terça-feira, 21 de outubro de 2014

A lenda do cachorro sem cabeça - réquiem para uma pequena grande amizade (por Diego T. Hahn)



Uma das marcas registradas da Upi eram os seus chamados “truques”:

Sentava.

Deitava.

Dava a pata.

Fazia “cabecinha” (consistia em, ao ouvir tal comando, apoiar a cabeça num joelho humano – geralmente, como também ao atender às ordens anteriores, para ganhar algum pedaço de comida, claro).











Mas o melhor de todos mesmo era fazer sumir a cabeça:

Com o intuito de revirar o lixo, subia no cesto, enfiava a cabeça lá, e, para quem olhava a alguns metros de distância, lá estava ela, naquela curiosa posição, de pé e “sem cabeça”.

E eis que surge uma lenda.

Mas esse “sem cabeça”, devo dizer, refere-se a uma impressão física tão somente, pois intelectualmente, tínhamos certeza, como bons donos(?)-amigos(?)-“pais”(?)-“tios”(?)-“irmãos”(?) corujas, que ela era a mais esperta do mundo e talvez de toda a história de sua espécie (que Lassie, Benji e Rintintim o quê!) – e, confesso, chegamos a vislumbrar maquiavelicamente algumas vezes até mesmo uma carreira no circo (veja você, ela era do tempo em que ainda havia animais no circo...), naqueles programinhas de auditório, ou algo assim.

A Upi, pra quem não sabe (O quê? Tem mesmo gente que não sabe??), era uma cadelinha, meio poodle meio vira-lata, meio preta meio marrom (curiosamente, da metade do lombo pra frente, da primeira cor; da metade pra trás, da segunda), que vivia em uma gamela - sim, uma gamela, dessas de churrasco, mas forrada com um confortável travesseiro, claro - embaixo da mesa de passar roupa, oficialmente “filha” da minha irmã, mas na prática um patrimônio vivo da família – chegou aqui há 15 anos, comprada por 50 “pila”, mas, com o passar dos anos, sua cotação extrapolou todos os limites na nossa bolsa de valores familiar e chegou a valores antes inimagináveis até mesmo para nós. 

Tinha jeito de lady, como comentavam as pessoas pela rua: era magra, esbelta, pernas longas, e caminhava serena e meio indiferente ao resto do mundo. Era uma verdadeira dama.

Embora canina, a propósito de elegância, a Upi tinha hábitos mais parecidos com os dos felinos (brincávamos que ela era uma cruza de poodle com gato): gostava de passar embaixo das nossas pernas, levantando e esfregando as costas, uma, duas, três, dez vezes seguidas; queria sempre estar por perto - especialmente para acompanhar numa soneca; era parceira pra 24 horas ininterruptas nos braços de Morfeu, se fosse o caso -, mas não era lá muito chegada a alguém pegando e apertando e abraçando ela; e não curtia lá muito cachorros (teve apenas um romance-relâmpago com um tal Alaor Malaquias, um vira-lata errante, com o qual corria alegre e surpreendentemente – primeiro porque não gostava de cachorros, e segundo porque, como uma boa dama, não gostava de correr – pela grama do parque).                                                                                                                                          
                 
           A dama e o vagabundo

Mas, claro, como todo cachorro de família, ela se achava era gente – e, como toda família com cachorro, meio que gente era mesmo pra gente.

Quinze anos.

Uma vida.

Literalmente: a sua. Mas também parte relevante de outras. Quando ela chegou, eu tinha 21. Pode-se, pois, dizer que ela meio que me viu também virar gente.

É curioso, inclusive, por falar em gente, pensar que ela, quietinha ali no seu cantinho, talvez me conhecesse melhor que muita gente com a qual convivo hoje e mesmo melhor que muita gente com a qual convivo há muito tempo.

Ah, não que eu tivesse dúvidas a respeito, mas Upi também ajudou a consolidar a segurança na minha masculinidade – afinal, convenhamos, o cara tem que ser muito macho pra sair pra passear todo dia pela rua com um poodlezinho, e de fitinhas rosas nas orelhas! (nas dela, claro, mas, mesmo assim...).

Upi teve um histórico médico conturbado – e recuperações fulminantes, por vezes quase milagrosas. 
Pois vejamos:

Nos primeiros meses de idade, teve uma terrível doença de pele, que a deixou debilitada e completamente careca, um ratinho branco – ela que era de pelagem preta encaracolada – com feridas pelo corpo. Lembro que o quadro era realmente muito feio e tinha certeza que, por mais que fizéssemos de tudo para tentar o contrário – e fizemos – ela não escaparia daquela.

Mas pouco a pouco foi se recuperando e, milagrosamente, alguns meses depois estava lá, toda pimpona, ostentando seus cachos pelo Parque Itaimbé.

Nos seus primeiros anos de vida, Upi também atravessou corajosa e displicentemente a Venâncio Aires na hora do pico, ao escapar da gente na garagem de casa. Quando vimos, estava ela lá do outro lado do mundo da calçada, dando uma banda em frente ao cartório do Xisto, enquanto os carros passavam voando entre nós. Segundo milagre.

Chocólatra, desafiou inúmeras vezes a toxidade do doce para os da sua espécie e subia em camas e cadeiras e mesas para furtar bis, trufas e bombons dos mais diversos – às vezes, se não conseguindo abri-los, devorando-os com papel e tudo, descobríamos surpresos depois quando regurgitava tudo, como dizendo “que porcaria; por que não fazem um negócio mais fácil de se abrir com os dentes?”.

Ela também “foi pra faca” uma meia dúzia de vezes, por motivos diversos - surgimento de tumores, inflamação dos dentes, etc - e a apreensão era sempre grande. Nunca sabíamos se retornaria daquelas batalhas, as cirurgias começaram depois que já tinha uma certa idade, havia a questão da anestesia e tal e... e eis que de repente lá estava ela de volta, novamente zanzando indiferente pela casa, no seu ritmo próprio, revirando lixos e tenteando nossa comida, um tanto quanto blasé, como se nada fosse.

Upi despencou dentro de casa de uma escada daquelas do tipo caracol do segundo pro primeiro andar duas vezes. Na primeira, ainda cheia de pontos, recuperando-se de uma das cirurgias, caiu por um vão, bateu num degrau lá embaixo e em seguida chocou-se contra o chão. Deu um grito e nada mais, seguindo seu rumo normalmente, agora no andar de baixo. Mais uma proeza da cadela de 7 vidas.
                                                          

Upi e seu esporte radical predileto: Bunge jumpee de escadas caracol – sem corda.

Na segunda vez, a viagem foi ainda mais radical: direta, sem escalas. Desta vez nem latiu, grunhiu, nem nada... só ouvi a pancada contra o chão. Saiu caminhando meio torta, como zonza, meio assustada. Assustado também, achei, mais uma vez, que era o fim da lenda, mas era na verdade só a oportunidade para mais um milagre. Sim, Upi também ajudou a renovar minha fé: percebi que Deus protege mesmo as crianças, os bêbados... e as Upis.

Ou seja: poder-se-ia dizer que estávamos mesmo no lucro... mas, todos sabem que isso não conforta ninguém, ao menos não tão cedo (assim como não, não conforta, por mais sincero e verdadeiro que possa ser, aquele papinho clichê de que “descansou”, "já estava velhinha" - nós já sabemos disso, não precisa dizer: convivemos 15 anos com ela -, “estava sofrendo”, etc; muito obrigado, mas pense em algo mais criativo para dizer – gostei de um “isso devia ser proibido” – ou não diga nada além de um “é...é foda mesmo!”) muito menos antes da coisa acontecer, e assim a luta foi árdua e, nos últimos tempos, enquanto paradoxalmente líamos incrédulos notícias sobre gente maltratando, abandonando no mato ou jogando seus cachorros pela janela do carro, empregávamos toda nossa energia e cuidados, sacrificando às vezes sono, passeios, diversão e finanças por ela, e puxávamos de um lado, enquanto a indesejada das gentes – e dos bichos – puxava do outro, e não desistimos até o fim, que dia desses chegou, porém, sem cirurgias, sem quedas, sem aus – ou, ao menos, com mais ais do que aus – , de mansinho, pra nos poupar ao menos da duplicação do drama.

De qualquer maneira, como costumo dizer, as perdas pelo caminho de amigos, pessoas próximas, de entes queridos em geral, acabam por desmontar momentaneamente aquela espécie de “lego interior” que nos constitui.

Depois, pouco a pouco, acabamos remontando-o, juntando os pedaços, mas, ainda assim, sempre algo parece restar meio torto, a estrutura não ser mais a mesma.

É claro, há determinantes espaços vazios: faltam peças.

Bem, acabamos então de perder por aí mais uma pecinha, que talvez não fosse tão visível quanto outras na estrutura, mas que certamente vai fazer falta para o encaixe final desse negócio todo que nãoseibemcomofuncionasealguémaísabeporfavormeexplique.  
                                                                                                             
E por falar em encaixe final, um dia, daqui uns 354 anos, quando me for pros tais pagos celestiais, imagino ser recebido no portão véio lá de cima certamente antes de mais nada pelo sorrisão da vó dona Helena; mas também conto, ao mesmo tempo, com aquela pequena criatura preta pulando nas minhas pernas, ou, que se danem todas as igrejas e religiões com suas teorias furadas sobre almas e suas regras seletivas, mas não será de fato o Paraíso.

Procuro, então, imaginá-la lá, saltitante – quem sabe ao lado do Alaor Malaquias – esbaldando-se na doce rotina de um mar de lixeiras, posicionadas sobre fofas nuvens até onde a vista alcança lá no horizonte, a serem reviradas infinitamente sem perturbação, sem vetos, sem “UPIIIIIIIIIIIII!! SAI DAÍ!!!”... ou simplesmente, bem acomodadinha lá, enrolada em torno de si mesma como de costume, numa das suas eternas sonecas.

Mas a verdade é que ainda é estranho perceber o vazio embaixo da mesa de passar roupa e, ao sair de casa, às vezes ainda me esqueço e continuo deixando a luz da cozinha acesa para ela.


Pois, no fundo mesmo, ainda temos uma forte suspeita de que tudo não passe de só mais um truque da Upi.
                      
      

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