quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Retamoso - parte 2 (por Ronaldo Lippold)


(conclusão)

Contam que aquele encontro com as tropas de Rivera marcariam seu destino para sempre. Naquela escaramuça com os argentinos o valente Ybicuí angaria o respeito de seus pares pela valentia e empenho com que se dedica as investidas de espada em punho contra o inimigo. Em 1832 o Exército da Banda Oriental desloca-se à região conhecida como Desierto, acima do rio Negro, onde os índios Charruas concentram a maioria de seu povo. De acordo com as orientações dos lideres seria apenas uma reunião com os caciques Charruas para acordarem a determinação de uma terra para seu usufruto. Cerca de duzentos índios são levados a separarem-se de suas armas e logo são convidados a beber guampas cheias de cachaça. Dom Frutos Rivera conversa amistosamente com os índios relembrando antigas guerras em que lutaram bravamente lado a lado. A confraternização se estendeu até uma dúzia de reses que assavam em uma valeta com fogo de chão. Quando o álcool começou a subir à cabeça os Charruas verificaram a cilada em que foram conduzidos. Dezenas de soldados armados começam a atirar sem piedade em uma turba de índios desarmados e bêbados. O massacre é inevitável. Alguns poucos conseguem furar o cerco. Homens, mulheres e crianças são massacradas num episódio pouco conhecido e explorado em jornais da época. Um Ybicuí furioso toma satisfação de seu superior imediato, Bernabé Tabaré Rivera, sobrinho do Presidente e é seguro por dois sargentos, pois ameaçara de morte os mentores daquela tocaia. O jovem Bernabé Tabaré alega que em função de seu relacionamento anterior com uma índia foi negada a informação do massacre, porém este era inevitável em função de interesses por gado e grandes extensões de terras. Ele em plena madrugada rouba um cavalo e deserta daquele exército que aniquilou covardemente um povo aliado.

            Homem e cavalo tomam o rumo da fronteira com o Brasil. Ele era um desertor. Estes eram degolados sem apelação. Como a fazenda La Favorita certamente seria um dos primeiros lugares a serem vasculhados pelos Orientais tem que percorrer uma região de difícil acesso. Cavalgando quase à exaustão e com a cabeça se punindo por ter participado, mesmo à revelia de tão mesquinha armadilha, Ybicuí segue adiante. Dois dias após ele chega a uma bodega onde falam português. Entrega seu cavalo a um peão que cuida do sofrido animal. Senta em um tronco de árvore e começa a tomar uma canha pensando em que rumo tomar. Aquela imagem do sangue que corre nas veias de seu filho ser derramado de maneira tão cruel e covarde faz lágrimas correrem pelo seu rosto cansado. Lembra que não havia chorado desde a morte de seus pais no início do século. Seu pensamento voa até Carmencita que logo deve ganhar outro descendente dos Retamoso Calderón. Começa a fechar um palheiro pensando no sorriso tranqüilo de seu filho Osório. Como faria para voltar ao convívio deles? Teria que deixar baixar a poeira.

            Dois anos após em uma fazenda em Santana do Livramento ouve falar que La Favorita foi vendida e seus moradores deixaram a região rumo a Colônia de Sacramento aonde conseguem trabalho em outra estância do mesmo caudilho. Fica ciente também de que é procurado por deserção e que é pai de gêmeos. Resolve continuar a vida no Rio Grande e alia-se aos gaúchos que desafiam o Império. Em 1835 ingressa no exército Farroupilha. Durante vários anos Ybicuí segue os líderes farroupilhas em refregas cada vez mais violentas. Nas horas de calmaria seu pensamento volta-se para seus filhos e esposa. Tem uma imensa saudade principalmente de Osório que deve estar beirando os vinte anos.

            No estertor da revolução Farroupilha participa de uma batalha ao lado dos homens de General Netto contra as hostes do antigo aliado Bento Manoel Ribeiro. É uma luta sangrenta e encruada. Os homens se atiram um contra o outro na base do sabre e espada. Os soldados devido a pouca distância conseguem ver os olhares dos inimigos, quase suplicando para que alguém, enfim desfralde uma bandeira de paz e acabe com aquela atrocidade que já perdeu o sentido original. Neste dia Retamoso Calderón e mais seis soldados se grudam numa sangrenta luta corpo a corpo contra quatro adversários. Somente o bravo Ybicuí, embora com inúmeros ferimentos consegue sobreviver. Ele se apoia exausto em uma velha bergamoteira enquanto olha os corpos mutilados de seus colegas. Descasca algumas frutas para matar a sede e se aproxima de um inimigo que lutou bravamente e jaz caído com uma adaga enfiada no peito. Olha aquele rosto de menino todo sujo de terra e sangue, puxa a faca e limpa na manga da camisa. Se sente completamente triste por ter ceifado vida tão moça. Resolve satisfazer sua curiosidade na origem do rapaz mexendo nos bolsos do casaco do garoto. Jovens desta idade deveriam estar em casa, pensa enquanto procura algo naqueles bolsos sujos de sangue. Encontra um envelope e uma página em papel pardo bastante amassado. Quando termina de ler aquele pequeno relato de saudade começa a gritar e arrancar os cabelos loucamente. Era uma carta em espanhol de uma mãe chamada Carmencita para seu filho Osório que estava longe de casa a sete meses, desejando-lhe boa sorte.

            Ybicuí sai a caminhar pelo pampa visivelmente transtornado. Sua demência aumenta com o passar do tempo. Durante muitos anos é visto nos lugares mais distantes até ser abrigado, com quase oitenta anos em um asilo para loucos em Porto Alegre. Seu companheiro de quarto comentava que ele morou neste asilo por mais de cinco longas décadas. Seu relacionamento era difícil com os demais asilados. Ficava mudo durante meses e de repente começava de supetão a falar as coisas mais desencontradas, recheadas de datas, nomes de batalhas e de pessoas e que após isto desatava a chorar copiosamente, dizendo que a vida era uma trincheira marcada a ferro, fogo e lágrimas.



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