quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Retamoso - parte 1 (por Ronaldo Lippold)



Em mais uma participação especial no De Letra, temos a honra de apresentar desta vez o amigo Ronaldo Lippold, que com este belo épico gaudério com fortes matizes de melancolia foge um pouco da sua linha cômica, com a qual impregnou os seus hilários "A culpa é do Padre" e "A culpa é do Padre 2", coletâneas de contos e crônicas lançadas em 2009 e 2012, e dá mostras de toda sua versatilidade na arte de contar histórias - por falar em versatilidade, o vivente ainda fabrica na garagem de casa sua própria cerveja, a saborosa Old Lipp, distribui suas raquetadas na quadras de padel de SM, e até trabalha nas horas vagas.



             Contam os presentes ao velório de Ybicuí  Albuquerque Retamoso Calderón que no dia em que ele rompeu o tênue traço que ainda o mantinha vivo, mesmo sendo um dia claro de março, um trovão irrompeu no azul do céu, contrariando todas as previsões do tempo e uma chuva fora de época acabou banhando todos os transeuntes. Duas dezenas de velhos compunham o séquito de despedida daquela criatura que driblava a morte desde muito tempo. Deve ter sido o único homem que no leito de morte não contava com a presença de nenhum parente próximo.

            Seus filhos, netos, bisnetos e tataranetos já haviam deixado esta vida e hoje compunham o pó dos tempos. Sua longevidade não era plenamente explicada pela ciência, que acreditava que idade tão avançada seria possível somente para os habitantes do século XXII. Relembravam os mais antigos, enquanto olhavam aquela pequena carcaça encolhida em um humilde caixão de pinus, que aquele rosto vincado de rugas que mais parecia o leito de um açude seco, havia nascido num tempo não determinado pelos ofícios, em algum lugar perdido entre as fronteiras do Rio Grande e a República Oriental do Uruguai. Que ele não se anunciava nem brasileiro muito menos uruguaio, mas sim um gaúcho dos quatro costados que com seis anos de idade já rompia léguas de campo montado num vistoso cavalo crioulo, levando mensagens para homens que conheciam somente a lei da guerra, da peleia e da barbárie. 

Este legítimo gaudério, criado guacho, sem frequentar escola ou igreja, consta que perdeu pai e mãe numa escaramuça em data não delimitada com precisão, mas segundo alguns lá pelas voltas de 1800. O menino Ybicuí Albuquerque com menos de onze anos já era dono de si e corria o mundo atrás das raras oportunidades que se apresentavam. Naquele mundo com campos que se perdiam de vista e cidades muito distantes ele aprendeu a lei do mais forte. Depois de trabalhar durante cinco anos em uma estância em Durazno, aprendendo a arte da doma e da esquila resolveu juntar-se as hostes do Barão de Laguna,vindo a participar do cerco a Montevideo  onde sofreu sérios ferimentos na perna esquerda. Após ficar em um catre de hospital durante dois meses, acabou afeiçoando-se a sua enfermeira com a qual teve um tórrido romance. 

Aymar era uma índia charrua de baixa estatura, com grandes olhos amendoados e longos cabelos negros. Após uma demorada recuperação em função do balaço na perna, o casal resolveu voltar para terras brasileiras vindo a instalar-se em um fundo de campo perto de uma fronteira até então fictícia. Em uma tapera de barro minúscula coberta com palha e que mal conseguia atacar o forte vento minuano o casal passou dias de muito trabalho e afeição. Com a ajuda de Aymar, grávida, os dois plantaram uma roça de mandioca e cultivaram feijão, milho e melancia. Num inverno inclemente a índia charrua começou a sentir as dores do parto. Naquela madrugada chuvosa com um frio que penetrava nos ossos nasceu Osório, um lindo menino índio. A alegria de Ybicuí durou apenas dois dias. Devido a uma infecção a jovem mãe veio a falecer depois de suar e gemer por longas horas. 

O homem cuidou do filho sozinho levando no peito uma saudade da mulher amada e uma tristeza que sumia somente quando o choro do menino quebrava a imensidão daquele fim de mundo. No dia em que Osório deu os primeiros passos, homem, criança e um cavalo velho começaram uma longa caminhada que durariam três dias. Anos após Ybicuí dizia não saber como a criança agüentara tão dura travessia. Quando o piá começava a chorar de fome ele enfiava um pedaço de charque já mastigado na boca do pequeno indiozinho e começava a falar da mãe que havia partido tão cedo.

 Chegando a Tacuarembó logo consegue emprego em uma fazenda de um velho caudilho, a La Favorita. Aquele homem forte e trabalhador que ostentava um imenso bigode em poucos dias cai nas graças do proprietário da estância e também da cozinheira. Carmencita era uma mulher bonita beirando os vinte anos e se apegou de imediato por Osório e seu pai. Seis meses após trinta homens daquele local, entre eles Ybicuí se unem as tropas do uruguaio Fructuoso Rivera, primeiro presidente constitucional do Uruguai em mais uma contenda contra os portenhos que teimavam em invadir suas terras. Da varanda da casa grande Aymar se despede, com olhos úmidos segurando Osório numa mão e um rebento na barriga.


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