Em mais uma parceria literária inter-regional, temos o prazer e a honra agora de publicar aqui no "De Letra" esta crônica do novo amigo e "irmão de ofício" das letras Antonio da Silva Pereira Neto, professor de Língua Portuguesa da rede pública de ensino do Espírito Santo (por coincidência, o cara vive numa cidade "xará", Santa Maria do Jetibá). Essa parceria nasceu após termos entrado em contato um com o trabalho do outro (e uma subsequente rasgação de seda - "cara, muito bom o teu texto!", "não, o teu que é, velho!!") através da recentemente publicada e distribuída coletânea dos premiados no Prêmio SESC de Literatura - Crônicas Rubem Braga - edição 2013, da qual tivemos ambos o prazer de constar - o Antonio com nada mais nada menos que o 3º lugar (exatamente com a crônica apresentada aqui) nesse certame nacional organizado pelo SESC de Brasília.
(Parabéns mais uma vez aí, Antonio! - e que nos dê a honra qualquer hora dessas de outros textos de sua autoria pintando aqui pelo blog!...)
Nasci e cresci numa vila
periférica, proletária. Suas ruas sem calçamento liberavam poeira nos dias
calorentos e muita lama nos chuvosos. Vira-latas misérrimos perambulavam de um
lado para o outro, à procura de algum resto de comida. As casas eram separadas por cercas precárias,
feitas de taquaras, ripas e arame farpado. Pobres e pequenas casas sem reboco,
sempre por acabar, sempre esperando por uma reforma ou ampliação que nunca
chegavam...
Os terrenos baldios proliferavam e emprestavam-se para abrigar
provisórios depósitos de lixo e entulho. Outros tinham mais sorte e, cuidados
por mãos laboriosas, tornavam-se hortas e plantações de milho ou mandioca.
Esses terrenos baldios eram a poupança de famílias mais abastadas que os
compravam e os deixavam lá, esperando valorização. Alguns desses terrenos, os
mais privilegiados, serviam de playground para a criançada da vila. Viravam
improvisados campos de pelada, território das lendárias partidas de taco, das
batalhas antológicas com sementes de mamona, épicas partidas de queimada,
brincadeiras de roda, campeonatos interplanetários de bolinha de gude, enfim,
eram um universo paralelo de diversão naquela vida sofrida do subúrbio!
Ao longe, do alto do morro, avistávamos a linha do trem: R.F.F.S.A.
(Rede Ferroviária Federal S.A), que levava os exércitos de trabalhadores em
vagões superlotados para trabalhar na capital; pais e mães que saíam de madrugada
e só voltavam ao anoitecer, deixando aquela criançada aos cuidados de vizinhos
samaritanos, tias, avós ou à própria sorte!
Aquelas crianças encardidas, malvestidas, despenteadas eram os pardais
da periferia: as crianças-pardais. Eu fui uma delas. Sem a beleza das crianças
das propagandas da televisão, nossa única beleza residia nos sonhos que
materializávamos em nossas brincadeiras. Tão pobres e esquecidos no mundo, tão
cheios de imaginação!
As crianças-pardais guardavam, em recantos secretos, uma gama enorme de
tesouros: bolinhas de gude, figurinhas, tampinhas de garrafas de refrigerante,
moedas fora de circulação, insetos exóticos e já mortos, e muitas outras
preciosidades infantis.
A felicidade era o nosso tesouro mais precioso, mas ainda não sabíamos...
Ah, de quanta felicidade é feita a trama da infância! A nossa infância de
crianças-pardais foi tecida por fios de ouro, saídos de corações maternos e
paternos que nos zelavam e enfrentavam toda sorte de vicissitudes para nos
sustentar, material e espiritualmente, e para nos garantir saúde e educação em
tempos de angustiantes incertezas no Brasil.
Fomos livres, fomos sonhadores: piratas, caçadores, astronautas,
atletas, guerreiros medievais! Tivemos
ilhas de Mata Atlântica que resistiam no Alto Tietê! Conhecemos o rio Guaió
ainda virgem! As raras bicicletas daquele tempo nos levavam para aventuras que
ficavam além do tempo e do espaço! Descalços, desprovidos de beleza, de
refinamentos, mas felizes!
Hoje, quando volto para a minha terra, encontro ruas pavimentadas,
congestionadas por automóveis e motocicletas nervosos, que me amedrontam!
Aquelas antigas e pequenas casas estão diferentes, ampliadas e
melhoradas, são cercadas por altos muros, enfeitados com pregos, cacos de vidro
e lanças pontiagudas. Câmeras vigiam a entrada das residências e dos comércios.
O medo passeia pelas vias sem ter medo de nada!!!
Os quintais quase que desapareceram. Nos portões, sempre trancados,
aparecem cães enormes, donos de bocarras assustadoras. Tão diferentes dos
frágeis vira-latas que conheci nos meus tempos de criança!
Modestos condomínios de prédios suburbanos enfileiram-se, como florestas
de aço e concreto, acinzentando o horizonte. Em suas janelas aparecem estranhas
crianças, desprovidas da alegria natural e da feiura graciosa das
crianças-pardais. Pobres crianças do século XXI, prisioneiras de apartamentos e
quintais cimentados e gradeados, reféns da tecnologia e do medo. Têm uma vida
cheia de tudo o que nunca tivemos nem ousávamos querer, mas não se parecem nem
um pouquinho com as encantadoras crianças-pardais, das quais eu fui uma.
Por onde voarão as crianças-pardais? Foram extintas ou ainda vivem no
coração dos adultos que sobreviveram ao século XX?
Na aquarela da memória, eu as vejo todas. Belas, eternas, pobrezinhas!
Sofredoras, encantadoras, agrestes e destemidas crianças-pardais!
Um abraço afetuoso para todos os nossos amados do Rio Grande do Sul! Somos todos crianças-pardais!
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