Nossas façanhas
O pai observava atentamente o guri que zanzava pra cima e pra baixo do apartamento pilchado com sua bombacha e cantando o hino do Rio Grande...
- “Como a aurora precursora”...
O pai, nascido e crescido em meio ao
campo lá pros lados de São Borja, perguntava-se se o filho fazia ideia do que
significava a palavra “precursora”, mas admitia consigo mesmo que a pronúncia
do guri era boa e a voz não era nada ruim também.
Há dias o velho analisava o piá,
adolescente na casa dos dezesseis anos, e aquele seu entusiasmo todo da
repentina descoberta do Rio Grande do Sul como centro do Universo.
Via-o digitando nas tais redes sociais na internet poemas e odes louvando o estado e sua suposta superioridade em relação ao resto do mundo, muitas vezes discutindo com gente natural de outros estados ou mesmo países, enaltecendo o histórico peleador do gaúcho, seu inconformismo, sua educação, a qualidade de vida local, e os grandes feitos também de Inter e Grêmio no futebol e... foi quando o velho, que efetivamente conhecia o histórico do estado, mas também sua realidade atual não tão maravilhosa e, mais maduro, embora continuasse gostando de sua terra, estava acostumado a analisar tudo sem aquele “ufanismo” gaudério que também ostentara um dia, se encheu daquilo tudo. Chegou no pirralho bem na hora que ele entoava o “sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra” e de mansinho o cutucou:
Via-o digitando nas tais redes sociais na internet poemas e odes louvando o estado e sua suposta superioridade em relação ao resto do mundo, muitas vezes discutindo com gente natural de outros estados ou mesmo países, enaltecendo o histórico peleador do gaúcho, seu inconformismo, sua educação, a qualidade de vida local, e os grandes feitos também de Inter e Grêmio no futebol e... foi quando o velho, que efetivamente conhecia o histórico do estado, mas também sua realidade atual não tão maravilhosa e, mais maduro, embora continuasse gostando de sua terra, estava acostumado a analisar tudo sem aquele “ufanismo” gaudério que também ostentara um dia, se encheu daquilo tudo. Chegou no pirralho bem na hora que ele entoava o “sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra” e de mansinho o cutucou:
- Vem cá, ô, guri... tu por um acaso
sabia que hoje o nosso estado tem alguns dos piores índices de desenvolvimento
do país?
O filho o olhou assustado. Em
seguida balbuciou algo como:
- C-como?... Como assim, pai?...
- É isso aí: alguns dos piores
índices de educação, saneamento básico, asfaltamento de estradas, entre outros,
do país... sabias?
-Bem capaz, pai!...
nós... nós temos os melhores...
- Nada de “nós”, tchê; o único “nós”
que existe somos nós aqui: tua família; eu, tu, tua mãe e tua irmã... e, fora o
que os números mostram, não tem nada dessa de melhores nem piores, é tudo
ilusão...
- Não pode ser, pai... aqui no sul a
gente é mais politizado, mais civilizado e...
- Civilizado? Tu ouviste falar da atual situação do Presídio Central de Porto Alegre? E se te gabas tanto da história do estado, deves certamente ter lido ou ouvido falar nas degolas de algumas das nossas revoluções, como a Federalista, por exemplo, não!?
- Civilizado? Tu ouviste falar da atual situação do Presídio Central de Porto Alegre? E se te gabas tanto da história do estado, deves certamente ter lido ou ouvido falar nas degolas de algumas das nossas revoluções, como a Federalista, por exemplo, não!?
- Ah, pai... mas isso é coisa da guerra...
é porque somos um povo aguerrido... veja só nossos times, que... – e quando
começou a exemplificar que o Inter era o campeão de tudo e havia batido certa
vez o poderoso Barcelona e o Grêmio era o Imortal tricolor copeiro que certa
vez havia batido o Náutico com quatro a menos e que a raça do futebol gaúcho era
mais um exemplo das façanhas do sul, o pai interrompeu-o novamente:
- Sim... e tu sabias que certa vez o
Inter perdeu para um time do Congo, chamado Mazembe? E que o Grêmio caiu duas
vezes para a segunda divisão do futebol brasileiro?
- Sim, mas... – ele tenta
desconversar – nós temos nossas bonitas tradições... a bombacha, por exemplo...
- Sim, é verdade, temos bonitas
tradições. Também gosto delas. Mas tu sabes por acaso quem foi que inventou a
bombacha?
- Ué... foram os... os farrapos, não
foram? - chutou o guri, meio sem jeito.
O guri se chocou. Não sabia daquilo.
Não podia ser verdade. Mas, que diabos, devia ser, o pai não iria lhe mentir.
Ou iria?
- É isso aí, meu garoto: o mundo não começou com a Guerra dos Farrapos. Também gosto do nosso estado,
filho, mas atualmente não sei se temos tantas façanhas assim para servir de
modelo a TODA a Terra... – e jogou-lhe uns três livros de História sobre a cama
– e mais um do Simões Lopes Neto, por via das dúvidas. Por fim apontou para os
pés do garoto:
- Bueno... e por mais que a bombacha
seja um símbolo nosso – observou, rindo sardônico – ela não cai muito bem usada
com tênis NAIQUE, tchê!!...
O guri olhou
meio sem jeito para os próprios pés. O pai riu, foi até ele, abraçou-o e passou
a mão no seu cabelo, escabelando-o, o guri riu de volta, e os dois foram para a
sala disputar uma ferrenha partida de futebol no videogame, valendo o título de
campeão do Universo – disputada, claro, em um Grenal.
(Diego T. Hahn)
Muito bom o conto e assim como o "guri" não sabia que as bombachas vieram lá dos nossos amigos turcos!
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