quarta-feira, 9 de abril de 2014

Biografias: Alberi Degalhos

Bom, aproveitando o alvoroço - e, por que não dizer?, até certa polêmica - causados pela repentina descoberta por parte de vários amigos leitores da existência e curiosa história de vida do poeta luso Alberi Degalhos, decidimos expor aqui mais alguns fatos descobertos nos últimos tempos através de contatos feitos com pessoas que teoricamente conheceriam um pouco mais do escritor português ou teriam ao menos cruzado eventualmente e trocado alguma palavra com ele (e também, mais abaixo, para aqueles que não conhecem, a reprodução da sua biografia, narrada na sequência da apresentação do recém-lançado "Histórias reais de amigos imaginários (e vice-versa)", da qual Degalhos é o autor, e que motivou toda essa nova onda de curiosidade a respeito do homem):


- Hernan Jimenez (alguns nomes, como este, são fictícios, pois não obtivemos autorização dos contatos para a divulgação deles), por exemplo, agricultor morador de um pequeno vilarejo da região de La Angostura, conta que certa feita ficou com o carro quebrado em meio à Cordilheira, tendo sido socorrido por um velho que passava pelas imediações com seu cajado e um pequeno rebanho de cabras (ele não lembra o nome do homem, mas supõe-se, pela descrição feita, que se trate mais uma vez do poeta português). Pois o tal sujeito foi bastante solícito e lhe fez companhia e o ajudou a buscar auxílio para o conserto do veículo por toda uma manhã e uma tarde. Jimenez lembra que a princípio o homem, embora bastante gentil, era de poucas palavras - as quais emitia com um estranho sotaque - e tinha um olhar perdido no horizonte, o que inclusive teria chegado a preocupá-lo por alguns instantes, fazendo-o cogitar a possibilidade de tratar-se de algum  tipo de doente mental ou algo do gênero. No decorrer do dia, porém, após o agricultor tecer alguns comentários sobre amenidades e a vida em geral enquanto aguardavam a chegada de um mecânico que estava a caminho, o indivíduo teria passado a balbuciar "sim, sim, sim", como concordando, porém visivelmente alheio ao que Jimenez dizia, na realidade parecendo ter um "estalo", e passara então a falar, e, parecendo entrar mesmo em uma espécie de transe, discursou por mais de hora, quase ininterruptamente, sobre várias teorias confusas que dizia que havia formulado nos últimos tempos e as quais Jimenez confessa não lembrar mais, tendo-lhe ficado impressa, no entanto, trechos de uma em específico, que o homem revelava estar desenvolvendo naqueles dias, a respeito de bifurcações e encruzilhadas  existentes pelo mundo afora e que, embora muitas vezes distantes umas das outras, acabam fatalmente por se entrecruzar em algum momento, como a formar um gigantesco e uno labirinto, se vistas de um ponto de referência no alto.
- Metaforicamente falando, o senhor quer dizer? - lembrava de ter-lhe perguntado o agricultor, um tanto quanto confuso e admitindo tê-lo interpelado tão somente para não evidenciar rudeza, desinteresse ou mesmo ignorância.
- No se... no se... - teria se limitado a responder o homem, e voltado a calar-se por um longo tempo, mirando novamente, um tanto quanto melancólico, os confins da Terra no extremo Oeste, formando um quadro que Jimenez afirma ser difícil de esquecer - suas humildes vestes e a longa barba branca ao vento, o cajado fincado na terra, e o brilho no escuro dos seus olhos, pelos quais o resto de sol daquele dia parecia especialmente atraído e nos quais parecia se banhar com intensa alegria e com urgência, antes da noite cair - e aquilo dera a Jimenez também uma sensação de imensa serenidade e relaxamento únicos. 
Ao questionar em seguida o mecânico que lhe dava carona, este, um tanto quanto indiferente e distraído, dizia não conhecer o tal homem ("debe ser un loco cualquiera!") que havia ficado para trás, então acocorado, mas ainda imóvel admirando a linha do horizonte, e cada vez menor à medida que desciam a Cordilheira, até tornar-se um pontinho branco e por fim desaparecer de vez, enquanto o mecânico falava muito rápida e irritantemente sobre uma determinada partida de futebol, uma grande festa do povoado próximo, misturando outros assuntos, e sorrindo-lhe com uma boca com poucos e amarelados dentes.
No fim das contas, apesar de toda a estranheza da situação e dos seus modos e linguajar, e de não lembrar da maioria das coisas que o velho pastor lhe havia dito - e ter entendido muito pouco daquelas que lembrava - , Jimenez afirma ter ficado com uma forte impressão de que não, por algum motivo que lhe foge à razão, mais uma sensação do que qualquer outra coisa mesmo, ele não seria capaz de contestar a sanidade daquele sujeito perdido lá em cima.



- Já o bolicheiro Jose Sellas conta que Degalhos esporadicamente aparece no seu recinto - uma espécie de bar/armazém situado em Susques, norte altiplano da Argentina - para comprar alguma coisa, e costumeiramente entra quieto e sai também quase calado, emitindo na sua passada tão somente os protocolares "buenos dias" e "buenas tardes", mas certa feita ancorou lá e surpreendeu a todos os presentes, tirando o chapéu e o pala e esparramando-se em um canto, no qual vararia a noite discursando sobre o poder mágico do vinho, que inclusive consumiu abundantemente naquela ocasião, elencando minuciosamente todas as propriedades medicinais e terapêuticas da bebida, além de sua textura, seu aroma, seus variados sabores, e fazendo comparações destes com situações da vida, e o misterioso poder da silhueta de uma mulher sobre um homem, no que foi rodeado de outros frequentadores do bar, que o ouviram calados, como hipnotizados, por horas e horas. Um desses frequentadores do bar, Facundo Reyes, afirma ter visto um brilho especial,segundo ele uma espécie de lágrima fugaz, bailar pelo olho do poeta luso quando ele descrevia "a cordilheira que descreve uma nostálgica parábola no lombo de uma fêmea, tão próxima do céu aquela elevação, e que nos rouba o oxigêneo do cérebro pelo ar rarefeito de sua altitude...", suposta lágrima que ele, porém, conteve e impediu de se espatifar naquela mesa de bar no meio da escuridão entre as montanhas, pois "as lendas não choram", repetia sorrindo o homem, "as lendas não choram", e seguia contando que o singular homem se levantou ao terminar a descrição, pegou seu chapéu, enterrou-o bem na cabeça, enrolou-se no seu velho pala andino, e se foi, encarando o gelado vento lá fora no lombo de sua mula, apenas balançando a cabeça em saudação de despedida para os que ficavam, atônitos, um pouco por vê-lo partir tão repentinamente, quando aguardavam ansiosos por mais, um tanto por tudo que haviam ouvido naquela noite, como a processar toda aquela incomum informação para rústicos homens da Cordilheira.
Antonio Venegas, outro frequentador e dono de certo talento para as artes - gosta de declamar trovas com sua voz rouca e grave e costuma rabiscar caricaturas dos habituais frequentadores em guardanapos -, embora fazendo a ressalva que Reyes tem certa inclinação a "aumentar os fatos", por assim dizer, confirma que o grosso do causo é mesmo esse e lembrando, inclusive, que em uma parede do recinto há um desenho de sua autoria retratando Degalhos e sua caracterização naquela noite.
Segundo Venegas, muitos dos homens presentes naquela ocasião aguardaram ainda por muito tempo por outra daquelas - não há realmente muito o que se fazer por aquelas bandas, e tinham tantas perguntas por fazer -, mas Sellas afirma que tal evento não mais se repetiu - o tal homem até voltaria lá, e continua aparecendo esporadicamente, mas geralmente pelo fim da manhã ou início da tarde, como de costume, trocando, sempre soturno, apenas rápidas e formais saudações com os presentes.
Embora alguns até tenham tentado em certas ocasiões empreender novas conversações com o velho, ele então limitava-se a emitir alguma vaga resposta monossilábica ou, mais comumente, balançava a cabeça como pedindo desculpas e respondia quase timidamente "no se, amigo... no se", antes de retirar-se outra vez.
Nada que afetasse, contudo, certa adoração que lhe devotavam ainda os frequentadores do bar, sempre esperançosos de que um dia Degalhos voltaria lá e lhes contaria mais sobre a vida.


E aqui abaixo, para quem ainda não tinha conhecimento, a reprodução da biografia de Alberi Degalhos - que, como dito antes, consta do "Histórias reais de amigos imaginários (e vice-versa)", livro de contos do qual o poeta português é autor da apresentação:


"Sem dúvida, é válido  aproveitarmos também este espaço
para apresentar um breve resumo da extraordinária história deste
fantástico poeta português, inacreditavelmente quase ignorado por
completo no Brasil.
O lendário – em seu país e boa parte da América Latina,
especialmente aquela andina – Alberi Degalhos nasceu em Alcobaça
(em data desconhecida; especula-se, porém, que tenha hoje algo
em torno de 90 anos de idade), mas foi criado na Ilha da Madeira.
Reza a lenda que fora abandonado ainda bebê na frente da casa
da família Degalhos, tendo assim sido adotado por Odisseu Francis
Degalhos e Eleonora Caminha Degalhos, ele também escritor,
ela descendente de nobres da Ilha. Hoje diz-se que vive sozinho e
isolado, praticamente sem contato algum com outras pessoas, em
uma pequena casa na Cordilheira dos Andes no Chile, onde dedica-se à criação de cabras.
Embora fosse bastante notório por seus haicais no início
da carreira, era também considerado ótimo na prosa. No entanto,
em um incêndio ocorrido em navio no qual cruzava o Atlântico
vindo de Portugal para a América do Sul na década de 40 – fugia
da perseguição do ditador Salazar, que o considerava um poeta
subversivo – todos seus textos foram perdidos, com exceção de dois,
os poemas “Cuidado com esse negócio (Os versos perdidos)” e “Um
belo dia chegou o futuro”, que hoje são os únicos registros “oficiais”
de sua obra. Felizmente, todos os tripulantes do navio, que em
poucos minutos jazia no fundo do mar, foram recolhidos e salvos por
uma segunda nau que fazia a travessia transoceânica em conjunto.
Alguns poemas e outros textos circulam ainda hoje em seu nome,
mas sua autoria jamais foi confirmada. Diz-se também que, depois
do incidente no navio, o poeta luso, provavelmente desgostoso com
o destino trágico de seus escritos, até continuou escrevendo quando
chegou na América do Sul, mas quase tudo aquilo que escrevia
passava a queimar logo em seguida em uma pequena fogueira
em frente ao seu chalé na Cordilheira. É certo que há até pouco
tempo ainda escrevia esporadicamente para algumas pequenas
publicações, sem maiores pretensões literárias, geralmente ensaios
ou resenhas, comentários a respeito da produção de novos talentos
locais. Embora apreciador de uma boa leitura, consta que nunca
gostou de falar de sua própria obra.
Alberi  Degalhos  casou  oito  vezes,  mas  nunca  teve  filhos.
Algumas poucas pessoas que tiveram contato com o poeta afirmam
ser ele um homem de poucas palavras, porém bastante afável e,
mais do que qualquer outra coisa, dedicado ao seu rebanho, no qual
aparentemente passou a focar com fervor nesses seus novos tempos
na América quase toda sua concentração e seu empenho, outrora
voltados com a mesma intensidade quase unica e exclusivamente
para a literatura.
Como não poderia deixar de ser, devido aos seus hábitos
diferenciados e sua vida quase de ermitão, surgiram com o
tempo várias lendas a seu respeito. Como, por exemplo, a de que
o verdadeiro Alberi Degalhos havia morrido há muitos anos e a
partir de sua morte algumas pessoas, fãs seus, passaram a adotar
sua “personalidade” para não deixá-lo partir totalmente: passaram
a escrever em seu nome – seriam as obras que circulam sem sua
autoria  confirmada  -,  e  assim,  Alberi  Degalhos  seguiria,  de  certa
forma, vivo, sendo “retransmitido” de geração para geração.
Há algum tempo atrás circulava na internet um
documentário feito por estudantes chilenos sobre a vida de um
homem já de avançada idade, longa barba branca, que vivia numa
pequena casa na Cordilheira dos Andes com suas cabras e surgiram
fortes suspeitas que o homem fosse o poeta... no documentário, ele
falava sobre várias teorias esotéricas, sobre metafísica, vida e morte,
a pedra do gênesis, o elixir da juventude, mas não menciona-se em
nenhum momento o nome do homem e as suspeitas que ele fosse
Alberi Degalhos nunca foram confirmadas.
O autor deste livro conheceu Degalhos – ou o homem
identificado  como  Degalhos,  como  queiram  –  há  alguns  anos  em
um café em um pequeno vilarejo quando cruzava a Cordilheira,
na fronteira entre Argentina e Chile, em meio a um mochilão
pela América do Sul. Após aproveitar a raríssima oportunidade
– especialmente pelo fato de o proprietário e os outros poucos
frequentadores presentes no bar confirmarem que as aparições do
homem ali eram quase bissextas – para uma breve, porém intensa,
conversa, deixou-lhe um exemplar de “Flashbacks de um mentiroso”
e, depois de alguns meses, passou a corresponder-se por cartas –
esporádicas, é verdade, mas hábito que mantém até hoje – com o
velho ermitão
."



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