã com esse colega. Johnny enfiou um cruzado de esquerda (uma coisa que nunca entendi bem foi por que de esquerda, já que não era canhoto...) na cara do indivíduo, justamente diante da porta de entrada e embaixo de uma das câmeras de segurança do hotel.

Inevitavelmente cada funcionário que chegava no trabalho aquele dia dava uma passadinha na sala da gerência para conferir o vídeo e dar boas risadas, como se fosse uma daquelas videocassetadas da tv, protagonizada - que orgulho! - pelos nossos dois colegas.

E assim, no dia seguinte, no lugar de Johnny eu tinha um novo colega lá...

Mas... como diabos eles conseguiam mais gente para colocar lá? De onde eles saíam??, voltava eu a me indagar.

Um gerente que lá trabalhou certa vez falou em uma reunião que deveríamos valorizar mais nosso trabalho no hotel, afinal estávamos lá dentro, no bom do ar condicionado, num ambiente elegante, e os trabalhadores braçais que passavam ao sol lá fora olhavam lá para dentro e nos invejavam, a nós nos nossos ternos e gravatas e sapatos bem lustrados. 

Pois pensei comigo na ocasião que sim, eles nos invejavam pelo fato de acreditar – você sabe, as aparências... –  que ganhávamos O DOBRO do que eles ganhavam ou algo assim, e nunca imaginariam que a situação fosse exatamente o contrário: como dito num capítulo anterior, as pessoas em geral costumavam achar que ganhávamos dois, três mil reais no hotel, quando na verdade ganhávamos por volta de um mísero salário mínimo lá...

Mas, enfim, assim seguíamos em frente - ao menos com nossos ternos, gravatas, sapatos e penteados impecáveis...

O requinte de crueldade, no entanto, estava no fato de ainda por cima termos de trabalhar de pé o dia todo – “como cavalos”, bufava um colega frequentemente – , sem nunca poder sentar; não tínhamos sequer um banquinho à disposição na recepção. Eu nunca entendi bem o por quê; ninguém nunca explicou direito aquilo. Ouvi alguns rumores, sim, sobre alguns ex-funcionários que acabavam ficando sentados o tempo todo, inclusive diante dos hóspedes e tal, numa época remota quando havia cadeiras ou bancos lá... não sei. Era uma espécie de lenda, lenda urbana, do Terrível Sentador da Recepção, que sentava o tempo todo na cadeira, e sentava no balcão, e sentava sobre os computadores e sobre os hóspedes e tudo o mais que cruzasse pela frente...

Lembrava-me do meu emprego anterior, no qual ficara somente cerca de três ou quatro meses. Era um hotelzinho bem simples, um dois estrelas – ao contrário desse outro no qual trabalhava já há alguns anos, que era um quatro estrelas – , mas lá, naquele suposto muquifo, lidava na recepção numa confortável cadeira de couro reclinável e giratória, tinha que vestir uma camisa, uma calça e sapatos, certo, mas ninguém ficava também controlando muito detalhada e obsessivamente meu fardamento ou alguns pelinhos no meu rosto, e ganhava comida, e ganhava mais ou menos o mesmo salário que no outro... não que quisesse voltar a trabalhar lá – não, em termos gerais nessa vida não costumo considerar essa possibilidade, de voltar atrás, retroceder; ainda que muitas vezes possa mesmo ser tentador, creio que devemos sempre andar para a (suposta) frente – mas a questão que eu me impunha era exatamente essa:

Cara, sapatos lustrosos e barba bem feita à parte, havia eu realmente evoluído?...

(Continua)