sexta-feira, 3 de agosto de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 9" (por Diego T. Hahn)


Pois a propósito de figuraças, tive dois outros colegas que também marcaram época nos poucos meses que ficaram com a gente no hotel - ambos tendo começado "enganando bem" e terminado sua passagem por lá de forma estrondosamente negativa.

O primeiro, Roger, era um sujeito que costumava tratar todo mundo com sorrisos e fala mansa e todo um gestual que, embora conseguisse fazer parecer natural, com o tempo percebíamos que era minuciosamente pensado e preparado, e, estrategicamente, refinou ainda mais esse tratamento com determinados hóspedes para assim garantir polpudos elogios ao seu trabalho (era o seu objetivo descarado - e quase declarado: largava algumas piadinhas às vezes deixando subentendido, nas entrelinhas, que julgava-se capaz de passar a conversa em meio mundo mesmo... e, diabos, por vezes, parecia realmente ter essa capacidade), elogios esses que inevitavelmente acabavam chegando à direção. 

Por isso, tinha relevados pelos chefes seus também constantes atrasos e as volumosas críticas que recebia de outros tantos clientes do hotel sobre falhas "operacionais" suas - esquecia de passar recados, fazer reservas etc - , sendo eventualmente apenas chamado para conversar sobre o acontecido, no que sempre acabava por convencer o gerente – ou mesmo o proprietário – da sua “inocência”. O cara era mesmo bem articulado, tinha o diabólico dom da oratória, e sabia complementá-lo com uma voz macia, um sorriso na medida certa - sem parecer muito bajulador e aparentemente jamais mau-humorado - e gesticulando também com certa graça. Além do mais – e talvez seja o que os cabeças (na verdade, nem tão cabeças realmente) mais valorizavam – o canalha estava sempre impecavelmente vestido, roupa bem passada, cabelo bem penteado, barba bem feita, sapatos lustrosos. Com aquela beca, ele dizia rindo para nós, num daqueles poucos momentos que deixava as guampinhas um pouco mais aparentes, que sabia poder mandar os hóspedes tomar no rabo, se quisesse, que se safava.

Estivesse lá e provavelmente aquele nosso ex-colega europeu faria uma outra avaliação sociológica a respeito, considerando aquela uma boa amostragem daqueles que se destacam na nossa sociedade tupiniquim como um todo, pois, nessa sua toada, Roger foi mesmo ganhando moral e chegou a ser cogitado para uma posição de chefia... antes de descobrirem, digamos, uns ilícitos seus relacionados ao caixa da recepção. 

Ainda assim, ao mandá-lo embora percebi que os chefes lamentavam por ter de fazê-lo, provavelmente pelo fato de o cara se expressar mesmo tão carismaticamente bem e tê-los (sob certo aspecto, irreversivelmente) seduzido – mas, especialmente (eu percebia que olhavam fixamente para seus pés), por aqueles sapatos tão bem lustrados, caramba!...

Já um outro colega, Johnny, também deixou sua marca lá – esta, literalmente, bem menos sutil (na fuça de um outro colega!)...

Johnny era mensageiro e certa época estávamos trabalhando juntos. No início, tal qual Roger, o cara era extremamente cuidadoso nas palavras, nos gestos, no comportamento em geral... mas pouco a pouco começou a mostrar uma outra faceta sua, um  tanto quanto curiosa.

Tudo estava em silêncio, por exemplo, ali pela recepção, só nós dois na área, eu digitando no computador, e de repente eu ouvia uma gargalhada. Daquelas de ressoar em toda a recepção.

Olhava para trás e lá estava Johnny balançando a cabeça e, referindo-se a mim, dizendo para si mesmo “esse Marcão é uma figuuuuuuuura, cara...”.

Outra situação típica dos tempos de Johnny por lá era quando passava algum ser do sexo feminino, não importando idade, cor ou tamanho, e ele largava, com um sorriso de canto de rosto, sempre outro indefectível bordão seu: “e aí; te animava, Marcão?... Hein? Hein!?” – como indagando se eu teria ânimo de encarar sexualmente a referida criatura.

Certa vez, ainda, o movimento era grande e dois mensageiros, ele, Johnny, e Luciano, trabalhavam juntos para dar conta do entra e sai de carros. Era um sobe e desce frenético da recepção para a garagem e vice-versa, para retirar os veículos dos hóspedes que estavam saindo e guardar aqueles dos que estavam chegando, e eu observava Luciano sem parar naquela via crucis, Luciano que subia, Luciano que descia, Luciano que corria de um lado para o outro, Luciano que suava feito um porco, e subia também para levar bagagens de hóspedes nos quartos, enquanto, curiosamente, Johnny caminhava lentamente pelo saguão, balançando a chave de um carro na mão e conversando tranquilamente com algum hóspede, e dava risadas – provavelmente de alguma piada que ele mesmo havia contado – , depois desaparecia por alguns minutos, ressurgia tranquilão do bagageiro, pegava um copo d´água, tomava um gole, largava um “aaaaaaahhh!” com a boca bem aberta, pegava outra chave de carro que estava sobre o balcão da recepção, ficava olhando para ela por alguns instantes, descia caminhando lentamente para a garagem, voltava perguntando de que carro era aquela chave e de repente desaparecia de novo, enquanto Luciano reaparecia da garagem se arrastando com três chaves de carros nas mãos e me perguntando onde estava a chave do Peugeot que estava trancando a saída da garagem – e, mais importante, onde diabos estava o Johnny???????!!!!!!!...

Mais tarde, quando o movimento cessara, estavam os dois lado a lado na recepção; Luciano esbaforido, camisa toda empapada e buscando o ar, enquanto Johnny assobiava e tamborilava os dedos no balcão da recepção e a certa altura, olhando para mim, passou a mão na testa como limpando o suor e largou esta: “Tchêêêê... que correriiiia, hein!?”.

Johhny começou a atrasar e faltar muito ao trabalho e, após ser cobrado por um outro mensageiro, Vander, sobre esses seus atrasos e faltas (Vander acabava tendo que ficar mais do que deveria no seu turno em função da falta de pontualidade exacerbada ou das ausências de Johnny...), protagonizou uma cena de boxe em meio a uma troca de turno logo no início da manhã com esse colega. Johnny enfiou um cruzado de esquerda (uma coisa que nunca entendi bem foi por que de esquerda, já que não era canhoto...) na cara do indivíduo, justamente diante da porta de entrada e embaixo de uma das câmeras de segurança do hotel.

Inevitavelmente cada funcionário que chegava no trabalho aquele dia dava uma passadinha na sala da gerência para conferir o vídeo e dar boas risadas, como se fosse uma daquelas videocassetadas da tv, protagonizada - que orgulho! - pelos nossos dois colegas.

E assim, no dia seguinte, no lugar de Johnny eu tinha um novo colega lá...

Mas... como diabos eles conseguiam mais gente para colocar lá? De onde eles saíam??, voltava eu a me indagar.

Um gerente que lá trabalhou certa vez falou em uma reunião que deveríamos valorizar mais nosso trabalho no hotel, afinal estávamos lá dentro, no bom do ar condicionado, num ambiente elegante, e os trabalhadores braçais que passavam ao sol lá fora olhavam lá para dentro e nos invejavam, a nós nos nossos ternos e gravatas e sapatos bem lustrados. 

Pois pensei comigo na ocasião que sim, eles nos invejavam pelo fato de acreditar – você sabe, as aparências... –  que ganhávamos O DOBRO do que eles ganhavam ou algo assim, e nunca imaginariam que a situação fosse exatamente o contrário: como dito num capítulo anterior, as pessoas em geral costumavam achar que ganhávamos dois, três mil reais no hotel, quando na verdade ganhávamos por volta de um mísero salário mínimo lá...

Mas, enfim, assim seguíamos em frente - ao menos com nossos ternos, gravatas, sapatos e penteados impecáveis...

O requinte de crueldade, no entanto, estava no fato de ainda por cima termos de trabalhar de pé o dia todo – “como cavalos”, bufava um colega frequentemente – , sem nunca poder sentar; não tínhamos sequer um banquinho à disposição na recepção. Eu nunca entendi bem o por quê; ninguém nunca explicou direito aquilo. Ouvi alguns rumores, sim, sobre alguns ex-funcionários que acabavam ficando sentados o tempo todo, inclusive diante dos hóspedes e tal, numa época remota quando havia cadeiras ou bancos lá... não sei. Era uma espécie de lenda, lenda urbana, do Terrível Sentador da Recepção, que sentava o tempo todo na cadeira, e sentava no balcão, e sentava sobre os computadores e sobre os hóspedes e tudo o mais que cruzasse pela frente...

Lembrava-me do meu emprego anterior, no qual ficara somente cerca de três ou quatro meses. Era um hotelzinho bem simples, um dois estrelas – ao contrário desse outro no qual trabalhava já há alguns anos, que era um quatro estrelas – , mas lá, naquele suposto muquifo, lidava na recepção numa confortável cadeira de couro reclinável e giratória, tinha que vestir uma camisa, uma calça e sapatos, certo, mas ninguém ficava também controlando muito detalhada e obsessivamente meu fardamento ou alguns pelinhos no meu rosto, e ganhava comida, e ganhava mais ou menos o mesmo salário que no outro... não que quisesse voltar a trabalhar lá – não, em termos gerais nessa vida não costumo considerar essa possibilidade, de voltar atrás, retroceder; ainda que muitas vezes possa mesmo ser tentador, creio que devemos sempre andar para a (suposta) frente – mas a questão que eu me impunha era exatamente essa:

Cara, sapatos lustrosos e barba bem feita à parte, havia eu realmente evoluído?...

(Continua)


Nenhum comentário:

Postar um comentário