quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Sucessivas explosões (Em memória do Maestro)


A primeira coisa que me vem à cabeça quando lembro da coisa toda é aquela frase, surgindo voando, veloz: "Separada por um istmo!" e ecoando "istmo. ISTMO!".

Engraçado. Nunca fui tão bom assim em geografia, mas essa lição peguei bem: aquele tal lugar era separado do continente por um istmo.

Isso aconteceu lá pelos idos dos 90. Metade da década, talvez. De certeza, eu era guri. Lembro bem da minha confusa impressão, inclusive sem saber ao certo se tinha gostado ou não, que havia ficado tipo "Cara, que parada é essa??", tentando digerir por alguns dias após o espetáculo toda aquela função.
E talvez esteja tentando digerir até hoje.
Pois dizem que é isso o que a verdadeira arte faz com a gente, quando temos a sorte de nos depararmos com ela.

Depois o que mais marcou daquele curioso espetáculo daqueles dois estranhos artistas sbornianos (um com jubão eletrificado e olhar petrificado, o outro com sorrisinho canastrão abaixo do bigodinho, típico gerente de restaurante italiano), além daquela dancinha maluca do corpo travado com a cabeça chacoalhante - essa era perfeita para eu dançar - e de uma certa canção que falava de um triângulo amoroso familiar, foi uma versão feita por eles para "Meu erro" dos Paralamas do Sucesso.
 Devagarzinho, ritmada, à meia-luz, violão e acordeon. E, bem...
Esqueça Zizi Possi. Esqueça todos os outros covers dessa música.
Havia um quê de melancolia ali - e como é bela a melancolia quando inserida na medida justa em certos casos (bem, mais uma vez, a arte, a arte...)...
Mas havia também um quê de mágica ali. Era algo quase hipnótico.
E ainda é: sempre que lembro do espetáculo, antes mesmo de lembrar de todo o resto, automaticamente começa a tocar lá no fundinho dos arquivos da minha confusa memória aquela música...

Foi a primeira - e, agora sei, última - vez que os vi em ação.
Nossos caminhos infelizmente nunca mais se cruzaram desde aquela noite. Tinha curiosidade, agora mais maduro, adulto, por assim dizer, a respeito da impressão que eventualmente me trariam nos dias de hoje. É o meu primeiro grande lamento dessa partida precoce do Maestro, uma tristeza egoísta, eu sei, de nunca mais poder revê-lo em ação.
(Há uma piada na qual um portoalegrense pergunta para o outro:
- Já viste o Tangos & Tragédias?
- Umas 8 vezes...
- Por quê? Não gostou?).

Mas depois tem também, além, claro, da tristeza inerente à imensa perda de mais um ser humano, qualquer ser humano - que por si só já seria suficiente, como diria John Donne -, também a estranha, curiosa, tristeza, essa saudade antecipada, que nos ataca quando se vão determinadas pessoas que nem conhecemos intimamente, que pouco ou quase nunca víamos nessa vida, em quem quase nunca pensávamos, na realidade, mas por quem, devido a alguma característica peculiar, seu carisma, seu jeito de sorrir ou ser bom em algo, ou algo assim, nutríamos alguma espécie de admiração especial lá no fundo. E damo-nos conta disso tudo especialmente nesse momento de partida - embora, claro, talvez exista uma certa tendência a tudo isso se intensificar nessas horas de partida - quando já é tarde, e tentamos admirá-las e reverenciá-las em pensamento o máximo que podemos nessa despedida, como tentando correr atrás do tempo perdido, como tentando calcular a falta que elas nos farão.

Bem, creio que existem diferentes formas de luto, ou, melhor dizendo, diversas formas de tristeza advindas do luto.

Certamente não é tão profundo e avassalador como chorar por um parente ou amigo próximo. 

É uma tristeza mais sutil.

Nesse caso, creio que choramos talvez por amigos de outras dimensões, outras vidas, vidas nas quais imaginamos que tudo é melhor e mais belo que aqui e somos sempre felizes, tal qual numa ficção.
Ou choramos simplesmente por nossos super-heróis particulares, gente "especial" que nos mostra que aqui mesmo há mais entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia.

Tal qual acontece com a identidade secreta de alguns dos nossos super-heróis, no entanto, às vezes pouco sabemos de suas vidas pessoais, até que um dia se vão - a gente costuma achar que durariam para sempre, envergando sua capa e sorrindo aquele sorriso também eterno, naquela pose altiva - e há sempre um quê de tragédia na morte de um super-herói.

Para pegar mais uma deixa do poema de Donne, sucessivas explosões afastaram a ilha-natal do Maestro do continente, tal qual dizia o antigo poeta inglês que acontecia quando uma pessoa, qualquer pessoa morria, era como se um pedaço de terra se desprendendo e o continente ficando menor e por isso não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti, por mim, por nós, a tragédia é de todos nós. E é inevitável. Sucessivas explosões seguem e seguirão para sempre acontecendo, afastando outros preciosos torrões do continente.

Mas, ainda que não nos console hoje - e, na realidade, acontecerá algum dia? - , a verdade é que depois, muito depois do baque dessas tragédias, fica tudo o mais.
Fica a lenda. Fica a arte - nossa fonte de vida eterna, afinal. Fica a dança. Ficam os tangos, claro,. Ficam os tangos, com todo seu mix de lenda, teatro, dança, drama e música. Fica a música. Sim, fica a música.

Sim, inevitável hoje não ouvir aquela canção do Herbert voltando a tocar baixinho como aquela vez há tantos anos, tal qual eles a haviam transformado, à meia-luz, violino e acordeon, mágica como sempre depois daquela noite, embora, desta vez, certamente, também um tanto quanto mais melancólica.

E eu, eu sigo tentando digerir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário