(Para comemorar o Dia Mundial do Rock, que se celebra hoje, 13 de julho, libero em primeira mão especialmente para você, um dos cinco fiéis leitores do "De Letra", este meu texto, inédito para o grande pequeno público em geral, premiado no ano de 2014 na categoria Conto do Concurso Literário Felippe D´Oliveira. Espero que curta - de preferência ao som de um Ozzy ou Led!...)
- - ONE-TWO-THREE-FOUR!!!...
É,
naquele tempo havia ainda uma meia dúzia deles vagando por aí. Estavam
confinados em botecos fuleiros, onde tocavam para minúsculas plateias, que se
concentravam especialmente no balcão do bar e eram formadas por uns tiozões de
olhos caídos e alguns outros esquisitões. A pista, vazia. Nos cantos dela, ao
lado dos pilares, ainda havia umas três ou quatro meninas, cabelos coloridos, piercing e tatuagem em alguma parte da
anatomia, vagos resquícios das antigas gruppies.
Mas elas não emprestavam sua beleza ao lugar por muito tempo e, assim que
terminava o show, partiam para alguma outra casa de espetáculos, para assistir geralmente
algum pagode ou sertanejo da vida. Ninguém conseguia mais tirar uma casquinha e
restavam lá realmente só os malucos. O rock estava definhando. A cada dia que
passava um roqueiro sumia e ressurgia no dia seguinte de chapelão de caubói,
formando geralmente uma nova dupla sertaneja. Mas uma meia dúzia ainda
resistia.
E,
entre eles, Otávio, a lenda.
Pagodeiros
e sertanejos não eram vistos exatamente como inimigos. Era “cada um na sua”,
simplesmente. Os pagodeiros eram uma realidade com a qual se convivia já há
tempos, era algo estabelecido. Mas o fenômeno sertanejo era algo relativamente
novo e estava no seu auge, praticamente monopolizando as atenções do grande
público. E assim Otávio os via à distância com seus salões e pistas abarrotados
e não podia deixar de sentir uma pontada de inveja.
-
Lembro sempre daquela vez que toquei pra 30 mil pessoas... – era uma história
recorrente sua, de uma ocasião na qual, segundo ele, junto com outras bandas,
tocara em um festival musical para um grande público numa cidadezinha do Mato
Grosso, em meio a uma tour que fazia
pelo país – veja você, no Mato Grosso!, um tradicional reduto deles... – dava ares épicos ao
nostálgico relato na mesa do bar quase vazio após o show, rodeado por três
bêbados e pelo barman, que aguardava impaciente a partida do derradeiro grupo.
Não
havia nenhum registro impresso ou em áudio ou vídeo do tal evento. Ninguém
lembrava de ter ouvido falar dele, também. “Era lá pelos anos 70”, tentava
situar Otávio. Muitos suspeitavam da veracidade do fato. Anos 70, ainda por cima... Otávio podia estar
doidão e ter imaginado tudo... enfim..
Mas,
no fim das contas, vai saber: nos contos de rock, assim como nos de fadas, tudo
é possível.
Já
nos tempos nos quais se passa esta nossa história, Otávio costumava tocar para
públicos de trinta ou quarenta pessoas. Em um outro recente festival no
litoral, conseguira a fantástica audiência de 300 cabeças.
Mas
Otávio não desistia, seguia na estrada. Ia já para os seus sessenta anos de
idade. Via-se como uma referência para os roqueiros mais jovens que ainda
tentavam. “Dinossauro do rock”, imaginava sempre, orgulhoso, que se referissem
a ele por aí. “O rei do rock”, era mais frequente, que, entre realmente
reverente e ao mesmo tempo um tanto quanto sarcástico, voltasse sua atenção a
ele o pessoal da geração mais nova. “O último rei do rock”.
E
pensar que um personagem folclórico daqueles parecia extinguir-se pouco a pouco
no escuro daqueles bares e ninguém percebia aquela perda! – àquelas alturas,
ninguém lembrava a trajetória de Otávio; era como se ele tivesse começado nos
dias de então, era como se fosse apenas mais um novato, ninguém tinha noção de
tudo pelo que passara, as loucuras, aventuras e desventuras da sua vida de
roqueiro... parecia que havia começado já no ocaso... era praticamente uma
lenda perdida.
Ninguém,
exceto, contudo, um estranho nerd estudante
de jornalismo com ideais revolucionário-contraculturais - ou algo assim - já na
casa dos seus quarenta e poucos, em um outro ponto distante da cidade, um
sujeito que tinha há tempos um projeto de um documentário a respeito da vida de
Otávio, embora este não conhecesse o cara e nem nunca tivesse ficado sabendo da
ideia. O projeto, porém, por motivos dos mais variados, nunca saía do papel e,
até o fechamento deste texto não se tem notícia que tenha acontecido e, o mais
provável, é imaginar que ele tenha ficado engavetado para todo o sempre,
condenando assim a história de Otávio a se perder nas brumas do tempo, entre
resquícios de memórias bêbadas e “Aquela vez, no Mato Grosso...”, como seguia
ele com aquela história. Parecia que era o que lhe dava forças para seguir
adiante, aquela simples lembrança, e o passado um dia viraria futuro.
Mas
a verdade é que o rock minguava nos bares e nos clubes. Mesmo os esquisitões,
com suas camisas do Led, do Motorhead, do Nirvana, do Pink, e, claro, dos
Ramones, pareciam estar desaparecendo. Bem, talvez alguns, que eram mais velhos
– realmente, alguns eram até bem mais velhos que Otávio – tivessem mesmo passado
desta para a melhor, cogitavam os barmen
e as bartenders atrás dos balcões e
os músicos em cima do palco, o que os angustiava ainda mais, pois aquelas
camisas, pendendo no escuro enquanto o local vibrava com a distorção das
guitarras, aquelas camisas eram como estandartes de guerra, eram como um
símbolo da resistência, eram como uma fonte de energia e inspiração para os
caras em cima do palco, assim como a lembrança do Mato Grosso talvez fosse
particularmente para Otávio.
Eis
que um belo dia, quando já não havia talvez mais do que três ou quatro bandas
de rock na cidade, Otávio foi convidado para tocar novamente em um festival.
-
Cara, demais! Lembro, inclusive, daquela vez, no Mato Grosso...
A
coisa seria grande. Vários estilos misturados – revezados, contudo, em palcos
distintos: seriam dois, um menor, onde tocaria Otávio, entre outros da antiga e
iniciantes, e o maior, onde se apresentariam os artistas em evidência no
momento. Não seriam trinta mil, como supostamente no Mato Grosso aquela vez,
mas previa-se um público de cerca de cinco mil pessoas, o que já era um público
e tanto para a cidade, coisa que há tempos não se via mesmo nas imediações.
Pois
chegara o grande dia e Otávio apareceu com antecedência ao local onde
aconteceria o espetáculo. Não havia ainda ninguém além dele lá. O sol ainda
brilhava no céu, o que acentuava as rugas e olheiras do roqueiro, seu longo
cabelo desgrenhado em contraste com suas ligeiras entradas no topo da testa, as
tatuagens desbotadas no braço. Ele caminhava devagar. Estava cansado. Havia
dormido mal. Sentia-se realmente velho então. Sentia, certo, um desgaste físico
de uma vida. De uma vida de rock. Mas, mais do que físico também, sentiu-se
velho mentalmente ao olhar para aquele palco onde se apresentariam os
bambambans e imaginou toda aquela gente ali, aquela juventude gritando,
pulando, os caras sorrindo seus sorrisos perfeitos e jovens também no palco,
com suas camisas bem passadas e seus chapelões na cabeça. Sentiu-se, mais do
que velho, pela primeira vez deslocado, em um ambiente daqueles. Sentiu que sua
carreira estava realmente no fim – se é que já não havia acabado. “Dinossauro
do rock”. Ora bolas, os dinossauros estavam extintos há eras!...
Entrou
no espaço dos camarins, deslocou-se até o seu, uma simples salinha sete por cinco
com paredes de madeira, uma mesa e quatro cadeiras no meio, um sofá no canto.
Jogou-se no sofá e apagou.
Acordou
com os rapazes da banda invadindo o recinto e, empolgados, chamando-o. Dormira.
Dormira por horas. Acordava então zonzo. Custou a princípio a dar-se conta de
onde estava. Bocejou. Havia agora águas e cervejas em cima da mesa. Puxou uma
mineral no gut-gut, enquanto esfregava os olhos. Os rapazes o olhavam, rindo, e
um pouco constrangidos.
-
Pô, tá com sono, Otávio?
-
Logo hoje, cara?
Otávio
olhou para eles. Pareceu voltar então a real; voltar ao seu velho mundo.
-
Não... – balbuciou, e, em seguida, firmando a voz, complementou, já mais
confiante – Não... Não! vamos dar um show do c#%(¨&* pra eles lá embaixo,
rapaziada!! – e, após respirar fundo e pegar fôlego, urrou um urro gutural,
olhos esbugalhados, como algum guerreiro celta diante da possibilidade de uma
boa morte em batalha diante do império romano que avançava imponente.
Os
rapazes vibraram, o abraçaram, e foram acabar de se vestir e afinar os
instrumentos.
“Se
vai começar, vá fundo, vá até o fim...”, pensava consigo mesmo, parafraseando
certo velho poeta roqueiro que lhe vinha à mente então.
Desceram
ao seu palco e fizeram um baita show. Tocaram para minguadas cinquenta pessoas,
mas não importava. Lá embaixo a galera curtia, sim, o show, via-se: balançavam
as cabeças, e sorriam contentes, e um que outro levantava o mindinho e o
indicador, segurando os outros dedos, e erguia o braço, como a aprovar o som e
fazer uma solitária ode ao rock´n roll, e a certa altura uns cinco ou seis
começaram a se bater amigavelmente uns contra os outros no meio da pista
naquela outra espécie de curioso ritual roqueiro. Em seguida, um inclusive sobe
ao palco e joga-se de peito lá embaixo, sendo seguro por outros três, e
começando a surfar sobre a galera, não obstante a falta de maiores ondas,
enquanto o baixista bradava “Sertanejos não surfam! Sertanejos não surfam!!” –
e tudo aquilo era a verdadeira felicidade para Otávio.
Mas
parecia faltar algo ainda.
Sim,
haviam feito mesmo um ótimo show. Sim, a galera jogou junto. Mas faltava algo
para o velho roqueiro. Faltava cruzar alguma fronteira.
Brindaram
no camarim, tomaram algumas bebidas e ficaram papeando e rindo juntos e foi
divertido, mas depois que os rapazes foram embora, Otávio permaneceu lá, jogado
no sofá, pensando na vida. Ou, simplesmente, não pensando.
Voltou
sua atenção à realidade quando, no palco maior, uma dupla de sertanejos
despedia-se do ruidoso público. Os tais cinco mil deviam estar lá. Aqui somos
os trezentos de Esparta, pensou, rindo. Começou a ouvir o som da banda que se
apresentava então no palco pequeno. Mais alguns integrantes da resistência.
Alguns garotos roqueiros. Idealistas. Tsc, tsc, tsc. Não durarão muito. Ninguém
dura muito hoje em dia, pensava Otávio. Mas sentia um extremo orgulho deles ali
naquele momento. Sentia um orgulho paternal. Sim, sentia-se mesmo como uma
espécie de pai deles.
E,
como pai deles, precisava oferecer-lhes proteção. Estava velho, sim, mas, não,
não estava acabado. Recém havia mostrado aquilo, exatamente naquele mesmo
palco, alguns minutos atrás.
Foi
então que vislumbrou tudo. Havia um intervalo no palco maior. O público,
ensandecido, permanecia lá, em pé, vibrando, gritando, chamando pela próxima
atração – sertaneja, provavelmente; ele não sabia ao certo, mas, sim, devia ser...
Cinco
mil pessoas. Aquele enorme palco. Sim, agora ele entendia:
Aquela
era a fronteira a cruzar.
Ajeitou-se
no sofá. Suas energias se renovavam. Viu-se saindo do camarim, guitarra em
punho, cruzando o corredor escuro e entrando, solitariamente, naquele palco
iluminado.
Aquele
mar de chapéus de caubói lá embaixo. Olhares petrificados nele. Era como o
forasteiro cavaleiro solitário invadindo o saloon
nos faroestes de antigamente. Mas, gostem ou não gostem, eu estou aqui. Essa
era a mensagem.
Arrancaria
um solo distorcido de sua velha parceira – não, não tocaria No rancho fundo em homenagem aos “inimigos”
da sua época, bradando “Vocês querem
sertanejo? Pois ISTO é sertanejo, meus amigos!!”, como você pensou – e,
olhos fechados, dedicaria aquele seu sacrifício aos deuses do rock. Haveria, a
princípio, um silêncio respeitoso na plateia. Depois a mesma se dividiria.
Alguns reclamariam, talvez, que não era o que esperavam, não haviam pagado por
aquilo, por aquele ritual quase pagão...
Outros,
contudo, começariam, no fundo, no fundo, para suas próprias surpresas, a pouco
a pouco se sentir bem com aquela vibração, com aquela energia...
Logo
ele visualizaria, entre surpreso e divertido, uma meia dúzia de chapéus de
caubói se chocando amistosamente no meio da pista, algumas mãos erguidas aqui e
ali com seus mindinhos e indicadores imponente e desafiadoramente eretos,
alguém levantaria também a camisa xadrez e mostraria embaixo dela a camisa
preta do Metallica, e, enquanto ele ainda solava como hipnotizado, o ápice, com
um sertanejo subindo ao palco e voando para ser seguro pela multidão e
contrariar o baixista da banda de Otávio.
Você
sabe, nos contos de rock tudo pode acontecer...
Ou,
claro, podia dar tudo errado e ele ser implacavelmente vaiado, a maior vaia de
sua vida, e ter garrafinhas de plástico de água jogadas aos montes na sua
cabeça... fazia parte correr os riscos...
Fosse
como fosse, Otávio, elétrico, como num choque, levantou-se do sofá e catou sua
velha guitarra vermelha.
Era
sua tão aguardada cruzada final – e, no fim das contas, depois de todo
sofrimento, todas as privações, será como roubar o fogo dos deuses, e é a única
boa briga que existe, disse para si mesmo, novamente parafraseando aquele velho
poeta roqueiro de outrora, que insistia em lhe vir à mente naquele momento.
Afinal,
como se diz, rock não é só um estilo musical... rock não é só pancadaria na batera e guitarras distorcidas...
Rock,
meu amigo... Rock é atitude!
Oh, yeeeeeaaah!
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