quinta-feira, 1 de março de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 2" (por Diego T. Hahn)



Eu trabalhava há alguns bons anos na recepção daquele hotel. Era um dos mais antigos lá – o que não era muito difícil, já que a rotatividade de funcionários era grande; o pessoal ficava por ali uns seis meses, um ano no máximo, e caía fora... só havia um cara mais antigo do que eu lá, era um mensageiro, encarregado de colocar e tirar os carros dos hóspedes da garagem, o Severo. O Severo devia estar lá há uns trinta anos - sendo que o hotel só existia há uns vinte... brincávamos que realmente o Severo já zanzava por lá desde antes do hotel ser construído e provavelmente lá estaria depois que o hotel deixasse de existir – alguns colegas apelidaram inclusive uma certa época o Severo de “O fantasma da garagem”... sacanagem.

O trabalho não era pesado, mas a grana era pouca e assim, como dito antes, na primeira oportunidade o pessoal pedia as contas. Mas eu, assim como o Severo, não podia me dar ao luxo de fazer como os outros e simplesmente pular do barco assim no mais; não, eu precisava daquele emprego, afinal, embora não tivesse que bancar ninguém além de mim mesmo (ao contrário do próprio Seva, que era como eu chamava o veterano, que sustentava dois filhos), também não tinha ninguém que me bancasse nem nada assim – as finanças dos velhos andavam mal das pernas – e tinha que pagar minha faculdade... além do que era um emprego no qual eu podia “jogar” com os horários, já que trabalhava de turnante, que era o cara que cobria as folgas dos outros, independentemente do turno – manhã, tarde, noite ou madruga – e assim podia adaptar minha rotina ali com a das aulas, trabalhando de tarde ou de noite quando tinha aula de manhã, e vice-versa, flexibilidade que seria muito difícil de encontrar em algum outro serviço.

- Bom dia, rapaz.

Mas também não me submetia a qualquer coisa simplesmente por isso: como talvez já tenha sido possível observar, não costumava baixar a crista pra ninguém assim no mais. Tentava tratar a maioria legal, mas, você sabe, às vezes (na verdade mesmo, fazia tempo que não tinha mais saco para aquilo, para a rotina quase robótica do trabalho em si, apertando dois ou três botões, repetindo as mesmas frases mecanicamente todo dia... por outro lado, me sentia já meio em casa por lá. E, de certa forma, gostava do “clima” do lugar. Sim, gostava. Só não gostava dos tais dos hóspedes. Mas, fazer o quê?)

- Bom dia, seu Antônio.

Mas também não era radical; havia algumas raras exceções e uma meia dúzia eu costumava tratar bem, já que a recíproca era verdadeira – ou seja, era uma retribuição da gentileza. Um exemplo era o seu Antônio.

- Como vão as coisas, rapaz? E o futebol?

- Ah, jogando de vez em quando, dando uma aulinha pros caras por aí... o senhor sabe como é; só na catega, pifando os bruxos na cara do gol e tal...

- Sim, sim... claro... e as leituras?... Chegou a ver aquele que te indiquei da outra vez?

- Ah, o de sempre também, né... naquelas... batalhando contra uma meia dúzia aí... tudo ao mesmo tempo agora – aquela minha velha mania, né, de ler três ou quatro ao mesmo tempo... e sempre dando uma saramagueadazinha... algum Heminga, e um outro produto do nosso velho e bom amigo Buk aqui e ali... não, ainda não consegui parar para procurar aquele que o senhor me indicou; como era mesmo? “Zen e as motocicletas”?...

- “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”. Isso. Mas legal, legal...

- É, umas biografias também... uma, inclusive, dum mito da hotelaria mundial, “Seu” Sabadoz...o senhor talvez conheça!?... trabalhou aqui um tempo...

- Hummm... não lembro agora...

Também conseguia entabular uma conversa com alguns hóspedes e creio que ganhar uns pontos extra por isso: eu leio - bastante... inclusive ali no trabalho mesmo, quando a coisa tava meio parada e eu meio à toa...

- Bom dia. – saudava-me o hóspede – eu tenho uma reserva e... – ele me olhava e eu seguia de cabeça baixa, concentrado.

- Psiu... – depois de alguns instantes me olhando atentamente, ele tentava ainda chamar minha atenção - ...Oi!? - Eu fazia o sinal de “só um pouco” com a mão. A leitura estava tensa, não podia simplesmente encerrá-la assim no mais, no meio do parágrafo, como se nada fosse! E...

- Ok. Pronto; terminei – levantava a cabeça enquanto fechava o livro, sorrindo para ele, que não parecia, porém, tão simpático à literatura naquele momento. Eu tinha então vontade de elaborar imediatamente um questionamento a respeito de uma suposta implicância dele com Mr. Orwell, talvez pelo passado socialista do autor, ou talvez por ser ele, o hóspede, um socialista, contrariado com a crítica feita pelo inglês quando já desgostoso com o caminho tomado pelo comunismo – ao menos aquele russo – , mas, especialmente por pensar na complexidade (para ele, o hóspede) de toda a questão esquerda/direita/comunismo/socialismo/liberalismo/e outros ismos, me contenho.

- É assim que vocês recebem os clientes aqui? – parece irritado o sujeito. 

Isso não é modo de começar uma conversa, penso eu.

- Vocês quem, senhor? – respondo, olhando ao redor. Será que esse cara vê fantasmas? Será outro esquizofrênico paranoico? Será que vou ter que dizer que não temos quartos disponíveis? Ah, mas ele disse que tem reserva... droga – qual o seu nome?

- Silva. Carlos Silva.

- Pode soletrar, por favor?

- Soletrar? Soletrar o quê? Silva?? Ou Carlos? É Silva, normal... e Carlos também... não tem nenhuma letra dobrada, nada... - a irritação dele parecia aumentar. Não devia gostar do próprio nome. Talvez lamentasse não ter exatamente um nome mais exótico, tipo Maycol...

- Sei, sei, mas é que, às vezes, a reserva... o senhor sabe...

- S-I-L-V-A.

- Ahá. Silva. Tá aqui. Quarto 402.

Sim, sou mesmo quase maldoso com alguns. Mas justo: avalio-os nesse primeiro momento, já na apresentação, com o intuito exatamente de decidir como será o tratamento destinado a eles no decorrer de sua estada no hotel. Faço uma espécie de teste de aptidão: se correspondem às minhas expectativas, terão meu melhor atendimento possível; caso contrário, experimentarão o lado negro da força da recepção.

Ele sobe com o cartão magnético que abre a porta na mão. Alguns minutos depois, porém, desce, com a mesma cara emburrada.

- O cartão não funcionou. – resmunga.

- Humm... o senhor sabe como funciona?

- É claro que eu sei como funciona! Já parei mil vezes em outros hotéis que utilizam esse sistema e...

- Sim, eu sei, mas é que às vezes os hóspedes não sabem... o senhor tem que inserir o cartão no...

- Olha aqui, rapaz, eu sei como funciona esse troço! Mas esse troço NÃO está funcionando, entendeu?...

Sim, eu sei que não está funcionando, pois eu propositalmente não o magnetizei na maquininha aqui da recepção e assim ele realmente nunca abriria porta alguma do hotel, e provavelmente porta alguma de qualquer hotel do Universo, e por um instante fiquei imaginando-o,  tremendo de frio e entre cães vadios e bêbados errantes, dormindo na praça aquela noite, pensamento que me proporcionou um efêmero mas simplesmente indescritível prazer, provavelmente fazendo-me soerguer ligeiramente o cantinho de uma das sobrancelhas e dos lábios em um sorrisinho involuntário, antes de lhe dizer:

- Ok, ok. Empreste-me aqui, por favor, que vou magnetizar o cartão novamente para o senhor...

(Continua)


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão" (por Diego T. Hahn)



- Olha lá... lá vem chegando mais um... – avisa-me o colega.

Sem levantar a cabeça e seguindo olhando para o que quer que fosse  – e que quase certamente não tinha relação alguma com o trabalho em si - que eu mirava distraidamente na tela do computador naquela tardezinha modorrenta, respondo para ele:

-  Sim... já senti o odor...

Ele, que antes olhava para fora, vira-se para mim, curioso:

- Odor?

Ainda sem tirar os olhos do computador explico.

- Sim. O cheiro. Chega milhas antes.

 – Mas... que cheiro? – indaga-me ele mais uma vez, enquanto fareja o ar, como procurando antecipar-se a mim e achar a resposta por conta própria.

-  Ora, meu velho... aquele característico fedor pútrido – detalho didaticamente – ... de hóspede! – e cuspo na lixeira ao pronunciar aquela palavra – Sabe?... percebo-o quando eles ainda estão lá dobrando a esquina... é inconfundível.

- Ah, sim, sim!... Compreendo... – diz ele, que é o mensageiro, como é chamado o cara que carrega as malas e manobra os carros no hotel – emendando em seguida – E cara de hóspede: olha a cara de paspalho...

- Sim. E jeito mangolão típico de hóspede. Carregando todo garboso sua malinha de grife... esperando ser recebido como se fosse o rei da Suécia...

- Boa tarde.

- Boa tarde, senhor. Como posso ajudá-lo?

- Vocês têm quartos disponíveis?

- Bem... de quantos quartos o senhor precisaria?

- De um só.

- Humm... Ah, sim... é que o senhor perguntou por “quartos disponíveis”... entendi que... bem, mas então é somente UM quarto que lhe interessa?...

- Sim, sim.

- Bem, infelizmente, não, não temos nenhum.

- Nenhum?

- Nenhum. Zero. Zírou.

- Todos ocupados?

- Todos.

- Putz... mas não tem como me conseguir um mesmo?

- Olha, só se eu construísse um quarto para o senhor... mas aí, veja bem, eu precisaria antes de mais nada de uma autorização do proprietário do hotel... ele provavelmente teria que entrar em contato com a prefeitura e bombeiros, acredito eu, para questões relacionadas a alvará e mudanças na estrutura do empreendimento... e teria também que falar com o pessoal do estoque, para comprar o material de construção, o senhor sabe, tijolos, cimento, argamassa, e...

- Hein?

-Não, nenhum. Todos ocupados.

- Humm... bom... Ok... fazer o quê?

- Pois é... fazer o quê, né?

- Obrigado.

- De nada. Tchau, tchau.

- Meeeeeuuu, que mangolão mesmo!... – sussurra o mensageiro – mas... cara... como “não tem nenhum quarto disponível”? O hotel tá praticamente vazio, velho!...

- Aaaaaaah, meu amigo... tu é ingênuo mesmo, né? Claro que o hotel tá vazio, claro que tenho quartos disponíveis... mas não viu a cara de maluco do sujeito?

- Hummm... não, cara, não reparei mesmo...

- Pois é... mas eu manjei já de cara: psicopata, velho... clássico. A gente pega o jeito depois de um tempo aqui na recepção, sabe?...

- Hummm... mas não viu no carro dele, cara? Tem mulher e um filhinho...

- Ué. E daí, mermão? Por acaso psicopatas não podem ter família?? Que preconceito é esse?

- Bom, eu... não sei... fora o tal Dexter aquele – que, por sinal, tu tem razão, até tinha mulher e filho – não entendo muito de psicopatas, cara...

- Pois é. Mas eu entendo: psicopatas, paranoicos, megalomaníacos, etc... trabalho aqui há anos: vejo, portanto, espécimes assim o tempo todo, amigão!

(Continua)

Partiu 2018 - Novos Projetos Literários


Bem, após a incrível frequência de 3 postagens por ano em 2017, decidimos começar num ritmo ainda mais intenso este novo ciclo de 365 dias, e assim, enquanto a Hahn Solo Produções finaliza sua próxima obra (de papel mesmo) a ser publicada (se tudo der certo, ainda neste 2018!), oferecemos como "aperitivo" para os fervorosos e exigentes milhares de seguidores do De Letra ao redor do planeta este novo projeto, intitulado "Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão", uma singela historinha "experimental" (baseada em fatos reais - conforme relatos de, hã, digamos, amigos que trabalharam na área...) em (cerca de 10 ou 12) capítulos, que serão despejados provavelmente quinzenalmente (na melhor das hipóteses, semanal; na pior, mensalmente - ou seja, conforme der na telha dos editores, você sabe como é!...) aqui no blog... enfim, que não se crie lá muita expectativa, por favor (é quase simplesmente uma "pequena homenagem" - embora talvez em linhas gerais não pareça, rs -, em forma de brincadeira) - mas esperamos exatamente que quem se atreva a ler se divirta um pouco com ela!
Abraços (e obrigado, desde já, pela eventual inspiração, direta ou indireta)


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

"Paulo Sant´ana roubou minha crônica" (por Diego T. Hahn)


(Bem, se ainda persistem dúvidas quanto ao falecimento ou não do rock - cujo dia foi comemorado no mês passado e por conseguinte homenageado na publicação anterior aqui do blog - aparentemente as mesmas não se aplicam à lendária figura do jornalismo gaúcho citada no título deste texto, cuja passagem ocorreu também recentemente (na verdade, menos de uma semana depois) - embora certamente surgirão teorias de que ele está a viver em uma ilha secreta (como por sinal o texto abaixo aqui cogitava já há cerca de cinco anos atrás), ao lado de figuras como Elvis, Jimbo e Jacko... - , o que motiva-nos, portanto, a mais esta singela homenagem - com um texto que, na verdade, é um dos meus que menos gosto, mas, enfim, é o que tem mais a ver, e, de qualquer forma, o curioso do caso é que, após publicado no meu primeiro livro, "Flashbacks de um mentiroso", ouvi alguns questionamentos a respeito da trama, se seria verídica ou não... acho engraçado, me parece óbvio, mas sempre preferi aproveitar para fazer aquele "charmezinho" e deixar o "mistério", embora nunca imaginasse que aquilo pudesse mesmo ser um mistério, no ar... o que posso dizer mesmo - e essa parte é verdade (e curiosamente também forma uma espécie de "metalinguagem" com o texto em si) - é o seguinte: após a publicação do livro, lá em 2012, enviei, como bom autor iniciante desconhecido e com uma certa pretensão, alguns exemplares para alguns autores famosos - tipo David Coimbra, Martha Medeiros e para o próprio Paulo (olha a intimidade...) - e, alguns dias depois, não é que li numa coluna lá no fim da Zero um trecho, meio isolado do contexto, que falava mais ou menos da "facilidade daqueles que têm a sorte de ter talento e dos périplos a que se submetiam aqueles que não o tinham..."?... não sei, também não posso afirmar com 100% de certeza de que fora uma indireta para aquele meu artifício de divulgação da minha obra, não citava meu nome, meu livro, nem nada, talvez se referisse mesmo a qualquer outra situação ou pessoa, mas, ainda que ao mesmo tempo meio masoquista e pretensamente, devo confessar que senti - e ainda sinto - que aquela "esculachada" fora mesmo para mim e, assim, de alguma forma, também me senti um dia homenageado por Paulo Sant´ana! rsss).

Absurda história mesmo se desenrolou um dia desses, depois que um amigo veio comentar a respeito de uma crônica, segundo ele “fantástica”, que o colunista Paulo Sant`ana, de um jornal de grande circulação no sul do país, havia publicado nesse mesmo periódico na edição daquele dia. Segundo esse meu amigo, Sant`ana havia atingido o seu auge. O nirvana. A crônica das crônicas. Algo equivalente àquele anúncio do Chivas Regal, como diria Luis Fernando Veríssimo: “Chivas Regal. O Chivas Regal dos uísques”. Eu ainda não havia lido o jornal. Fiquei por conseguinte muito curioso, sendo o grande fã do Sant`ana que sempre fui. Caminhando um pouco mais pela rua e conversando com outras pessoas, percebi que todos falavam também sobre a tal crônica. “Genial” - vibravam. Polêmicas discussões pipocavam na rua, tendo como estopim as inspiradas ideias contidas naquela coluna lá na última página do jornal.
Não resisti, deveras curioso, embora fosse um belo dia de sol, e fui para casa verificar a tal crônica. Sendo eu um pretensioso aspirante a escritor, pensei em "sugar" alguma coisa de tão genial texto - ou, meio masoquista também, simplesmente me torturar de inveja.
Chegando em casa, ainda era manhã, preparei um belo café e puxei então o jornal. Dei uma folheada meio por cima nas demais páginas, esportes, quadrinhos, e logo cheguei na tão aguardada página. Tomei um belo gole do café e comecei a leitura. 
Pois qual não foi minha surpresa!...
Necessário se faz, para dar um adequado contexto à trama, regressar alguns dias no tempo. Mais precisamente um mês e quatorze dias. Pois cansado de penar atrás de uma oportunidade profissional no ramo das letras, procurando uma editora interessada em minhas crônicas, contos, poesias, devaneios ou até mesmo piadas - sim, eu invento também piadas, para desespero de minha namorada, Cláudia -, resolvi recorrer a um de meus ídolos na crônica gaúcha, Paulo Sant`ana. Enviei-lhe um e-mail. Apelei para o sentimentalismo barato - sincero, mas barato -, descaradamente. Contei um pouco da minha perambulação atrás de uma oportunidade, disse que estava cansado, desiludido com tudo, porque a gente não tem oportunidade de trabalho nesse país, a cultura é menosprezada no Brasil, sou teu fã número um... E por aí fui. Desesperadamente, em uma última cartada, por fim pedi uma chance para ele. Que ele ao menos lesse uma crônica minha que eu estaria mandando logo a seguir. Depois, se ele pudesse me recomendar para alguém que pudesse me ajudar, ou alguém que conhecesse alguém que pudesse... Bem, isso se tivesse gostado da crônica, é lógico... ou não também... e, enfim, mandei o  tal texto.
Eu, romântico que sou, realmente imaginei que ele me responderia alguma coisa. Nem que fosse algo tipo “Olá. Ok. Recebi tua crônica. Um grande abraço do Sant`ana”. Em consideração, ao menos. Sei lá. Mas nada... nem um “Sinto muito. Procure um emprego de verdade. Não vale a pena essa vida... sabe como é...”. Aí me frustrei de vez. Nem ao menos uma resposta confirmando a chegada do texto, pô! E o que mais me frustrava é que eu tinha realmente a convicção na minha cabeça que eu não era tão ruim assim... minha família, inclusive, gostava muito do que eu escrevia. Sempre me elogiavam e tal. Pensei em começar a suspeitar da sinceridade da minha família, mas agora era tarde. Eu tinha calhamaços de coisas escritas. Tinha me convencido que tinha um certo talento para o negócio. Mas não receber sequer um oi do meu ídolo foi realmente demais...
Não superei totalmente a frustração, é óbvio, mas nos últimos dias vinha pensando no que poderia fazer então da vida para ganhar dinheiro, para me realizar profissionalmente. Algo que eu não tivesse pensado antes. Tentar esquecer esse negócio de escrever. Tinha cansado de penar atrás de uma oportunidade e estava claro que as grandes corporações no Brasil não perdoam os pequenos e a gente tem que se virar como pode, mas chega uma hora que não dá mais... Cansei disso também. Desse papo. Ficar azucrinando os outros, posando de vítima do sistema, injustiçado. Estava na hora de deixar de ser tão romântico e cair na real. Arranjar um emprego "de verdade", como me diziam alguns amigos.
Pois foi nessa bela manhã, na qual eu caminhava pela rua e as pessoas falavam da crônica do Sant`ana, que eu havia decidido procurar um emprego, digamos, "normal". E foi exatamente nessa manhã que tudo mudou novamente.
Sentia eu um misto de surpresa, alegria, revolta... e talvez mais alguns sentimentos que eu não saiba descrever direito. Aí é que está. O Sant`ana sabe descrever! Eu, não... As palavras parecem fluir nas crônicas dele... nas minhas, não; nas minhas, parece que as coisas até se encaixam, mas que é tudo meio forçado... no fundo, no fundo, eu tinha noção disso; pô, não sou nenhum alienado. Tenho autocrítica. Daí a minha surpresa ao ver o que vi aquela manhã: a crônica que eu havia mandado para o Sant`ana estampada no jornal!!!!! A alegria vinha também desse fato. E a revolta era por ele ter assinado o texto com seu nome. Nenhum crédito para o real autor da crônica mais comentada de todos os tempos no Rio Grande do Sul: Eu!!!
Logo as ideias foram se assentando na minha cabeça. Concluí calmamente que aquilo era algo bom. Sem dúvida! Minha crônica estava estampada lá, para todo mundo ver! Quanto ao fato de não ter meu nome lá, imaginei que logo o Sant`ana entraria em contato comigo ou esclareceria na sua coluna nos próximos dias quem era o verdadeiro autor. Isso; com certeza! Paulo Sant`ana é um homem honrado, pensava eu, embora não o conhecesse pessoalmente. Só o via na televisão e lia sua coluna no jornal. Mas ele é um grande sujeito, sem dúvida. Apesar de gremista. Sempre defendeu os mais fracos. Sempre protestou contra a covardia, contra as injustiças, contra os abusos...
Mas, bem, o tempo foi passando e... nada. Nenhum contato. E o que era pior: a partir do dia seguinte à publicação da minha crônica, na coluna dele começaram a ser reprisadas crônicas antigas. Nenhuma menção à real autoria da última crônica inédita até então na coluna. O que teria acontecido? Bom, concluí eu, otimista como sempre, de repente o cara ficou doente e não está podendo escrever no momento. Pegou umas férias. Algo assim. E quando voltar vai esclarecer tudo. É, com certeza. Que bobagem eu me preocupar à toa!... Não teria eu por que duvidar da lisura de Paulo Sant`ana, um dos ícones da comunicação gaúcha, não é mesmo!?
Mas a verdade é que eu estava, sim, angustiado - e a angústia só aumentava. Todo dia, de manhã bem cedinho ia eu lá conferir a coluna do Sant`ana. Como aquele sujeito que vai conferir o resultado da Mega-Sena. Aquela esperança. Pensando no que fazer caso o prêmio saia hoje. Mas nada. E dê-lhe reprise... E, cansado daquela angústia, resolvi correr atrás do prejuízo. Mandei mais e-mails para o Sant´ana (também para o "Pablo", no mesmo endereço, mas só mudando o nome do destinatário - vai saber...) e para o jornal. Também já estava cansado daquela história de o pessoal rir debochadamente da minha cara cada vez que eu tentava contar que era eu o autor daquele famoso texto... Uns até fingiam tentar acreditar, mas sei que nunca lhes passaria pela cabeça realmente duvidar da honra daquele lendário jornalista. Provavelmente saíam depois pensando: “Pronto, pirou de vez, de tanto insistir nessa história de escrever...”. E nem adiantavam meus argumentos, como o do fato de depois daquele dia ele não ter escrito mais nada novo. Na verdade, nem eu mesmo acreditaria naquela história maluca se não estivesse diretamente envolvido nela... Mas que diabo afinal de contas estaria acontecendo?? Estaria eu enlouquecendo? Será que imaginei que tinha escrito e enviado para o Sant`ana aquela bendita crônica?? Ou teria sido tudo real e depois de ter publicado meu texto ele teria simplesmente sido abduzido por extraterrestres? Eu já começava a rir daquilo tudo... Não sabia mais no que pensar. Relaxei por uns momentos. Comecei a ver o lado surreal daquilo tudo. E, na verdade, o mais importante de tudo: minha crônica estava lá, no jornal, para todo mundo ver. Meu nome, não; é verdade. Mas minha crônica estava lá. Foda-se. Sim, é isso aí! Foda-se!...
Porém, não, aquela espécie de "catarse" era mais uma tentativa de me iludir; não, aquilo não bastava para mim, alguns minutos depois eu me dava conta outra vez. Paulo Sant`ana me devia satisfações. Ponto. E agora já não bastava um “Sinto muito. Procure um emprego de verdade. Não vale a pena essa vida... sabe como é...”, pois obviamente ele havia gostado da minha crônica! - e uma grande parcela do Rio Grande do Sul também, pelo visto...
Mas eu não sabia mais o que fazer. Eu não tinha respostas. Nem do Sant´ana, nem do... 
Até que o jornal um dia me respondeu. Acho que de tanto eu azucrinar os caras... A princípio, nem devem ter respondido meus e-mails por imaginarem se tratar de alguma brincadeira ou coisa de algum lunático. Talvez, aliás, eles ainda estivessem achando que fosse algo assim, mas assim mesmo resolveram responder. Talvez para se livrar de mim. E mais uma vez fui surpreendido pelo que eu lia ali na minha frente. Não vou dizer que a surpresa era tão grande quanto a de ver a minha crônica no jornal, mas foi também impactante - e, no fim das contas, só serviu para aumentar o mistério que já rondava minha cabeça.
Eles me disseram que Sant`ana... havia se aposentado.
Durante dias continuei enchendo o saco do pessoal do jornal, tentando obter respostas mais claras. Como assim, havia se aposentado? De repente? Por quê? E por que logo depois da minha crônica? - embora eles não acreditassem que era minha crônica...
O resto da população gaúcha também ficou estarrecido com tão repentina surpresa. Houve uma grande comoção por alguns dias, logo depois que a notícia havia estourado. Gente chorava, até mesmo. Mas para mim em especial ainda havia mais. E nada de resposta do sujeito. Aparentemente, aliás, ele havia sumido do mapa, comentava-se pelas ruas de Porto Alegre. Ninguém nunca mais havia visto ele na capital gaúcha. Nunca desisti completamente da ideia de ter aquilo tudo esclarecido e que enfim eu pudesse ter o devido reconhecimento, mas já me contentava com a possibilidade de ao menos receber uma resposta qualquer dele. O sujeito, no entanto, realmente parecia ter virado fumaça.
Meses se passaram. A última página do jornal foi aposentada, como se aposentam as camisas dos grandes ídolos de certos times, como a 23 do Chicago Bulls, antigamente usada por Michael Jordan, e que nunca mais poderá ser usada por nenhum outro atleta. Ninguém mais poderia escrever naquela última página. Em Porto Alegre, logo surgiu o grupo “Viúvas do Sant`ana”, que não se limitava a mulheres, como poderia sugerir o nome, mas abrangia todos aqueles fãs do colunista, que se reuniam para debater crônicas que ele havia escrito ao longo dos seus anos de jornalismo. Logo o grupo espalhou-se pelo interior do estado também e até em alguns outros estados do país.
Mas do Sant´ana ninguém nunca mais havia sabido realmente nada. O jornal se limitava a informar que ele havia se aposentado e que não tinha mais nenhuma informação. Eu, embora quisesse e até tentasse, não conseguia mais me concentrar para escrever. Sentava em frente ao computador, digitava algumas linhas, mas logo meu pensamento se perdia. Recorria então à máquina de escrever, com a qual me sentia um pouco mais à vontade. Nada. Eu até tinha umas boas ideias, mas não conseguia engrenar. Não ia até o fim. Parecia que havia algo me emperrando. E realmente havia. Até o dia em que chegou um cartão postal para mim.
O remetente se chamava Pablo e escrevia para mim do Caribe. Dizia que escrevia de uma rede, onde estava deitado olhando para o azul do mar. Ou do céu. Ele nem sabia mais. Os dois se confundiam de tão azuis. Era tudo que ele sempre quis. E me mandava um grande “obrigado”. Dizia que era a sua chance para acabar a carreira com chave de ouro. Não conseguia imaginar que um outro alguém que não ele poderia escrever aquilo. Foi mais forte do que ele, então: teve que publicar em seu nome. Mas tratou de esclarecer que não foi exatamente um acesso de vaidade. Foi algo mais forte do que isso, tal o impacto da minha crônica nele. A crônica tomou conta dele. Passou a ser dele. A crônica era realmente dele. E, depois dela, não teria como continuar escrevendo. Depois de atingir o pico, qualquer coisa que escrevesse o frustraria. Quanto a mim, disse que estava me prestando um favor. Se a crônica não tivesse sido publicada na sua coluna, apesar de muito boa, provavelmente não teria o reconhecimento que teve. Provavelmente, mesmo que tivesse sido publicada, mas com o meu nome, não teria o alcance que teve. Então, eu deveria ficar orgulhoso por ela, completava ele. Eu devia pensar nela como uma filha. Uma filha que foi longe, que ganhou o mundo. E no fim, todos nós havíamos sido ajudados: eu, ele e a crônica. Eu, por poder perceber que tenho realmente talento, apesar da minha romaria atrás de uma oportunidade não ter tido até então o efeito desejado. E por poder perceber também que às vezes o mundo é mesmo cruel, e ele não se referia à sua própria atitude, mas sim ao fato de que muitas vezes muitas coisas belas se perdem pelo fato de as pessoas que as criam ou cuidam delas simplesmente ainda não terem a devida influência, o devido reconhecimento. Finalizava me desejando boa sorte e que um dia eu estivesse lá, como ele, desfrutando das benesses que meu talento fatalmente me traria, independentemente daquilo que o mundo a princípio achasse.
Acabei de ler e fiquei por instantes ainda com uma impressão de vazio. A princípio, a resposta não havia me contentado. Então, ficaria tudo assim? Mas ao reler mais algumas vezes o cartão, passei a captar melhor a mensagem. Ou pelo menos resolvi me enganar, concluindo que havia entendido tudo.
De qualquer forma, enfim comecei a sentir a inspiração realmente voltando. Estava pronto para retornar à jornada atrás de uma oportunidade. Aquilo tudo, no fim das contas, havia me ajudado a ver que eu devia ir atrás daquilo que eu realmente queria e não de um “emprego de verdade”. O que eu realmente queria fazer da vida era o meu emprego de verdade. Paulo Sant`ana acabou sendo mais do que um ídolo. Virou meu mestre. Meu tutor. Meu guru.
Mas... bem... 
...por via das dúvidas, minha próxima crônica supostamente interessante vou enviar para uma avaliação é do Veríssimo, caramba!

quinta-feira, 13 de julho de 2017

O último Rei do Rock (por Diego T. Hahn)


(Para comemorar o Dia Mundial do Rock, que se celebra hoje, 13 de julho, libero em primeira mão especialmente para você, um dos cinco fiéis leitores do "De Letra", este meu texto, inédito para o grande pequeno público em geral, premiado no ano de 2014 na categoria Conto do Concurso Literário Felippe D´Oliveira. Espero que curta - de preferência ao som de um Ozzy ou Led!...)


-                   - ONE-TWO-THREE-FOUR!!!...
É, naquele tempo havia ainda uma meia dúzia deles vagando por aí. Estavam confinados em botecos fuleiros, onde tocavam para minúsculas plateias, que se concentravam especialmente no balcão do bar e eram formadas por uns tiozões de olhos caídos e alguns outros esquisitões. A pista, vazia. Nos cantos dela, ao lado dos pilares, ainda havia umas três ou quatro meninas, cabelos coloridos, piercing e tatuagem em alguma parte da anatomia, vagos resquícios das antigas gruppies. Mas elas não emprestavam sua beleza ao lugar por muito tempo e, assim que terminava o show, partiam para alguma outra casa de espetáculos, para assistir geralmente algum pagode ou sertanejo da vida. Ninguém conseguia mais tirar uma casquinha e restavam lá realmente só os malucos. O rock estava definhando. A cada dia que passava um roqueiro sumia e ressurgia no dia seguinte de chapelão de caubói, formando geralmente uma nova dupla sertaneja. Mas uma meia dúzia ainda resistia.
E, entre eles, Otávio, a lenda.
Pagodeiros e sertanejos não eram vistos exatamente como inimigos. Era “cada um na sua”, simplesmente. Os pagodeiros eram uma realidade com a qual se convivia já há tempos, era algo estabelecido. Mas o fenômeno sertanejo era algo relativamente novo e estava no seu auge, praticamente monopolizando as atenções do grande público. E assim Otávio os via à distância com seus salões e pistas abarrotados e não podia deixar de sentir uma pontada de inveja.
- Lembro sempre daquela vez que toquei pra 30 mil pessoas... – era uma história recorrente sua, de uma ocasião na qual, segundo ele, junto com outras bandas, tocara em um festival musical para um grande público numa cidadezinha do Mato Grosso, em meio a uma tour que fazia pelo país – veja você, no Mato Grosso!, um tradicional reduto deles... – dava ares épicos ao nostálgico relato na mesa do bar quase vazio após o show, rodeado por três bêbados e pelo barman, que aguardava impaciente a partida do derradeiro grupo.
Não havia nenhum registro impresso ou em áudio ou vídeo do tal evento. Ninguém lembrava de ter ouvido falar dele, também. “Era lá pelos anos 70”, tentava situar Otávio. Muitos suspeitavam da veracidade do fato.  Anos 70, ainda por cima... Otávio podia estar doidão e ter imaginado tudo... enfim..
Mas, no fim das contas, vai saber: nos contos de rock, assim como nos de fadas, tudo é possível.
Já nos tempos nos quais se passa esta nossa história, Otávio costumava tocar para públicos de trinta ou quarenta pessoas. Em um outro recente festival no litoral, conseguira a fantástica audiência de 300 cabeças.
Mas Otávio não desistia, seguia na estrada. Ia já para os seus sessenta anos de idade. Via-se como uma referência para os roqueiros mais jovens que ainda tentavam. “Dinossauro do rock”, imaginava sempre, orgulhoso, que se referissem a ele por aí. “O rei do rock”, era mais frequente, que, entre realmente reverente e ao mesmo tempo um tanto quanto sarcástico, voltasse sua atenção a ele o pessoal da geração mais nova. “O último rei do rock”.
E pensar que um personagem folclórico daqueles parecia extinguir-se pouco a pouco no escuro daqueles bares e ninguém percebia aquela perda! – àquelas alturas, ninguém lembrava a trajetória de Otávio; era como se ele tivesse começado nos dias de então, era como se fosse apenas mais um novato, ninguém tinha noção de tudo pelo que passara, as loucuras, aventuras e desventuras da sua vida de roqueiro... parecia que havia começado já no ocaso... era praticamente uma lenda perdida.
Ninguém, exceto, contudo, um estranho nerd estudante de jornalismo com ideais revolucionário-contraculturais - ou algo assim - já na casa dos seus quarenta e poucos, em um outro ponto distante da cidade, um sujeito que tinha há tempos um projeto de um documentário a respeito da vida de Otávio, embora este não conhecesse o cara e nem nunca tivesse ficado sabendo da ideia. O projeto, porém, por motivos dos mais variados, nunca saía do papel e, até o fechamento deste texto não se tem notícia que tenha acontecido e, o mais provável, é imaginar que ele tenha ficado engavetado para todo o sempre, condenando assim a história de Otávio a se perder nas brumas do tempo, entre resquícios de memórias bêbadas e “Aquela vez, no Mato Grosso...”, como seguia ele com aquela história. Parecia que era o que lhe dava forças para seguir adiante, aquela simples lembrança, e o passado um dia viraria futuro.
Mas a verdade é que o rock minguava nos bares e nos clubes. Mesmo os esquisitões, com suas camisas do Led, do Motorhead, do Nirvana, do Pink, e, claro, dos Ramones, pareciam estar desaparecendo. Bem, talvez alguns, que eram mais velhos – realmente, alguns eram até bem mais velhos que Otávio – tivessem mesmo passado desta para a melhor, cogitavam os barmen e as bartenders atrás dos balcões e os músicos em cima do palco, o que os angustiava ainda mais, pois aquelas camisas, pendendo no escuro enquanto o local vibrava com a distorção das guitarras, aquelas camisas eram como estandartes de guerra, eram como um símbolo da resistência, eram como uma fonte de energia e inspiração para os caras em cima do palco, assim como a lembrança do Mato Grosso talvez fosse particularmente para Otávio.
Eis que um belo dia, quando já não havia talvez mais do que três ou quatro bandas de rock na cidade, Otávio foi convidado para tocar novamente em um festival.
- Cara, demais! Lembro, inclusive, daquela vez, no Mato Grosso...
A coisa seria grande. Vários estilos misturados – revezados, contudo, em palcos distintos: seriam dois, um menor, onde tocaria Otávio, entre outros da antiga e iniciantes, e o maior, onde se apresentariam os artistas em evidência no momento. Não seriam trinta mil, como supostamente no Mato Grosso aquela vez, mas previa-se um público de cerca de cinco mil pessoas, o que já era um público e tanto para a cidade, coisa que há tempos não se via mesmo nas imediações.
Pois chegara o grande dia e Otávio apareceu com antecedência ao local onde aconteceria o espetáculo. Não havia ainda ninguém além dele lá. O sol ainda brilhava no céu, o que acentuava as rugas e olheiras do roqueiro, seu longo cabelo desgrenhado em contraste com suas ligeiras entradas no topo da testa, as tatuagens desbotadas no braço. Ele caminhava devagar. Estava cansado. Havia dormido mal. Sentia-se realmente velho então. Sentia, certo, um desgaste físico de uma vida. De uma vida de rock. Mas, mais do que físico também, sentiu-se velho mentalmente ao olhar para aquele palco onde se apresentariam os bambambans e imaginou toda aquela gente ali, aquela juventude gritando, pulando, os caras sorrindo seus sorrisos perfeitos e jovens também no palco, com suas camisas bem passadas e seus chapelões na cabeça. Sentiu-se, mais do que velho, pela primeira vez deslocado, em um ambiente daqueles. Sentiu que sua carreira estava realmente no fim – se é que já não havia acabado. “Dinossauro do rock”. Ora bolas, os dinossauros estavam extintos há eras!...
Entrou no espaço dos camarins, deslocou-se até o seu, uma simples salinha sete por cinco com paredes de madeira, uma mesa e quatro cadeiras no meio, um sofá no canto. Jogou-se no sofá e apagou.
Acordou com os rapazes da banda invadindo o recinto e, empolgados, chamando-o. Dormira. Dormira por horas. Acordava então zonzo. Custou a princípio a dar-se conta de onde estava. Bocejou. Havia agora águas e cervejas em cima da mesa. Puxou uma mineral no gut-gut, enquanto esfregava os olhos. Os rapazes o olhavam, rindo, e um pouco constrangidos.
- Pô, tá com sono, Otávio?
- Logo hoje, cara?
Otávio olhou para eles. Pareceu voltar então a real; voltar ao seu velho mundo.
- Não... – balbuciou, e, em seguida, firmando a voz, complementou, já mais confiante – Não... Não! vamos dar um show do c#%(¨&* pra eles lá embaixo, rapaziada!! – e, após respirar fundo e pegar fôlego, urrou um urro gutural, olhos esbugalhados, como algum guerreiro celta diante da possibilidade de uma boa morte em batalha diante do império romano que avançava imponente.
Os rapazes vibraram, o abraçaram, e foram acabar de se vestir e afinar os instrumentos.
“Se vai começar, vá fundo, vá até o fim...”, pensava consigo mesmo, parafraseando certo velho poeta roqueiro que lhe vinha à mente então.
Desceram ao seu palco e fizeram um baita show. Tocaram para minguadas cinquenta pessoas, mas não importava. Lá embaixo a galera curtia, sim, o show, via-se: balançavam as cabeças, e sorriam contentes, e um que outro levantava o mindinho e o indicador, segurando os outros dedos, e erguia o braço, como a aprovar o som e fazer uma solitária ode ao rock´n roll, e a certa altura uns cinco ou seis começaram a se bater amigavelmente uns contra os outros no meio da pista naquela outra espécie de curioso ritual roqueiro. Em seguida, um inclusive sobe ao palco e joga-se de peito lá embaixo, sendo seguro por outros três, e começando a surfar sobre a galera, não obstante a falta de maiores ondas, enquanto o baixista bradava “Sertanejos não surfam! Sertanejos não surfam!!” – e tudo aquilo era a verdadeira felicidade para Otávio.
Mas parecia faltar algo ainda.
Sim, haviam feito mesmo um ótimo show. Sim, a galera jogou junto. Mas faltava algo para o velho roqueiro. Faltava cruzar alguma fronteira.
Brindaram no camarim, tomaram algumas bebidas e ficaram papeando e rindo juntos e foi divertido, mas depois que os rapazes foram embora, Otávio permaneceu lá, jogado no sofá, pensando na vida. Ou, simplesmente, não pensando.
Voltou sua atenção à realidade quando, no palco maior, uma dupla de sertanejos despedia-se do ruidoso público. Os tais cinco mil deviam estar lá. Aqui somos os trezentos de Esparta, pensou, rindo. Começou a ouvir o som da banda que se apresentava então no palco pequeno. Mais alguns integrantes da resistência. Alguns garotos roqueiros. Idealistas. Tsc, tsc, tsc. Não durarão muito. Ninguém dura muito hoje em dia, pensava Otávio. Mas sentia um extremo orgulho deles ali naquele momento. Sentia um orgulho paternal. Sim, sentia-se mesmo como uma espécie de pai deles.
E, como pai deles, precisava oferecer-lhes proteção. Estava velho, sim, mas, não, não estava acabado. Recém havia mostrado aquilo, exatamente naquele mesmo palco, alguns minutos atrás.
Foi então que vislumbrou tudo. Havia um intervalo no palco maior. O público, ensandecido, permanecia lá, em pé, vibrando, gritando, chamando pela próxima atração – sertaneja, provavelmente; ele não sabia ao certo, mas, sim, devia ser...
Cinco mil pessoas. Aquele enorme palco. Sim, agora ele entendia:
Aquela era a fronteira a cruzar.
Ajeitou-se no sofá. Suas energias se renovavam. Viu-se saindo do camarim, guitarra em punho, cruzando o corredor escuro e entrando, solitariamente, naquele palco iluminado.
Aquele mar de chapéus de caubói lá embaixo. Olhares petrificados nele. Era como o forasteiro cavaleiro solitário invadindo o saloon nos faroestes de antigamente. Mas, gostem ou não gostem, eu estou aqui. Essa era a mensagem.
Arrancaria um solo distorcido de sua velha parceira – não, não tocaria No rancho fundo em homenagem aos “inimigos” da sua época, bradando “Vocês querem sertanejo? Pois ISTO é sertanejo, meus amigos!!”, como você pensou  –  e, olhos fechados, dedicaria aquele seu sacrifício aos deuses do rock. Haveria, a princípio, um silêncio respeitoso na plateia. Depois a mesma se dividiria. Alguns reclamariam, talvez, que não era o que esperavam, não haviam pagado por aquilo, por aquele ritual quase pagão...
Outros, contudo, começariam, no fundo, no fundo, para suas próprias surpresas, a pouco a pouco se sentir bem com aquela vibração, com aquela energia...
Logo ele visualizaria, entre surpreso e divertido, uma meia dúzia de chapéus de caubói se chocando amistosamente no meio da pista, algumas mãos erguidas aqui e ali com seus mindinhos e indicadores imponente e desafiadoramente eretos, alguém levantaria também a camisa xadrez e mostraria embaixo dela a camisa preta do Metallica, e, enquanto ele ainda solava como hipnotizado, o ápice, com um sertanejo subindo ao palco e voando para ser seguro pela multidão e contrariar o baixista da banda de Otávio.
Você sabe, nos contos de rock tudo pode acontecer...
Ou, claro, podia dar tudo errado e ele ser implacavelmente vaiado, a maior vaia de sua vida, e ter garrafinhas de plástico de água jogadas aos montes na sua cabeça... fazia parte correr os riscos...
Fosse como fosse, Otávio, elétrico, como num choque, levantou-se do sofá e catou sua velha guitarra vermelha.
Era sua tão aguardada cruzada final – e, no fim das contas, depois de todo sofrimento, todas as privações, será como roubar o fogo dos deuses, e é a única boa briga que existe, disse para si mesmo, novamente parafraseando aquele velho poeta roqueiro de outrora, que insistia em lhe vir à mente naquele momento.
Afinal, como se diz, rock não é só um estilo musical... rock não é só pancadaria na batera e guitarras distorcidas...
Rock, meu amigo... Rock é atitude!

Oh, yeeeeeaaah!