quinta-feira, 3 de maio de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 5" (Por Diego T. Hahn)



- Mas eu disse para não tocarem no meu carro!

- Sim, senhor; mas o senhor quis estacionar por conta própria e acabou ocupando a vaga de dois veículos... e, como o hotel está lotado, nós tivemos que remanejá-lo e...

- Não me interessa. Eu disse para NÃO MEXER no meu carro!

- Certo, então o senhor terá que deixar seu automóvel na rua...

- Como é???

Eu falava ponderadamente, sem alterar a voz, com o sujeito, que, por sua vez, bradava e gesticulava tal qual um chimpanzé envenenado, aparentemente cada vez mais irritado com a minha argumentação, mas eu não podia deixar pra lá, ainda que a treta a princípio não fosse minha – ele havia começado aquele esporro para cima do mensageiro, que era quem havia manobrado o carro dele e que agora ali na recepção baixara a cabeça, encabulado, após até tentar explicar que “é que... senhor... eu... hã... o carro... tinha que...”, mas diante da pressão do cara não conseguira articular nada.

Cara, a questão é que, em situações assim, eu sentia-me na obrigação de contra-atacar.

Se a bronca era diretamente comigo, eventualmente eu até deixava passar, mas algumas vezes os hóspedes abusavam moralmente de alguns dos meus colegas que não tinham as “ferramentas”, ou mesmo disposição, para defender-se e confrontá-los adequadamente (ou o que eu julgava ser adequadamente), como eu aparentemente tinha (ou acreditava ter)... mas a verdade é que, de certa forma, poder-se-ia dizer que no fundo, numa conotação social e/ou intelectual, eu talvez pertencesse mesmo também à “tribo” dos hóspedes, embora estivesse apartado deles por um balcão - era como um membro deslocado do bando - , e, embora me entendesse bem com eles, era um "estranho no ninho" entre meus colegas, os “bárbaros”, como o próprio mensageiro Jorge costumava brincar, dizendo que eu parecia uma espécie de espião, fingindo-me inocente ali na recepção em meio àqueles check-ins e check-outs, enquanto preparava algum grande plano maquiavélico para conquistar o mundo ou algo assim...

Bem, não, não havia plano algum – não além daquele de simplesmente conquistar era o meu troquinho – mas devido àquela “pilha” toda – e a maior carga dela, confesso, vinha de mim mesmo – eu realmente acreditava ter aquela obrigação de ao menos lhes infligir, aos malditos hóspedes, derrotas supostamente (ao menos nas minhas utópicas suposições, quando criava um filme na minha cabeça) épicas, tal qual o fizeram – ou ao menos tentaram – os personagens do De Niro em “A missão”, do Tom Cruise em “O último samurai”, ou o do Kevin Costner em “Dança com lobos”... 
Quase todos eles se deram mal, é verdade, provavelmente eu também me daria, mas, que diabos, como bom camarada não podia fugir àquela luta!...

Fosse como fosse, e por mais que o confrontasse, o tal palhaço continuou estacionando o carro sozinho e ocupando espaço que poderia ser usado por outros carros e causando confusão na garagem, mas ao menos, como consolo, o dono do hotel, que acompanhava de longe a discussão, veio até mim na recepção depois que o cara se foi e, ao que eu esperava um esporro complementar (ou mesmo um golpe de misericórdia), me surpreendeu dizendo apenas: “Nem dá trela; o cara é um babaca mesmo...”, mostrando que o sujeito devia ser realmente um tremendo babaca.

Voltando às origens, quando pelo contrário raramente tinha contatos do gênero – na verdade, quase nenhum contato em geral – e tudo era mais tranquilo, logo no meu primeiro mês no hotel já me tinham colocado para trabalhar na madruga e foi na calada da noite que conheci o sorrateiro Zeca. Ele era então o mensageiro mais antigo lá depois do Severo e sabia tudo do hotel. Sabia, por exemplo – mostrando que conhecimento também enche mesmo barriga – , onde ficava guardada na noite a chave da cozinha do restaurante – local sagrado e de acesso supostamente proibido para nós. E lá pelas tantas, balançando-a entre os dedos, vinha até mim e perguntava:

- E aí, o que vai querer para hoje, véio?...

Eu, então meio constrangido – novato, ainda em fase de teste, não querendo entrar de cúmplice naquele ataque à despensa, mas também não querendo descartar completamente uma oportunidade de preencher o vazio do buraco negro que costumava assolar meu estômago naquelas ocasiões – , dizia que não sabia, até tentava desconversar, dizendo que "estava tranquilo" (numa tímida e duvidosa recusa), enquanto seguia teclando algo no computador sem sequer olhar pro cara... ele, porém, não se fazia de rogado e dava então as sugestões do dia – ou melhor, da noite:

- Batata frita, lasanha ou omelete? – e lá se ia preparar nossa janta das três horas, sem esperar eu responder. Voltava com uma latinha de refri pra cada um. 

O sujeito era mesmo um grande fanfarrão. Volta e meia levava consigo também uma viola, com a qual alegrava parte das nossas madrugas, e por vezes também um videogame. Nessas noites, o tempo voava. Ficávamos jogando futebol, estirados no sofá, na sala em frente ao bar, onde havia uma telona, e eu pensava “bem, daqui a pouco faço as duas ou três coisas que tenho para fazer”, que me tomavam menos de meia hora naquelas madrugadas, e aí quando nos dávamos conta, caramba, eram já cinco e meia! – o turno trocava às seis – e saltávamos do sofá e eu ia correndo imprimir os arquivos que tinha para imprimir e carimbar os arquivos que tinha para carimbar e tal, e ele zarpava para garagem ajeitar os carros... é, aquelas partidas eram duras e acirradas! Concentrados, perdíamos totalmente a noção do tempo. 
Mas o que importa é que, apesar de Zeca ser o dono do campinho – o videogame era dele – eu ganhava a maioria das partidas, para seu desespero – eu ria sarcasticamente ao ouvir com frequência o mensageiro que estava assumindo o turno no início da manhã perguntando para o meu rival “Por que essa cara de bunda hoje, mano?”...

Zeca não durou muito lá, depois que eu entrei. Não por revolta por aquelas derrotas, mas logo arranjou um emprego melhor e eu perdi meu cozinheiro noturno – e o companheiro de viola, e as partidas de futebol no videogame... O mensageiro que o substituiu não tinha a mesma audácia, e na verdade nenhum outro depois dele, ao passo que a partir dali tive que procurar outros entretenimentos para aquelas longas noites nas quais, posso jurar, ainda chegava a farejar por vezes feito um cão faminto ao longo dos meses seguintes o cheiro de lasanha ou omelete se aprochegando nas imediações da recepção ali pelas três da madruga - logo no entanto tornando à realidade e melancolicamente voltando a mastigar minha pastelina e sugar meu toddyinho então levados de casa.

(Continua)


quinta-feira, 12 de abril de 2018

"Diário de um recepcionista de hotel canastrão - Parte 4" (Por Diego T. Hahn)


O proprietário do hotel era um coroa, na casa dos sessenta e alguma coisa, mas meio judiado, representando mais (embora talvez tivesse até menos), gordo, e não de muitas palavras, que aparecia lá de vez em quando na recepção, perguntava a respeito da taxa de ocupação ou algo assim e desaparecia, provavelmente voltando para seu escritório para contar o vil metal que entrava abundantemente em caixa (e obviamente não respingando nada desse excedente para a gente...).

Soa como um clichê, sei, da imagem que o revoltado proletário costuma ter do "capitalista", mas, diabos, ele parecia realmente só se importar com aquilo: encher os bolsos com sua infinita bufunfa, pois passava os dias enclausurado naquele hotel, da manhã à noite; acredito que não tinha grandes diversões na vida, não praticava um esporte, não costumava sair para jantar – comia quase sempre no restaurante do hotel mesmo – ou beber com amigos... enfim... aquilo me incomodava – por ele, veja bem, mais do que pela minha invejosa revolta; pelo "desperdício" que eu via naquele quadro – mas, que fosse, o que me importava mesmo, no fim das contas, é que ao menos ele não me enchia o saco ali. 
Por mim, então, podia seguir com sua vida sedentária e antissocial, enchendo o rabo de grana, desde que não atrapalhasse minhas sessões de pornô ali no pc da recepção...

Ele só parecia não gostar muito realmente, não sei bem por quê, quando eu começava a conversar demais com os hóspedes.
Sei que não apreciava nem um pouco quando eu enveredava, por exemplo, pelo terreno da política, mas aí eu até entendo, já que, como bom canhoto, sempre pendi para a esquerda, ao passo que, como já dito e creio que bem ilustrado, obviamente ele era um tradicional burguesão.

 Mas, diretamente, ao menos, ele não vinha nunca me dizer nada, só olhava meio enviesado de longe; quem chegava junto era o gerente (ou, "o capachão", como o chamávamos pelas costas), dizendo coisas como “tu é pago pra fazer check-in e check-out e não pra resolver os problemas do mundo, seu Marco...”.

Ok, por vezes eu travava mesmo ferozes duelos verbais com os clientes ali na recepção – discutíamos sempre educadamente, mas por vezes num tom um pouco mais alto e enfático, enquanto a fila do check-in crescia e os clientes que aguardavam para serem atendidos faziam cara feia, como ficava também a do capo, que mandava então o capa (sim, nos referíamos aos dois assim: o capo ("chefe", em italiano, segundo um colega nosso que sacava das línguas estrangeiras) e o capa (de capacho mesmo)) vir falar comigo, fazendo todos os olhares do arredor voltarem-se para a gente, mesmo os daqueles hóspedes que estavam alheios à conversa, que só estavam coçando ali pelo hall de entrada, lendo um jornal, esperando seu carro ou algo assim, alguns se mostravam então até meio espantados, provavelmente com a ousadia daquele carinha atrás do balcão ali, um ignorante qualquer, querendo saber mais que gente culta e estudada como aqueles caras que ali se hospedavam; quem ele pensava que era?... 

Não raras vezes, porém, foram aqueles com quem respeitosamente bati (de frente) e debati (questões um tanto quanto polêmicas) que se despediram efusivamente de mim ao partirem, deixando-me além de tudo, como bons burgueses, uma boa gorja (ao passo que eu, como bom socialista, aceitava de bom grado essa contribuição para meu, digamos, “fundo revolucionário”)...

Certa vez, por exemplo, apareceu um militar americano no hotel e começamos a conversar, a princípio, sobre assuntos amenos na recepção. 
Lá pelas tantas, no entanto, estávamos a altos brados, eu batendo nos states por sua política externa, seu militarismo, seu imperialismo, blá blá blá, e o cara, que estava lá para um intercâmbio com o Exército Brasileiro, republicano, rebatia com o clássico discurso protocolar de que eles só queriam exportar sua democracia e tal...

Caramba, acho que nunca vi o dono do hotel me olhar tão feio como aquela vez!

No seu check-out alguns dias depois, porém, o americano me deu um longo aperto de mão e me deixou nada menos que vinte dólares de tip (Oh, yeah: God bless America, man!)...

Ah, sim, os jornais: a propósito de "acesso à informação", a princípio os jornais do dia eram deixados em um canto discreto sobre o balcão da recepção. Pois quando não havia muito o que fazer eu dedicava-me a me informar sobre os acontecimentos do mundo, lendo-os um por um. 

A direção, contudo, por algum motivo parecia não gostar daquilo...

Assim, eu procurava ler quando eles não estavam por ali, mas, ainda que largasse os diários e voltasse ao meu computador como se estivesse fazendo algo muito importante quando era flagrado no ato, logo decidiram tirar os jornais daquele local e passaram a jogá-los sobre uma mesinha do hall de entrada.

Decisão acertada, ao meu ver, por ser um lugar realmente mais propício para os hóspedes terem acesso a eles, ainda que não fosse por esse motivo que os tivessem tirado do balcão da recepção; não, tiraram-nos dali simplesmente para que nós, recepcionistas, não pudéssemos lê-los mais. 
Não ficava bem, você entende: o recepcionista, ainda que não tivesse porra nenhuma para fazer, ficar lendo jornais... onde já se viu? O desgraçado devia era ficar ali, parado, imóvel - e sempre de pé, feito um elegante puro sangue, pois não tínhamos também sequer uma cadeira, um banquinho, nada, para escorarmos por alguns instantes que fosse naquelas seis (por vezes aparentemente infinitas) horas ali, independente dos eventuais ócio e solidão momentâneos no saguão de entrada - , bem vestido, bem alinhado, sem fazer nada, sem ler nada, sem conversar também – sim, parado e calado, pois, a não ser sobre o estritamente necessário para o trabalho, não devíamos conversar com os mensageiros, mesmo que estivéssemos só nós dois ali, devíamos ficar em silêncio, militarmente olhando para o horizonte... seeeeeennn-TIDO!!

Porra! É sério, cara... Mas, que diabos, sinto muito, mas não, eles não conseguiriam conter minha sanha de informação...
Pois nessa nossa nova era tecnológica - embora àquela época ainda não tivéssemos os famigerados smartphones e o diabo a quatro - obviamente bastava eu entrar no computador e ler as mesmas notícias em versão on-line. 
Ha ha!... Assim, por mais que não quisessem, eu me mantinha razoavelmente informado.

É isso aí, meus amigos: querendo ou não, pois, eles teriam um maldito recepcionista que lia (sim, livros também!), relativamente bem inteirado dos assuntos do mundo, e pronto para dialogar sobre quase qualquer coisa com os preciosos hóspedes deles.

(Continua)

quarta-feira, 14 de março de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 3" (por Diego T. Hahn)


Carlos Silva é representante de alguma empresazinha aí e se acha uma grande peça do tabuleiro! 
O pior é que vejo dezenas assim todos os dias. Há também os empresários de meia tigela que se acham os novos Eikes Batistas ou Abilios Dinizes, mas não passam de uns presunçosos pés rapados de espírito (talvez só tenham mesmo do primeiro o instinto de subir a qualquer custo e só não estejam também enrolados com alguma lava-jato da vida porque não têm sequer a “competência” de chegar a um nível tão alto de malandragem)... 
É uma alegria quando aparece, por exemplo, um seu Antônio da vida, ou um João de Almeida.

João de Almeida é representante também de uma empresa de sei lá eu o quê – porque na verdade nunca dou muita bola para com o que ou para quem trabalham, só fico às vezes sabendo pelos meus colegas que se atêm muito a esses detalhes e costumam referir-se a eles por “o Carlos Silva da Petrobras” ou algo assim – , mas é um sujeito gente boa, de bem com a vida, que tá sempre batendo um papo informal e interessante ali pela recepção.

- E aí, seu Marco? Tudo beleza? E a mulherada?

- Ah, seu João, o senhor sabe como é... sempre prestigiando as beldades, né!? Porque não dá pra parar...

- Mas sai daí, guri; tu tem cara é de matador de dragão! Mas, bueno, um dia desses temos que ir juntos numa casa de diversão aí... tu que sabe das coisas vai me mostrar onde é o lugar bom aí da cidade...

- Claro, com o maior prazer.

Grande pessoa o seu João de Almeida. Não tá nem aí pra nada. Só quer saber de cumprir o horário dele e depois sair para algum bar para espairecer. Costuma voltar no meio da madruga meio torto. Como sou turnante – como explicado no capítulo anterior, dependendo do dia posso trabalhar de manhã, de tarde, de noite, ou na madrugada – acompanho bem os hábitos e horários de alguns hóspedes e cruzo com eles em diferentes momentos do dia, ao que sempre me largam aquela:

- Mas tu por aqui ainda? Tu dorme aqui, é??...

E a verdade era que sim, eu dormia mesmo lá. Isto é, eu morava no apê dos coroas, que ficava perto dali, mas dormia de vez em quando ali no hotel também – e não, não me refiro aos horários nos quais estava de folga; mas durante o maldito expediente mesmo: na madrugada, quando estava deveras cansado, costumava desligar as portas automáticas da entrada e me jogar em algum sofá do hall de entrada e dormir feito um anjo, deixando o mensageiro encarregado de me avisar se algo acontecesse.

No entanto, não foi uma nem duas vezes que, depois de um tempo de sono, acordei com um barulho de pancadas em vidro e notei o colega também apagado roncando em um outro sofá, enquanto lá fora, visivelmente irritado, algum hóspede batia incessantemente na porta, querendo entrar. E lá ia eu rastejando enquanto calçava os sapatos, gravata torta e cara toda amassada com listras de sofá na bochecha e na testa, forjando o mais próximo de um sorriso que eu conseguia naquela madrugada e, enquanto na passada dava um soco no mensageiro ainda em coma, abrindo a porta para o sujeito, saudando-o e fazendo algum comentário amigável tipo “Ué, voltando cedo hoje!... Não rendeu a noite?”. E percebia então aqueles grandiosos homens de negócios, emburrados, indo se recolher, com a visível sensação de fracasso, às suas celas, o que deixava aquele reles proletário da calada da noite um pouco menos chateado de ter seu precioso sono repentinamente interrompido.

Já nos turnos da manhã, quando não havia a possibilidade da soneca, eu procurava me encher do cafezinho preto que havia à disposição – teoricamente dos hóspedes – na recepção para sobreviver ao batente, e preencher os imensos vazios de movimento trocando uma ideia com Severo, aquele meu colega jurássico, que costumava vir frequentemente até a recepção conversar comigo, tendo como assunto favorito a proposta de alguma “sociedade” entre nós, para cairmos fora do hotel e montarmos juntos um negócio. Às vezes ele sugeria uma lanchonete ou um bar, às vezes uma quadra de futebol, e ia alternando as ideias, repetindo algumas ao longo dos dias, e sempre nos empolgávamos quando começávamos a ir mais fundo naqueles devaneios, imaginando os detalhes desse nosso futuro business, e eu percebia os olhos do velho Seva brilharem como os de uma criança diante da promessa da bicicleta que seria trazida pelo Bom Velhinho no próximo dezembro.

No fundo, eu duvidava que ele fosse realmente sair dali um dia, o que me fazia às vezes pensar que talvez eu não devesse dar tanta corda, para evitar alguma possível desilusão para o sujeito mais adiante, mas, enfim, não seria eu a destruir aqueles seus sonhos, não é mesmo?, e a verdade é que eu também acabava por vezes me empolgando com aquelas ideias, embora não as visualizasse efetivamente se consolidando no horizonte. E, de qualquer forma, também percebia que aquilo parecia bastar para Severo, aquele nosso papo ali, eu lhe dando trela, considerando-o realmente um potencial grande homem de negócios...

- Fechado! – enquanto os representantes e empresários de verdade faziam o check-out após pagarem sua “fiança” e iam-se embora, apertávamos as mãos de maneira efusiva quase semanalmente, sacramentando então o “contrato” de nosso novo futuro business, que por sua vez provavelmente nunca deixaria mesmo as fronteiras daquela recepção de hotel.

(Continua)

quinta-feira, 1 de março de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 2" (por Diego T. Hahn)



Eu trabalhava há alguns bons anos na recepção daquele hotel. Era um dos mais antigos lá – o que não era muito difícil, já que a rotatividade de funcionários era grande; o pessoal ficava por ali uns seis meses, um ano no máximo, e caía fora... só havia um cara mais antigo do que eu lá, era um mensageiro, encarregado de colocar e tirar os carros dos hóspedes da garagem, o Severo. O Severo devia estar lá há uns trinta anos - sendo que o hotel só existia há uns vinte... brincávamos que realmente o Severo já zanzava por lá desde antes do hotel ser construído e provavelmente lá estaria depois que o hotel deixasse de existir – alguns colegas apelidaram inclusive uma certa época o Severo de “O fantasma da garagem”... sacanagem.

O trabalho não era pesado, mas a grana era pouca e assim, como dito antes, na primeira oportunidade o pessoal pedia as contas. Mas eu, assim como o Severo, não podia me dar ao luxo de fazer como os outros e simplesmente pular do barco assim no mais; não, eu precisava daquele emprego, afinal, embora não tivesse que bancar ninguém além de mim mesmo (ao contrário do próprio Seva, que era como eu chamava o veterano, que sustentava dois filhos), também não tinha ninguém que me bancasse nem nada assim – as finanças dos velhos andavam mal das pernas – e tinha que pagar minha faculdade... além do que era um emprego no qual eu podia “jogar” com os horários, já que trabalhava de turnante, que era o cara que cobria as folgas dos outros, independentemente do turno – manhã, tarde, noite ou madruga – e assim podia adaptar minha rotina ali com a das aulas, trabalhando de tarde ou de noite quando tinha aula de manhã, e vice-versa, flexibilidade que seria muito difícil de encontrar em algum outro serviço.

- Bom dia, rapaz.

Mas também não me submetia a qualquer coisa simplesmente por isso: como talvez já tenha sido possível observar, não costumava baixar a crista pra ninguém assim no mais. Tentava tratar a maioria legal, mas, você sabe, às vezes (na verdade mesmo, fazia tempo que não tinha mais saco para aquilo, para a rotina quase robótica do trabalho em si, apertando dois ou três botões, repetindo as mesmas frases mecanicamente todo dia... por outro lado, me sentia já meio em casa por lá. E, de certa forma, gostava do “clima” do lugar. Sim, gostava. Só não gostava dos tais dos hóspedes. Mas, fazer o quê?)

- Bom dia, seu Antônio.

Mas também não era radical; havia algumas raras exceções e uma meia dúzia eu costumava tratar bem, já que a recíproca era verdadeira – ou seja, era uma retribuição da gentileza. Um exemplo era o seu Antônio.

- Como vão as coisas, rapaz? E o futebol?

- Ah, jogando de vez em quando, dando uma aulinha pros caras por aí... o senhor sabe como é; só na catega, pifando os bruxos na cara do gol e tal...

- Sim, sim... claro... e as leituras?... Chegou a ver aquele que te indiquei da outra vez?

- Ah, o de sempre também, né... naquelas... batalhando contra uma meia dúzia aí... tudo ao mesmo tempo agora – aquela minha velha mania, né, de ler três ou quatro ao mesmo tempo... e sempre dando uma saramagueadazinha... algum Heminga, e um outro produto do nosso velho e bom amigo Buk aqui e ali... não, ainda não consegui parar para procurar aquele que o senhor me indicou; como era mesmo? “Zen e as motocicletas”?...

- “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”. Isso. Mas legal, legal...

- É, umas biografias também... uma, inclusive, dum mito da hotelaria mundial, “Seu” Sabadoz...o senhor talvez conheça!?... trabalhou aqui um tempo...

- Hummm... não lembro agora...

Também conseguia entabular uma conversa com alguns hóspedes e creio que ganhar uns pontos extra por isso: eu leio - bastante... inclusive ali no trabalho mesmo, quando a coisa tava meio parada e eu meio à toa...

- Bom dia. – saudava-me o hóspede – eu tenho uma reserva e... – ele me olhava e eu seguia de cabeça baixa, concentrado.

- Psiu... – depois de alguns instantes me olhando atentamente, ele tentava ainda chamar minha atenção - ...Oi!? - Eu fazia o sinal de “só um pouco” com a mão. A leitura estava tensa, não podia simplesmente encerrá-la assim no mais, no meio do parágrafo, como se nada fosse! E...

- Ok. Pronto; terminei – levantava a cabeça enquanto fechava o livro, sorrindo para ele, que não parecia, porém, tão simpático à literatura naquele momento. Eu tinha então vontade de elaborar imediatamente um questionamento a respeito de uma suposta implicância dele com Mr. Orwell, talvez pelo passado socialista do autor, ou talvez por ser ele, o hóspede, um socialista, contrariado com a crítica feita pelo inglês quando já desgostoso com o caminho tomado pelo comunismo – ao menos aquele russo – , mas, especialmente por pensar na complexidade (para ele, o hóspede) de toda a questão esquerda/direita/comunismo/socialismo/liberalismo/e outros ismos, me contenho.

- É assim que vocês recebem os clientes aqui? – parece irritado o sujeito. 

Isso não é modo de começar uma conversa, penso eu.

- Vocês quem, senhor? – respondo, olhando ao redor. Será que esse cara vê fantasmas? Será outro esquizofrênico paranoico? Será que vou ter que dizer que não temos quartos disponíveis? Ah, mas ele disse que tem reserva... droga – qual o seu nome?

- Silva. Carlos Silva.

- Pode soletrar, por favor?

- Soletrar? Soletrar o quê? Silva?? Ou Carlos? É Silva, normal... e Carlos também... não tem nenhuma letra dobrada, nada... - a irritação dele parecia aumentar. Não devia gostar do próprio nome. Talvez lamentasse não ter exatamente um nome mais exótico, tipo Maycol...

- Sei, sei, mas é que, às vezes, a reserva... o senhor sabe...

- S-I-L-V-A.

- Ahá. Silva. Tá aqui. Quarto 402.

Sim, sou mesmo quase maldoso com alguns. Mas justo: avalio-os nesse primeiro momento, já na apresentação, com o intuito exatamente de decidir como será o tratamento destinado a eles no decorrer de sua estada no hotel. Faço uma espécie de teste de aptidão: se correspondem às minhas expectativas, terão meu melhor atendimento possível; caso contrário, experimentarão o lado negro da força da recepção.

Ele sobe com o cartão magnético que abre a porta na mão. Alguns minutos depois, porém, desce, com a mesma cara emburrada.

- O cartão não funcionou. – resmunga.

- Humm... o senhor sabe como funciona?

- É claro que eu sei como funciona! Já parei mil vezes em outros hotéis que utilizam esse sistema e...

- Sim, eu sei, mas é que às vezes os hóspedes não sabem... o senhor tem que inserir o cartão no...

- Olha aqui, rapaz, eu sei como funciona esse troço! Mas esse troço NÃO está funcionando, entendeu?...

Sim, eu sei que não está funcionando, pois eu propositalmente não o magnetizei na maquininha aqui da recepção e assim ele realmente nunca abriria porta alguma do hotel, e provavelmente porta alguma de qualquer hotel do Universo, e por um instante fiquei imaginando-o,  tremendo de frio e entre cães vadios e bêbados errantes, dormindo na praça aquela noite, pensamento que me proporcionou um efêmero mas simplesmente indescritível prazer, provavelmente fazendo-me soerguer ligeiramente o cantinho de uma das sobrancelhas e dos lábios em um sorrisinho involuntário, antes de lhe dizer:

- Ok, ok. Empreste-me aqui, por favor, que vou magnetizar o cartão novamente para o senhor...

(Continua)


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão" (por Diego T. Hahn)



- Olha lá... lá vem chegando mais um... – avisa-me o colega.

Sem levantar a cabeça e seguindo olhando para o que quer que fosse  – e que quase certamente não tinha relação alguma com o trabalho em si - que eu mirava distraidamente na tela do computador naquela tardezinha modorrenta, respondo para ele:

-  Sim... já senti o odor...

Ele, que antes olhava para fora, vira-se para mim, curioso:

- Odor?

Ainda sem tirar os olhos do computador explico.

- Sim. O cheiro. Chega milhas antes.

 – Mas... que cheiro? – indaga-me ele mais uma vez, enquanto fareja o ar, como procurando antecipar-se a mim e achar a resposta por conta própria.

-  Ora, meu velho... aquele característico fedor pútrido – detalho didaticamente – ... de hóspede! – e cuspo na lixeira ao pronunciar aquela palavra – Sabe?... percebo-o quando eles ainda estão lá dobrando a esquina... é inconfundível.

- Ah, sim, sim!... Compreendo... – diz ele, que é o mensageiro, como é chamado o cara que carrega as malas e manobra os carros no hotel – emendando em seguida – E cara de hóspede: olha a cara de paspalho...

- Sim. E jeito mangolão típico de hóspede. Carregando todo garboso sua malinha de grife... esperando ser recebido como se fosse o rei da Suécia...

- Boa tarde.

- Boa tarde, senhor. Como posso ajudá-lo?

- Vocês têm quartos disponíveis?

- Bem... de quantos quartos o senhor precisaria?

- De um só.

- Humm... Ah, sim... é que o senhor perguntou por “quartos disponíveis”... entendi que... bem, mas então é somente UM quarto que lhe interessa?...

- Sim, sim.

- Bem, infelizmente, não, não temos nenhum.

- Nenhum?

- Nenhum. Zero. Zírou.

- Todos ocupados?

- Todos.

- Putz... mas não tem como me conseguir um mesmo?

- Olha, só se eu construísse um quarto para o senhor... mas aí, veja bem, eu precisaria antes de mais nada de uma autorização do proprietário do hotel... ele provavelmente teria que entrar em contato com a prefeitura e bombeiros, acredito eu, para questões relacionadas a alvará e mudanças na estrutura do empreendimento... e teria também que falar com o pessoal do estoque, para comprar o material de construção, o senhor sabe, tijolos, cimento, argamassa, e...

- Hein?

-Não, nenhum. Todos ocupados.

- Humm... bom... Ok... fazer o quê?

- Pois é... fazer o quê, né?

- Obrigado.

- De nada. Tchau, tchau.

- Meeeeeuuu, que mangolão mesmo!... – sussurra o mensageiro – mas... cara... como “não tem nenhum quarto disponível”? O hotel tá praticamente vazio, velho!...

- Aaaaaaah, meu amigo... tu é ingênuo mesmo, né? Claro que o hotel tá vazio, claro que tenho quartos disponíveis... mas não viu a cara de maluco do sujeito?

- Hummm... não, cara, não reparei mesmo...

- Pois é... mas eu manjei já de cara: psicopata, velho... clássico. A gente pega o jeito depois de um tempo aqui na recepção, sabe?...

- Hummm... mas não viu no carro dele, cara? Tem mulher e um filhinho...

- Ué. E daí, mermão? Por acaso psicopatas não podem ter família?? Que preconceito é esse?

- Bom, eu... não sei... fora o tal Dexter aquele – que, por sinal, tu tem razão, até tinha mulher e filho – não entendo muito de psicopatas, cara...

- Pois é. Mas eu entendo: psicopatas, paranoicos, megalomaníacos, etc... trabalho aqui há anos: vejo, portanto, espécimes assim o tempo todo, amigão!

(Continua)

Partiu 2018 - Novos Projetos Literários


Bem, após a incrível frequência de 3 postagens por ano em 2017, decidimos começar num ritmo ainda mais intenso este novo ciclo de 365 dias, e assim, enquanto a Hahn Solo Produções finaliza sua próxima obra (de papel mesmo) a ser publicada (se tudo der certo, ainda neste 2018!), oferecemos como "aperitivo" para os fervorosos e exigentes milhares de seguidores do De Letra ao redor do planeta este novo projeto, intitulado "Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão", uma singela historinha "experimental" (baseada em fatos reais - conforme relatos de, hã, digamos, amigos que trabalharam na área...) em (cerca de 10 ou 12) capítulos, que serão despejados provavelmente quinzenalmente (na melhor das hipóteses, semanal; na pior, mensalmente - ou seja, conforme der na telha dos editores, você sabe como é!...) aqui no blog... enfim, que não se crie lá muita expectativa, por favor (é quase simplesmente uma "pequena homenagem" - embora talvez em linhas gerais não pareça, rs -, em forma de brincadeira) - mas esperamos exatamente que quem se atreva a ler se divirta um pouco com ela!
Abraços (e obrigado, desde já, pela eventual inspiração, direta ou indireta)


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

"Paulo Sant´ana roubou minha crônica" (por Diego T. Hahn)


(Bem, se ainda persistem dúvidas quanto ao falecimento ou não do rock - cujo dia foi comemorado no mês passado e por conseguinte homenageado na publicação anterior aqui do blog - aparentemente as mesmas não se aplicam à lendária figura do jornalismo gaúcho citada no título deste texto, cuja passagem ocorreu também recentemente (na verdade, menos de uma semana depois) - embora certamente surgirão teorias de que ele está a viver em uma ilha secreta (como por sinal o texto abaixo aqui cogitava já há cerca de cinco anos atrás), ao lado de figuras como Elvis, Jimbo e Jacko... - , o que motiva-nos, portanto, a mais esta singela homenagem - com um texto que, na verdade, é um dos meus que menos gosto, mas, enfim, é o que tem mais a ver, e, de qualquer forma, o curioso do caso é que, após publicado no meu primeiro livro, "Flashbacks de um mentiroso", ouvi alguns questionamentos a respeito da trama, se seria verídica ou não... acho engraçado, me parece óbvio, mas sempre preferi aproveitar para fazer aquele "charmezinho" e deixar o "mistério", embora nunca imaginasse que aquilo pudesse mesmo ser um mistério, no ar... o que posso dizer mesmo - e essa parte é verdade (e curiosamente também forma uma espécie de "metalinguagem" com o texto em si) - é o seguinte: após a publicação do livro, lá em 2012, enviei, como bom autor iniciante desconhecido e com uma certa pretensão, alguns exemplares para alguns autores famosos - tipo David Coimbra, Martha Medeiros e para o próprio Paulo (olha a intimidade...) - e, alguns dias depois, não é que li numa coluna lá no fim da Zero um trecho, meio isolado do contexto, que falava mais ou menos da "facilidade daqueles que têm a sorte de ter talento e dos périplos a que se submetiam aqueles que não o tinham..."?... não sei, também não posso afirmar com 100% de certeza de que fora uma indireta para aquele meu artifício de divulgação da minha obra, não citava meu nome, meu livro, nem nada, talvez se referisse mesmo a qualquer outra situação ou pessoa, mas, ainda que ao mesmo tempo meio masoquista e pretensamente, devo confessar que senti - e ainda sinto - que aquela "esculachada" fora mesmo para mim e, assim, de alguma forma, também me senti um dia homenageado por Paulo Sant´ana! rsss).

Absurda história mesmo se desenrolou um dia desses, depois que um amigo veio comentar a respeito de uma crônica, segundo ele “fantástica”, que o colunista Paulo Sant`ana, de um jornal de grande circulação no sul do país, havia publicado nesse mesmo periódico na edição daquele dia. Segundo esse meu amigo, Sant`ana havia atingido o seu auge. O nirvana. A crônica das crônicas. Algo equivalente àquele anúncio do Chivas Regal, como diria Luis Fernando Veríssimo: “Chivas Regal. O Chivas Regal dos uísques”. Eu ainda não havia lido o jornal. Fiquei por conseguinte muito curioso, sendo o grande fã do Sant`ana que sempre fui. Caminhando um pouco mais pela rua e conversando com outras pessoas, percebi que todos falavam também sobre a tal crônica. “Genial” - vibravam. Polêmicas discussões pipocavam na rua, tendo como estopim as inspiradas ideias contidas naquela coluna lá na última página do jornal.
Não resisti, deveras curioso, embora fosse um belo dia de sol, e fui para casa verificar a tal crônica. Sendo eu um pretensioso aspirante a escritor, pensei em "sugar" alguma coisa de tão genial texto - ou, meio masoquista também, simplesmente me torturar de inveja.
Chegando em casa, ainda era manhã, preparei um belo café e puxei então o jornal. Dei uma folheada meio por cima nas demais páginas, esportes, quadrinhos, e logo cheguei na tão aguardada página. Tomei um belo gole do café e comecei a leitura. 
Pois qual não foi minha surpresa!...
Necessário se faz, para dar um adequado contexto à trama, regressar alguns dias no tempo. Mais precisamente um mês e quatorze dias. Pois cansado de penar atrás de uma oportunidade profissional no ramo das letras, procurando uma editora interessada em minhas crônicas, contos, poesias, devaneios ou até mesmo piadas - sim, eu invento também piadas, para desespero de minha namorada, Cláudia -, resolvi recorrer a um de meus ídolos na crônica gaúcha, Paulo Sant`ana. Enviei-lhe um e-mail. Apelei para o sentimentalismo barato - sincero, mas barato -, descaradamente. Contei um pouco da minha perambulação atrás de uma oportunidade, disse que estava cansado, desiludido com tudo, porque a gente não tem oportunidade de trabalho nesse país, a cultura é menosprezada no Brasil, sou teu fã número um... E por aí fui. Desesperadamente, em uma última cartada, por fim pedi uma chance para ele. Que ele ao menos lesse uma crônica minha que eu estaria mandando logo a seguir. Depois, se ele pudesse me recomendar para alguém que pudesse me ajudar, ou alguém que conhecesse alguém que pudesse... Bem, isso se tivesse gostado da crônica, é lógico... ou não também... e, enfim, mandei o  tal texto.
Eu, romântico que sou, realmente imaginei que ele me responderia alguma coisa. Nem que fosse algo tipo “Olá. Ok. Recebi tua crônica. Um grande abraço do Sant`ana”. Em consideração, ao menos. Sei lá. Mas nada... nem um “Sinto muito. Procure um emprego de verdade. Não vale a pena essa vida... sabe como é...”. Aí me frustrei de vez. Nem ao menos uma resposta confirmando a chegada do texto, pô! E o que mais me frustrava é que eu tinha realmente a convicção na minha cabeça que eu não era tão ruim assim... minha família, inclusive, gostava muito do que eu escrevia. Sempre me elogiavam e tal. Pensei em começar a suspeitar da sinceridade da minha família, mas agora era tarde. Eu tinha calhamaços de coisas escritas. Tinha me convencido que tinha um certo talento para o negócio. Mas não receber sequer um oi do meu ídolo foi realmente demais...
Não superei totalmente a frustração, é óbvio, mas nos últimos dias vinha pensando no que poderia fazer então da vida para ganhar dinheiro, para me realizar profissionalmente. Algo que eu não tivesse pensado antes. Tentar esquecer esse negócio de escrever. Tinha cansado de penar atrás de uma oportunidade e estava claro que as grandes corporações no Brasil não perdoam os pequenos e a gente tem que se virar como pode, mas chega uma hora que não dá mais... Cansei disso também. Desse papo. Ficar azucrinando os outros, posando de vítima do sistema, injustiçado. Estava na hora de deixar de ser tão romântico e cair na real. Arranjar um emprego "de verdade", como me diziam alguns amigos.
Pois foi nessa bela manhã, na qual eu caminhava pela rua e as pessoas falavam da crônica do Sant`ana, que eu havia decidido procurar um emprego, digamos, "normal". E foi exatamente nessa manhã que tudo mudou novamente.
Sentia eu um misto de surpresa, alegria, revolta... e talvez mais alguns sentimentos que eu não saiba descrever direito. Aí é que está. O Sant`ana sabe descrever! Eu, não... As palavras parecem fluir nas crônicas dele... nas minhas, não; nas minhas, parece que as coisas até se encaixam, mas que é tudo meio forçado... no fundo, no fundo, eu tinha noção disso; pô, não sou nenhum alienado. Tenho autocrítica. Daí a minha surpresa ao ver o que vi aquela manhã: a crônica que eu havia mandado para o Sant`ana estampada no jornal!!!!! A alegria vinha também desse fato. E a revolta era por ele ter assinado o texto com seu nome. Nenhum crédito para o real autor da crônica mais comentada de todos os tempos no Rio Grande do Sul: Eu!!!
Logo as ideias foram se assentando na minha cabeça. Concluí calmamente que aquilo era algo bom. Sem dúvida! Minha crônica estava estampada lá, para todo mundo ver! Quanto ao fato de não ter meu nome lá, imaginei que logo o Sant`ana entraria em contato comigo ou esclareceria na sua coluna nos próximos dias quem era o verdadeiro autor. Isso; com certeza! Paulo Sant`ana é um homem honrado, pensava eu, embora não o conhecesse pessoalmente. Só o via na televisão e lia sua coluna no jornal. Mas ele é um grande sujeito, sem dúvida. Apesar de gremista. Sempre defendeu os mais fracos. Sempre protestou contra a covardia, contra as injustiças, contra os abusos...
Mas, bem, o tempo foi passando e... nada. Nenhum contato. E o que era pior: a partir do dia seguinte à publicação da minha crônica, na coluna dele começaram a ser reprisadas crônicas antigas. Nenhuma menção à real autoria da última crônica inédita até então na coluna. O que teria acontecido? Bom, concluí eu, otimista como sempre, de repente o cara ficou doente e não está podendo escrever no momento. Pegou umas férias. Algo assim. E quando voltar vai esclarecer tudo. É, com certeza. Que bobagem eu me preocupar à toa!... Não teria eu por que duvidar da lisura de Paulo Sant`ana, um dos ícones da comunicação gaúcha, não é mesmo!?
Mas a verdade é que eu estava, sim, angustiado - e a angústia só aumentava. Todo dia, de manhã bem cedinho ia eu lá conferir a coluna do Sant`ana. Como aquele sujeito que vai conferir o resultado da Mega-Sena. Aquela esperança. Pensando no que fazer caso o prêmio saia hoje. Mas nada. E dê-lhe reprise... E, cansado daquela angústia, resolvi correr atrás do prejuízo. Mandei mais e-mails para o Sant´ana (também para o "Pablo", no mesmo endereço, mas só mudando o nome do destinatário - vai saber...) e para o jornal. Também já estava cansado daquela história de o pessoal rir debochadamente da minha cara cada vez que eu tentava contar que era eu o autor daquele famoso texto... Uns até fingiam tentar acreditar, mas sei que nunca lhes passaria pela cabeça realmente duvidar da honra daquele lendário jornalista. Provavelmente saíam depois pensando: “Pronto, pirou de vez, de tanto insistir nessa história de escrever...”. E nem adiantavam meus argumentos, como o do fato de depois daquele dia ele não ter escrito mais nada novo. Na verdade, nem eu mesmo acreditaria naquela história maluca se não estivesse diretamente envolvido nela... Mas que diabo afinal de contas estaria acontecendo?? Estaria eu enlouquecendo? Será que imaginei que tinha escrito e enviado para o Sant`ana aquela bendita crônica?? Ou teria sido tudo real e depois de ter publicado meu texto ele teria simplesmente sido abduzido por extraterrestres? Eu já começava a rir daquilo tudo... Não sabia mais no que pensar. Relaxei por uns momentos. Comecei a ver o lado surreal daquilo tudo. E, na verdade, o mais importante de tudo: minha crônica estava lá, no jornal, para todo mundo ver. Meu nome, não; é verdade. Mas minha crônica estava lá. Foda-se. Sim, é isso aí! Foda-se!...
Porém, não, aquela espécie de "catarse" era mais uma tentativa de me iludir; não, aquilo não bastava para mim, alguns minutos depois eu me dava conta outra vez. Paulo Sant`ana me devia satisfações. Ponto. E agora já não bastava um “Sinto muito. Procure um emprego de verdade. Não vale a pena essa vida... sabe como é...”, pois obviamente ele havia gostado da minha crônica! - e uma grande parcela do Rio Grande do Sul também, pelo visto...
Mas eu não sabia mais o que fazer. Eu não tinha respostas. Nem do Sant´ana, nem do... 
Até que o jornal um dia me respondeu. Acho que de tanto eu azucrinar os caras... A princípio, nem devem ter respondido meus e-mails por imaginarem se tratar de alguma brincadeira ou coisa de algum lunático. Talvez, aliás, eles ainda estivessem achando que fosse algo assim, mas assim mesmo resolveram responder. Talvez para se livrar de mim. E mais uma vez fui surpreendido pelo que eu lia ali na minha frente. Não vou dizer que a surpresa era tão grande quanto a de ver a minha crônica no jornal, mas foi também impactante - e, no fim das contas, só serviu para aumentar o mistério que já rondava minha cabeça.
Eles me disseram que Sant`ana... havia se aposentado.
Durante dias continuei enchendo o saco do pessoal do jornal, tentando obter respostas mais claras. Como assim, havia se aposentado? De repente? Por quê? E por que logo depois da minha crônica? - embora eles não acreditassem que era minha crônica...
O resto da população gaúcha também ficou estarrecido com tão repentina surpresa. Houve uma grande comoção por alguns dias, logo depois que a notícia havia estourado. Gente chorava, até mesmo. Mas para mim em especial ainda havia mais. E nada de resposta do sujeito. Aparentemente, aliás, ele havia sumido do mapa, comentava-se pelas ruas de Porto Alegre. Ninguém nunca mais havia visto ele na capital gaúcha. Nunca desisti completamente da ideia de ter aquilo tudo esclarecido e que enfim eu pudesse ter o devido reconhecimento, mas já me contentava com a possibilidade de ao menos receber uma resposta qualquer dele. O sujeito, no entanto, realmente parecia ter virado fumaça.
Meses se passaram. A última página do jornal foi aposentada, como se aposentam as camisas dos grandes ídolos de certos times, como a 23 do Chicago Bulls, antigamente usada por Michael Jordan, e que nunca mais poderá ser usada por nenhum outro atleta. Ninguém mais poderia escrever naquela última página. Em Porto Alegre, logo surgiu o grupo “Viúvas do Sant`ana”, que não se limitava a mulheres, como poderia sugerir o nome, mas abrangia todos aqueles fãs do colunista, que se reuniam para debater crônicas que ele havia escrito ao longo dos seus anos de jornalismo. Logo o grupo espalhou-se pelo interior do estado também e até em alguns outros estados do país.
Mas do Sant´ana ninguém nunca mais havia sabido realmente nada. O jornal se limitava a informar que ele havia se aposentado e que não tinha mais nenhuma informação. Eu, embora quisesse e até tentasse, não conseguia mais me concentrar para escrever. Sentava em frente ao computador, digitava algumas linhas, mas logo meu pensamento se perdia. Recorria então à máquina de escrever, com a qual me sentia um pouco mais à vontade. Nada. Eu até tinha umas boas ideias, mas não conseguia engrenar. Não ia até o fim. Parecia que havia algo me emperrando. E realmente havia. Até o dia em que chegou um cartão postal para mim.
O remetente se chamava Pablo e escrevia para mim do Caribe. Dizia que escrevia de uma rede, onde estava deitado olhando para o azul do mar. Ou do céu. Ele nem sabia mais. Os dois se confundiam de tão azuis. Era tudo que ele sempre quis. E me mandava um grande “obrigado”. Dizia que era a sua chance para acabar a carreira com chave de ouro. Não conseguia imaginar que um outro alguém que não ele poderia escrever aquilo. Foi mais forte do que ele, então: teve que publicar em seu nome. Mas tratou de esclarecer que não foi exatamente um acesso de vaidade. Foi algo mais forte do que isso, tal o impacto da minha crônica nele. A crônica tomou conta dele. Passou a ser dele. A crônica era realmente dele. E, depois dela, não teria como continuar escrevendo. Depois de atingir o pico, qualquer coisa que escrevesse o frustraria. Quanto a mim, disse que estava me prestando um favor. Se a crônica não tivesse sido publicada na sua coluna, apesar de muito boa, provavelmente não teria o reconhecimento que teve. Provavelmente, mesmo que tivesse sido publicada, mas com o meu nome, não teria o alcance que teve. Então, eu deveria ficar orgulhoso por ela, completava ele. Eu devia pensar nela como uma filha. Uma filha que foi longe, que ganhou o mundo. E no fim, todos nós havíamos sido ajudados: eu, ele e a crônica. Eu, por poder perceber que tenho realmente talento, apesar da minha romaria atrás de uma oportunidade não ter tido até então o efeito desejado. E por poder perceber também que às vezes o mundo é mesmo cruel, e ele não se referia à sua própria atitude, mas sim ao fato de que muitas vezes muitas coisas belas se perdem pelo fato de as pessoas que as criam ou cuidam delas simplesmente ainda não terem a devida influência, o devido reconhecimento. Finalizava me desejando boa sorte e que um dia eu estivesse lá, como ele, desfrutando das benesses que meu talento fatalmente me traria, independentemente daquilo que o mundo a princípio achasse.
Acabei de ler e fiquei por instantes ainda com uma impressão de vazio. A princípio, a resposta não havia me contentado. Então, ficaria tudo assim? Mas ao reler mais algumas vezes o cartão, passei a captar melhor a mensagem. Ou pelo menos resolvi me enganar, concluindo que havia entendido tudo.
De qualquer forma, enfim comecei a sentir a inspiração realmente voltando. Estava pronto para retornar à jornada atrás de uma oportunidade. Aquilo tudo, no fim das contas, havia me ajudado a ver que eu devia ir atrás daquilo que eu realmente queria e não de um “emprego de verdade”. O que eu realmente queria fazer da vida era o meu emprego de verdade. Paulo Sant`ana acabou sendo mais do que um ídolo. Virou meu mestre. Meu tutor. Meu guru.
Mas... bem... 
...por via das dúvidas, minha próxima crônica supostamente interessante vou enviar para uma avaliação é do Veríssimo, caramba!